O observador mais atento provavelmente já notou que a Câmara dos Deputados está longe da excelência em qualidade legislativa. Mas, por vezes, alguns parlamentares conseguem se destacar (negativamente) da já baixa média dos colegas. Com o encerramento do ano, a Gazeta do Povo analisou centenas de Projetos de Lei e Propostas de Emenda à Constituição apresentados por deputados federais em 2022. A conclusão: muitas das proposições são absurdas, ilógicas ou incompreensíveis. Entre os exemplos, estão uma proposta que cria uma licença menstruação e outra que regulamenta a profissão de influenciador digital.
A chance de que esses projetos sejam engavetados aproxima os 100%. E os deputados sabem disto: como podem apresentar quantas propostas quiserem, muitos parlamentares usam os projetos de sua autoria para acenar ao seu eleitorado. Mas, embora possa parecer que as propostas pitorescas são inofensivas, existe um custo associado à tramitação. O tempo de assessores e técnicos do legislativo envolvidos, por exemplo, não sai de graça.
A Gazeta do Povo compilou uma lista de projetos de lei absurdos ou pouco realistas apresentados em 2022
1) Licença menstruação
Projeto: PL 2798/2022
Autor: Carlos Bezerra - (MDB/MT)
Trecho: "A empregada poderá se afastar do trabalho por até 2 (dois) dias ao mês, durante o período menstrual."
A versão original do projeto falava em três dias de licença por mês. Mas, em sua justificativa, o deputado afirma que, como "a proposta não teve a acolhida que esperávamos nas comissões temáticas", decidiu reduzir o número para dois. Segundo ele, "a proposta tem origem em estudos científicos e é defendida por médicos". Não é difícil ver como a medida prejudicaria o acesso das mulheres terem acesso ao mercado de trabalho.
2) Ausência no trabalho para acompanhar animal no veterinário
Projeto: 2925/2022
Autora: Renata Abreu (Podemos-SP)
Trecho: "O empregado poderá deixar de comparecer ao serviço sem prejuízo do salário por 1 (um) dia por ano para acompanhar animal doméstico em consulta veterinária."
A proposta estende aos "pais de pet" a mesma prerrogativa garantida a pais de crianças (humanas), embora de forma limitada. Para a autora, que se apresenta como defensora da causa animal, há bons motivos para a aprovação da lei. "Situações em que os animais apresentem doenças podem causar reflexos nos tutores e, por conseguinte, provocar abalos no ambiente de trabalho", explica ela, na justificativa do projeto.
3) Cuidado com pets no currículo escolar
Projeto: PL 2690/2022
Autor: José Nelto (PP-GO)
Trecho: "Fica instituído o Programa de Educação para Posse Responsável de Animais Domésticos nas instituições de ensino público e privado."
Este projeto pertence a uma categoria popular entre os deputados: as propostas que trazem os mais diversos temas à sala de aula. Como o tempo de ensino e os recursos são finitos, a aprovação de propostas como esta implica a redução do conteúdo básico, como matemática e português. Neste caso, a ideia é ensinar os alunos a tratar bem os próprios animais de estimação.
4) Criminalização da gordofobia
Projeto: PL 2671/2022
Autor: Nereu Crispim (PSD-RS)
Trecho: "Qualquer ato de gordofobia é considerado crime, passível de pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos."
Embora casos de discriminação em função do peso sejam condenáveis, a lei atual já é capaz de lidar com estes casos. A proposta de Nereu Crispim é falha porque não define o que considera discriminação contra as pessoas acima do peso - e nem mesmo traça um critério claro para que alguém seja considerado gordo. Além disso, da forma como o texto foi escrito, a lei se aplica também a pessoas que venham a ser discriminadas por serem muito magras – o que não era a intenção do autor.
5) Obrigatoriedade do suco de uva no cardápio escolar
Projeto: PL 2568/2022
Autor: Bibo Nunes (PL-RS)
Trecho: "Os cardápios da alimentação escolar deverão incluir o suco de uva integral, sem adição de açúcar e com certificado de qualidade nutricional conferido por entidade representativa do setor vitivinícola cadastrada no Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, a ser ofertado ao menos uma vez por semana, na forma do Regulamento."
