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Justiça

Dez anos depois, liberação do aborto em casos de anencefalia é pretexto para abusos

(Foto: Pixabay)

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Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, há dez anos, que o aborto de fetos anencefálicos não é crime, cometeu vários erros graves, avaliam juristas e médicos.

Um deles foi o de assumir o papel de legislador - o que se chama normalmente de “ativismo jurídico” -, prática que fere a divisão de poderes previstos em uma democracia. A consequência desse ato do STF foi a criação de mais um caso em que o aborto não é punido - os outros dois são gravidez em decorrência de estupro e risco de vida para a mãe.

A decisão tomada pelo Judiciário não permitiu ampla discussão sobre o tema com a sociedade e também não se deu no local correto em que deveria ocorrer: no Congresso Nacional.

Outro equívoco foi dar uma sentença de morte a crianças que poderiam ser viáveis – o diagnóstico de anencefalia nem sempre é exato e muitos bebês podem ser "eliminados" sem o devido cuidado. Na mesma linha, outra falha seria a possibilidade de eugenia, ou seja, dar apenas aos "mais perfeitos" a permissão para viver. Outro ponto muitas vezes desprezado são as consequências físicas e psicológicas para a mulher que aborta o próprio filho.

A decisão tomada pelo STF também se tornou pretexto para que outras instâncias do Poder Judiciário entendessem que seria legal o aborto de bebês que tenham alguma enfermidade, muitas delas com desenlace imprevisível. Desde abril de 2012, utilizando a decisão do STF, diversos magistrados permitiram a morte de crianças com outras enfermidades por meio do aborto por apresentarem “risco” de não serem viáveis fora do útero.

No caso da anencefalia, caracterizada pela ausência da calota craniana, é possível identificar o problema a partir das 12 semanas de gestação. Mas existe a probabilidade de o diagnóstico não ser preciso.

“Não há capacidade plena de prever o futuro. Então, temos casos de crianças que sobreviveram alguns anos. Não há como ter uma total previsão, pois é algo em desenvolvimento. Existem casos também que há um erro total. Por exemplo, crianças diagnosticadas com anencefalia durante a gravidez, mas depois nasceram com uma lesão leve ou até sem nenhuma lesão”, explica a presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, que também é doutora em Microbiologia e Imunologia.

E mesmo que houvesse a certeza de um diagnóstico seguro, a permissão do aborto, frisa a especialista, não é a solução, além de facilitar abusos. “Quando se abre exceções, isso vai sendo ampliado. Há países que não há mais crianças com Síndrome de Down. Vai se criando uma mentalidade eugênica. De certa forma, o aborto da criança com anencefalia se relaciona também com a eutanásia. Se for matar porque há uma pequena expectativa de vida, com um idoso pode acontecer o mesmo processo”, diz. “Não considerar o direito à vida a uma pessoa que é deficiente, além de ser eugenia, é uma desconsideração ao direito da criança. É muito contraditório, pois temos um reconhecimento muito grande dos deficientes”, afirma.

Além do ativismo jurídico

O procurador do Estado de Sergipe, José Paulo Veloso, lamenta que a decisão tenha sido tomada pelo Poder Judiciário, mas ressalta que a morte de uma pessoa também não poderia ser aprovada pelo Poder Legislativo. “Considerando a vida como um direito inviolável, o Legislativo e o Judiciário não podem expedir uma autorização de morte. O feto é indefeso, inocente e tem o direito à vida”.

O procurador também argumenta que em caso de colisão de direitos fundamentais, como aborto em crianças com anencefalia, deve-se tentar proteger as duas vidas, ou seja, a da mãe e a do bebê – lembrando que a mãe também sofre física e moralmente com a interrupção da gravidez, mesmo que tenha decidido realizar o procedimento. “O STF julgou que obrigar uma mãe a prosseguir com a gestação, em caso de anencefalia, pode violar os direitos fundamentais dela. Contudo, quando se elimina uma vida, suprimiu todos os direitos [do bebê]. Quando se aniquila a criança para proteger a mãe, não está dando nenhum direito ao feto”.

O fato de ser uma pessoa viva – não natimorta, como argumentaram alguns ministros no julgamento de 2012 – garante ao feto a proteção da vida prevista na legislação até a espera do seu fim natural, afirma o procurador. “Quando se estabeleça um critério a partir do qual identifico o que é a vida humana, as oportunidades começam a ser infinitas. O ser humano deve ser protegido e seguro desde o momento da concepção. Caso não utilize esse critério, as oportunidades são infinitas e a vida humana começa a ser vulnerável”, explica o procurador.

