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O sistema prisional brasileiro possui uma série de problemas estruturais de difícil solução. Com um número próximo a 800 mil presos divididos em 1,4 mil unidades prisionais, a superlotação é apenas um dos impasses: há falta de políticas públicas, sobretudo educacionais, para criar perspectivas de reintegração dos presos à sociedade; altos índices de cooptação de detentos por facções criminosas que exercem poder nos presídios; e baixas condições de saúde e assistência social aos detentos. Como resultado, os índices de reincidência criminal são bastante altos – de acordo com relatório do CNJ, no estado do Espírito Santo a taxa de reincidência chega a 75% – e o efeito é a ineficácia no enfrentamento à violência.
Diante desse cenário, um movimento formado por organizações não governamentais, ex-detentos e familiares de presos criaram a Agenda Nacional pelo Desencarceramento. O movimento defende que a única solução para resolver os problemas do sistema prisional, tanto no Brasil como no resto do mundo, é o fim das prisões por meio do desencarceramento em massa. “O poder público, sempre que apresenta um novo plano de segurança, insiste na construção de novas unidades prisionais e no discurso da humanização dos presídios. Essas medidas historicamente não funcionam: aumentar o número de prisões e vagas nunca diminuiu índices de violência, e não é possível humanizar um local que é feito para torturar sistematicamente as pessoas que estão presas”, cita um manifesto do movimento.
Para especialistas em segurança pública consultados pela Gazeta do Povo, entretanto, o desencarceramento em massa é inviável para a realidade brasileira. “Não adianta falar em desencarceramento massivo se não houver uma estrutura que recoloque a pessoa na sociedade. Ela precisa de assistência educacional – aprender uma profissão enquanto estiver detido –, social e psicológica. Isso requer uma atenção do Estado”, explica Ricardo Ferreira Gennari, especialista em segurança pública. “Tendo a devida estrutura, a pessoa sai da cadeia com uma perspectiva de reintegração. Sem alternativas não adianta soltar; grande parte vai sair e voltar ao crime”.
De acordo com Luiz Fernando Ramos Aguiar, especialista em segurança pública e major da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), colocar nas ruas pessoas condenadas por crimes violentos está diretamente relacionado a um aumento ainda maior da criminalidade. “O Brasil tem uma população carcerária realmente grande. Mas, proporcionalmente ao tamanho da população, estamos em 26º lugar. O problema não é prender muito; ao contrário: existem estudos que demonstram que em 90% dos homicídios não se chega à autoria desses crimes. De 100 homicídios, só se apreende dez pessoas. Muita gente que cometeu um crime sério ainda não foi punida”, afirma Aguiar.
Reivindicações do movimento nacional pelo desencarceramento em massa
Um dos focos prioritários da Agenda Nacional pelo Desencarceramento é a soltura dos presos que ainda não foram julgados pela Justiça – dos 752,2 mil detentos no Brasil (de acordo com dados de 2019 do Departamento Penitenciário Nacional), 249 mil (33,1%) são provisórios, isto é, ainda não tiveram uma condenação judicial.
Mas os objetivos não param por aí: de acordo com Elaine da Paixão, uma das coordenadoras da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, a proposta central do movimento é de que as cadeias sejam esvaziadas e que não haja nenhuma pessoa presa no Brasil, independentemente do crime que seja cometido. “Nossa política é desencarceramento total, é tirar todas as pessoas da cadeia. Independentemente do crime que seja cometido, acreditamos que há outras medidas de punição que não são o encarceramento. Mesmo um estuprador não seria preso, ele vai ser punido de outros meios”, diz Elaine. “Uma pessoa que matou, tem que ver qual é o problema que ela tem, entender o que levou a isso e oferecer ajuda. São casos em que é preciso olhar o histórico dessa pessoa”.
A reportagem questionou a coordenadora sobre quais seriam as possíveis penas alternativas ao cárcere que o movimento propõe para pessoas que cometem crimes graves, porém ela afirmou não ter nenhuma medida concreta a ser proposta.
Há ainda outras proposições polêmicas feitas pelo movimento, como a descriminalização do uso e comércio de todas as drogas; a desmilitarização das polícias; a proibição de qualquer tipo de privatização do sistema prisional; e a “autonomia comunitária” para a resolução de conflitos sem a intervenção policial. Em suas redes sociais, a Agenda Nacional pelo Desencarceramento se manifesta com frequência pedindo o fim da polícia – uma sociedade sem nenhuma força policial é outra pauta do movimento.
De acordo com Aguiar, uma política baseada no desencarceramento massivo e em uma sociedade sem polícia é insustentável. “Vejo isso como uma insanidade. A defesa desse tipo de política vem da criminologia crítica – um ramo da criminologia que estuda o fenômeno criminal a partir da ótica marxista. Vê-se o criminoso como um elemento oprimido que precisa ser libertado, e o Estado como opressor dos criminosos. É uma visão extremamente ideológica e apartada da realidade”, cita o major da PMDF.
