Uma decisão da Justiça de Goiás substituiu a prisão preventiva de uma advogada vegana que estava presa por suspeita de integrar uma organização criminosa envolvida em lavagem de dinheiro e jogos de azar por liberdade provisória. Segundo o despacho proferido em 3 de dezembro, pela juíza Placidina Pires, da Vara dos Feitos Relativos a Organizações Criminosas e Lavagem de Capitais, não é possível manter a detenção uma vez que o Estado não é capaz de fornecer a alimentação adequada.
“Observo que, não obstante tenham sido preenchidos os requisitos para a decretação da prisão preventiva, verifico que, nesta oportunidade, a defesa técnica demonstrou que, por ser vegana, necessita de alimentação adequada (entre frutas, verduras e leite integral), que não é fornecida pela unidade prisional. (...) Entendo que se mostra necessária a substituição da prisão preventiva da advogada por medidas cautelares diversas da prisão preventiva, diante da impossibilidade de o Estado fornecer a alimentação adequada de que a paciente necessita”, informou a magistrada no despacho.
Ao pedir a liberdade provisória, a defesa da advogada alegou que ela se alimentava apenas de cenoura e quiabo, o que a teria levado a internamento médico. Na decisão, a juíza admite que a defesa não conseguiu comprovar a internação da advogada devido à má alimentação, mas isso não mudou o seu parecer.
Com a decisão, a advogada passa a utilizar tornozeleira eletrônica, está obrigada a comparecer a todos os atos do processo a que for intimada e não pode mudar de endereço sem prévia comunicação ao juízo.
Decisão foi precipitada, avaliam juristas
Na avaliação de Douglas Lima Goulart, especialista em Direito Penal e sócio do escritório Lima Goulart e Lagonegro Advocacia Criminal, a juíza Placidina Pires errou ao não questionar a administração penitenciária quanto à possibilidade de adequação da dieta da detenta e optou pelo caminho mais fácil ao decidir por conceder a liberdade provisória.
“O que costuma acontecer diante de pedidos correlatos por más condições das penitenciárias é a autoridade judicial requisitar informações da autoridade penitenciária para entender o que está acontecendo e se há formas de contornar o problema”, afirma o jurista. “Ela não foi a fundo no problema e, fazendo isso, ela não aprofunda a discussão e sai pela via fácil”. Goulart reforça que a readequação para que a detenta se sentisse mais confortável quanto à sua alimentação dentro da penitenciária seria perfeitamente viável, uma vez que no local em que a advogada estava detida há adequações aos presos que precisam de dietas especiais.
O jurista André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Filosofia do Direito e professor-visitante da Universidade de Navarra (Espanha), reconhece que há uma dificuldade por parte do sistema prisional brasileiro quanto a atender opções alimentícias como o veganismo. Ele reforça, no entanto, que o caso em questão deveria ser resolvido de forma administrativa, com a Justiça buscando entender a viabilidade de uma eventual adequação da dieta da detenta para, então, haver uma decisão judicial. Em uma situação como essas a tendência, aponta o jurista, é tentar resolver o problema mantendo a prisão. “Uma decisão pela liberdade provisória só se justificaria diante da impossibilidade administrativa de se contornar a situação, ou seja, caso a unidade prisional não pudesse se adequar às necessidades de alimentação da detenta”, observa.
Quanto ao entendimento da juíza de que “se o Estado não é capaz de fornecer a alimentação adequada, não há como manter a detenção”, Fernandes entende que isso pode se aplicar se houver riscos à integridade física ou ao direito à saúde do detento. “Se a pessoa tem rejeição à lactose ou ao glúten, por exemplo, tem que analisar o caso concreto e identificar se pode ou não haver substituição. Tudo o que for relativo a restrições alimentares deve ser analisado caso a caso”, afirma.
A reportagem questionou o Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), bem como a Polícia Penal de Goiás sobre a ocorrência de uma consulta prévia por parte da Justiça à unidade prisional para identificar se haveria condições de adequar a dieta da detenta, porém não obteve a informação até o fechamento desta reportagem.
Quanto à alimentação dos detentos, a Gerência de Apoio Administrativo e Logístico da Polícia Penal de Goiás encaminhou uma nota à Gazeta do Povo informando que em casos excepcionais (detentos diabéticos, hipertensos ou com doenças gastrointestinais, por exemplo) são realizadas dietas especiais e que o cardápio das três refeições diárias (dejejum, almoço e jantar) oferecidas aos custodiados segue critérios nutricionais.
Dieta vegana no sistema prisional brasileiro
Douglas Lima Goulart aponta que o caso em questão poderia ter sido melhor aprofundado, já que trata de um tema que vem ganhando mais relevância no Brasil. “Nos Estados Unidos, a realidade hoje é que nos presídios federais já é servido um cardápio especial para a pessoa que se autodeclara vegana, budista ou que possui outra objeção de consciência. No estado da Califórnia isso também já é estabelecido como direito, apesar de o mesmo não ocorrer na maioria das penitenciárias estaduais”, explica.
O advogado destaca que, na Inglaterra, o debate sobre alimentação especial a detentos por questões filosóficas ou religiosas atingiu maior extensão. “Lá foi reconhecido de forma ampla o direito aos presos veganos de obterem não apenas a alimentação, mas também materiais de sua internação penitenciária (como sandálias, roupas e pastas de dente) que não afrontem os princípios do veganismo”, relata. No país há um grupo chamado Vegan Prisoners Support Group (VPSG) que presta apoio aos veganos detidos sob custódia policial ou no sistema prisional do Reino Unido. O grupo fornece cartilhas para os detentos e atua buscando garantir que a dieta vegana da prisão sejam nutricionalmente saudáveis e que roupas, produtos de higiene e cuidados corporais veganos sejam disponibilizados ou possam ser encomendados ou enviados para os detentos.
Quanto à adequação do sistema prisional brasileiro para atender integralmente as necessidades de detentos veganos, André Gonçalves Fernandes, que foi juiz de Execução Criminal até o ano passado, avalia a questão como algo distante. “Pela minha experiência essa é uma questão secundária diante de tantos problemas do sistema prisional brasileiro. Há muitos problemas que precisam ser resolvidos antes”, destaca.
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