Também a filosofia apresenta argumentos em oposição à decisão do STF. Segundo o professor de Filosofia e mestre em Direito, com ênfase em Ética e Filosofia do Direito, Mario Ribeiro, a teoria personalismo-funcionalista teve influência nessa descriminalização. “No século XX, alguns autores vão dizer que a humanidade é dividida em duas. Aqueles racionais que exercitam a razão e, do outro lado, pessoas não racionais — que não exercitam a razão. O problema é que as pessoas racionais têm direitos e pessoas não racionais não têm direitos”. Dessa forma, apesar de o bebê com anencefalia ser um humano, de acordo com essa teoria de pensamento, o anencefálico não é pessoa, porque não exerce a razão.

“Só será um ser racional após o nascimento. Desse modo, o Supremo dirá que não é pessoa por não ter cérebro ou a formação neural não estar completa e, sendo assim, não é pessoa. Se for pessoa, terá um direito menor do que a mãe”.

O risco de o Brasil imitar a Colômbia

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) enfatiza que toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Ainda assim, a decisão do Supremo coloca em xeque essa declaração. E a possibilidade de ser flexibilizar os abortos de crianças com outras enfermidades poderia futuramente dar margem para que o STF imite a Colômbia. Esse país descriminalizou - por meio do Poder Judiciário - o aborto até praticamente seis meses de gestação, quando a criança é viável fora do útero – ou seja, um infanticídio.

Os grupos abortistas, que recebem recursos internacionais para pressionar pela legalização total do aborto, têm tido pouco sucesso no Congresso e, por isso, tentam impor a prática no “tapetão”, por via judicial. E a possibilidade de tramitação rápida no STF é alta, tendo em vista os casos frequentes de ativismo judicial dos ministros e suas posições amplamente conhecidas favoráveis ao aborto.

“A meta progressista, desde o começo, é a de aumentar as hipóteses em que o aborto é permitido, até chegar ao ponto da descriminalização total. Se não houver uma reação bastante vigorosa por parte da sociedade, em pouquíssimo tempo, o Supremo Tribunal Federal poderá legalizar o aborto totalmente”, opina o procurador José Paulo Veloso.

Mães que foram até o fim

Mulheres que levam a gravidez até o fim em casos de crianças com anencefalia relatam os benefícios psicológicos de acompanhar o filho até a sua morte natural e a pressão que sofreram para abortar. A auxiliar de escritório Karina Medeiros, por exemplo, descobriu que estava grávida em setembro de 2020. Casada e mãe de uma criança de 8 anos à época, Karina esperava o segundo bebê, uma menina. No entanto, com 12 semanas, o médico de Karina disse que ela estava gestando uma criança com anencefalia. Residente de Itabela (BA), a baiana buscou diversos especialistas e todos apresentavam o mesmo diagnóstico. Após as confirmações, o especialista sugeriu que Karina realizasse o aborto.

“Eles (os médicos) falaram que o bebê seria ‘incompatível com a vida’. Todos os médicos diziam que não era ‘compatível com a vida’, mas não falavam a palavra aborto. Para eles, era como se não fosse uma criança. Da maneira como o especialista dizia, era algo normal. Como se aquela criança dentro de mim não tivesse vida”, conta Karina.

A baiana não aceitou realizar a interrupção da gravidez - mais um eufemismo para o aborto - e decidiu continuar com a gestação. Mariana, filha de Karina, nasceu em abril de 2021 e faleceu após o parto. Karina acredita que foi a melhor decisão a de prosseguir com a gestação, mesmo com as dificuldades. “Vejo que era uma vida e que eu não tirei”, afirma.

Aguardar o percurso natural da vida do filho, para respeitar sua existência, também foi a decisão de Márcia Tominaga. Ela e o marido, Paulo Tominaga, descobriram a gravidez em dezembro de 2002. Com 12 semanas, o médico diagnosticou que o bebê estava com acracia, que resultaria em um quadro de anencefalia. “O médico sugeriu o aborto, mas, na mesma hora, eu falei que não queria”. O filho deles, Felipe, nasceu em 17 de junho de 2003. Durante os 20 minutos de vida do segundo filho de Márcia e Paulo, o menino recebeu afeição dos pais. Segundo Márcia, Felipe é lembrado com carinho entre os 9 filhos do casal.

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