Problemas do sistema prisional
Com o aumento populacional e crescimento da violência nas últimas décadas, vários países se veem diante do problema da superlotação dos presídios. No Brasil, a população carcerária aumenta em média 4% ao ano de acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de autoria do Departamento Penitenciário Nacional.
Segundo dados de 2019 do Infopen, há 460,7 mil vagas nas unidades prisionais para 752,2 mil presos – o que representa uma taxa de ocupação média de 163,3%. Em meio ao elevado número de presos, que em grande parte dos casos não possui acesso a recursos efetivos para a sua ressocialização (profissionalização, educação e preservação da saúde física e psicológica), a estrutura dos estabelecimentos prisionais - normalmente dominados pelas facções criminosas - favorece uma “escola do crime”, que muitas vezes “forma” egressos do sistema prisional para novos e mais violentos delitos.
Para Gennari, em meio à violência que impera dentro dos presídios, os presos acabam cedendo ao aliciamento de criminosos das facções para ter segurança. “No Brasil, com os presídios sendo subdivididos por grandes facções, esses grupos conseguem cooptar um número muito grande de pessoas. E o cidadão que está lá por um delito menor vai acabar entrando numa dessas facções para preservar sua vida”.
Para o especialista em segurança pública, a alternativa, entretanto, não é o desencarceramento em massa, e sim o fornecimento de condições adequadas, principalmente relacionadas à educação e à saúde, para a reeducação dos presos. “No Japão, por exemplo, a pessoa que cometeu um crime tem que pagar, mas a forma de pagar é diferente. O sistema prisional é bastante rígido com foco na reintegração do preso à sociedade. O preso é obrigado a estudar e trabalhar e, com a remuneração, ele vai fazer uma poupança para quando sair da prisão – o que permite um rendimento para que não volte ao crime e, muitas vezes, faz com que ele tenha uma profissão”, cita.
“É bastante disciplina, pouca comunicação, muito trabalho e estudo. Tudo com muitas regras. Aqui no Brasil, infelizmente, muitos se levantariam dizendo que essa realidade é um absurdo, que é contra os direitos humanos. Mas na verdade não tem nada contrário aos direitos humanos; tem, por outro lado, uma estratégia para dar um futuro para a pessoa para quando ela sair de lá”.
Aguiar aponta que a melhora das condições sociais e de educação contribuem diretamente para a redução da criminalidade e, consequentemente, do encarceramento. “O encarceramento é apenas uma das vertentes do controle do crime. Existem várias outras ações que contribuem para a diminuição da criminalidade. Uma população com maior acesso à educação e que reside numa cidade com melhor infraestrutura comete menos crimes. Melhorando as condições de vida das pessoas, a tendência é que se diminua a criminalidade”.
O comandante da PMDF cita ainda que não há uma relação necessária entre pobreza e criminalidade. “As comunidades estão lotadas de pessoas muito pobres e a maioria é honesta e vive do trabalho. Mas a situação de carência econômica e cultural acaba fazendo com que as pessoas tenham mais fragilidade para a criminalidade, porque tem mais desamparo, mais vulnerabilidade”, afirma.
Aumento de vagas como saída para a superlotação dos presídios
Uma das políticas mais tradicionais no combate à superlotação no sistema carcerário é o aumento de vagas nas unidades prisionais por meio da construção ou ampliação de penitenciárias, colônias penais, cadeias públicas, dentre outros estabelecimentos. Para Gennari, entretanto, a medida é apenas paliativa e não resolve os problemas estruturais do sistema prisional brasileiro. Ele cita que a construção e manutenção de mais presídios, além de gerar aumento de custos para os cofres públicos, aumenta a possibilidade de corrupção e desvios.
Aguiar, por outro lado, aponta que o aumento das vagas em presídios é positivo, mas deve vir junto com a melhora das condições nas unidades prisionais. “A pena a que nós condenamos as pessoas no Brasil é a restrição de liberdade. Mas quando se coloca o cidadão numa situação de extrema degradação, por um lado ele está sendo punido, mas por outro está se fazendo com que ele sofra uma série de violências e conviva num ambiente muito propício para que ele se torne ainda mais violento”.
Aguiar cita também que atualmente crimes com menor gravidade praticamente não conduzem à prisão e que, na maioria das vezes, as pessoas privadas de liberdade cometeram crimes de maior gravidade ou são reincidentes. “Se há dificuldade em manter preso um traficante de drogas, imagine uma pessoa que furtou para comer. A lei, por exemplo, não pune mais o usuário de drogas com prisão. Faz a ocorrência e ele é liberado”, afirma. “Há injustiças que ocorrem, é claro, pois o sistema não é perfeito. Mas não é a maioria. Geralmente, quando a pessoa está na cadeia é porque houve um crime violento ou se trata de uma reincidência muito grande”, ressalta.