A lei Lei 11.947/ 2009, que trata do cardápio escolar e seria modificada por este projeto de lei, não traz diretrizes específicas sobre o que deve ser servido aos alunos. Ou seja: se o projeto de Bibo Nunes prosperasse, o suco de uva integral seria o único item obrigatório do cardápio. Além disso, o uso de uma lei federal para tratar do tipo de suco servido em sala de aula parece um excesso. A propósito, o Rio Grande do Sul, estado de Bibo Nunes, é o maior produtor de suco de uva do Brasil.
6) Atualização das normas para a profissão de corretor de moda
Projeto: PL 2541/2022
Autor: Eduardo Bismarck (PDT-CE)
Trecho: "Compete exclusivamente ao corretor de moda, habilitado e capacitado nos termos desta lei, exercer a intermediação entre os estabelecimentos comerciais e fábricas e os clientes na compra e venda de artigos têxteis e de moda, tanto no comércio atacado como no varejo."
A profissão de corretor de moda já havia sido regulamentada pela Câmara dos Deputados em 2018. Mas isto parece não ter sido o suficiente na avaliação do deputado Eduardo Bismarck. O texto apresentado por ele define, dentre outras coisas, até mesmo a taxa de comissão (10%) a ser paga ao corretor de moda em cada compra fechada por ele. O projeto também cria uma reserva de mercado em uma categoria em que isto é desnecessário.
7) Regulamentação da profissão de influenciador digital
Projeto: 2347/2022
Autor: José Nelto (PP-GO)
Trecho: "Para regulamentação dessa profissão se faz necessário apresentar conhecimento técnico, representado por um título de graduação que envolva assuntos relacionados à área em atuação."
Nada escapa à vontade de um legislador brasileiro de criar normas e mais normas. O projeto de José Nelto dá origem à figura do Influenciador Digital Profissional (assim, com maiúsculas). O texto prevê que, para pertencer à categoria, eles passem por um cadastro do e dependam de uma autorização do Executivo. E dentre os projetos de lei apresentados em 2022, este não é o único a tratar do assunto. O deputado Mário Negromonte Jr. (PP-BA) é autor de um projeto de lei parecido parecido.
8) Inclusão de cães e gatos no Censo
Projeto: PL 1739/2022
Autor: Sóstenes Cavalcante (PL-RJ)
Trecho: "O censo demográfico realizado periodicamente pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, nos termos da Lei nº 8.184, de 10 de maio de 1991, deve incluir a contagem domiciliar de cães e gatos no País."
O autor da proposta, que não tem precedentes, garante que o projeto é importante para a saúde pública, já que permitiria dados mais precisos sobre o número de animais domésticos no país. Para ele, estimativas feitas com base em amostragens não são suficientes para calcular o número de gatos e cachorros de forma adequada. "Os cães e gatos são importantes sentinelas de doenças humanas, pois compartilham o mesmo ambiente de seus tutores e, frequentemente, comem a mesma comida, bebem a mesma água, dormem na mesma cama e fazem companhia em viagens", ele diz.
9) Dia Nacional do Influenciador Digital
Projeto: PL 2878/2022
Autor: Luis Miranda (Republicanos-DF)
Trecho: "Art. 2º É instituído o Dia Nacional do Influenciador Digital, a ser comemorado, anualmente, em 30 de novembro."
Outra proposta que dificilmente será lembrada como um dos melhores projetos de lei apresentados em 2022. Repleta de pérolas, a justificativa do projeto assim define a categoria homenageada: "Um influenciador nada mais é do que uma pessoa capaz de criar conteúdo de forma incessante, baseado em inovação, humor, velocidade de raciocínio, carisma, poder político e, de preferência, beleza." Nada mais precisa ser dito.
10) Rádio obrigatório no celular
Projeto: PL 3055/2022
Autor: Alex Santana (Republicanos-BA)
Trecho: "Todos os equipamentos do Serviço Móvel Pessoal comercializados no Brasil devem ser embarcados com tecnologia de recepção de sinais de radiodifusão sonora em Frequência Modulada – FM, sendo vedada a desabilitação em equipamentos terminais que dispõem dessa funcionalidade."
Além de criar uma obrigação descabida ao decidir, por lei federal, que um aplicativo deve estar incluído em todos os celulares do Brasil, o texto tem o cuidado de vedar a desabilitação da função. O deputado alega que a medida tem o objetivo de "facultar o acesso da população a uma nova fonte de informação". Além de ter um mérito questionável, a proposta é inadequada porque propõe uma lei federal para tratar de um assunto que pode ser definido por meios mais simples, como uma portaria da Anatel.
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