Homens e mulheres usam estratégias distintas para resolver os mesmos problemas, reflexo das particularidades dos cérebros masculino e feminino. Mas, para a médica italiana Marina Bentivoglio, as diferenças não privilegiam nenhum dos sexos e apontam para uma complementaridade. Professora da Universidade de Verona, Marina é uma das mais importantes neurocientistas em atividade. Semana passada, ela veio ao Brasil para a 5.ª Escola Latino-Americana de Epilepsia, em Guarulhos. O evento reuniu médicos de diversos países latino-americanos e especialistas em neurociência e epilepsia de renome internacional. Leia os principais trechos da entrevista.
Quais as diferenças entre os cérebros feminino e masculino?
Há diferenças fisiológicas: a sensibilidade a determinados neurotransmissores, a distribuição de receptores, particularidades estruturais, o volume de sinapses... Mas o significado prático dessas diferenças ainda é motivo de controvérsia. Alguns fatos são evidentes. Na mulher, o cérebro prioriza funções relacionadas à maternidade e ao cuidado dos filhos, necessárias para a conservação da espécie. Mas, do ponto de vista da organização social, as diferenças nos cérebros de homens e mulheres são comparáveis às particularidades encontradas entre cérebros de pessoas do mesmo sexo. O cérebro feminino, por exemplo, é muito verbal, apto para a comunicação. Mas há homens que se comunicam bem e mulheres nem tanto. Natureza e sociedade exercem cada uma a sua influência.
O que é construção social ou biologia na mente?
É difícil diferenciar, pois o cérebro é dinâmico. A organização dos circuitos cerebrais influencia a experiência e a experiência modifica esses circuitos. Há um contínuo interagir entre natureza e educação, entre nossos circuitos cerebrais e a experiência concreta. Mesmo na velhice, nosso cérebro continua plástico, disposto a aprender, a se adaptar.
A monogamia fundamenta-se na biologia ou na cultura?
Essa questão envolve também cultura, antropologia, sociologia. Não sou especialista nestas áreas. De qualquer forma, nós sabemos, por estudos com outros mamíferos, que o cérebro de um animal monógamo é diferente do cérebro de um promíscuo: há diferença na concentração e distribuição de determinadas substâncias. No caso dos humanos, convém lembrar dois dados. Nem todas as culturas humanas são monógamas. Mas a monogamia tem sido privilegiada na nossa história evolutiva e na organização social Mesmo assim, permanece aberta a questão: foi o cérebro que influenciou essa preferência ou foi essa preferência que influenciou a organização do cérebro? Sinceramente, não sei a resposta. É provável que a regra da monogamia seja ditada pela experiência e a experiência molde o cérebro.
O cérebro feminino lida melhor com a linguagem e o masculino é mais apto para processamento espacial. Mito ou realidade?
É o que aponta boa parte da literatura científica. Tais particularidades estão relacionadas ao processo de lateralização do cérebro (quando determinadas funções passam a ser controladas em larga medida por um dos hemisférios cerebrais direito ou esquerdo). A lateralização aumenta a especialização para determinadas atividades. Acredita-se que o cérebro do homem é mais lateralizado. Mas, se é verdade que o cérebro da mulher é menos lateralizado, isso não significa que seja menos perfeito. Significa somente que é mais plástico. Provavelmente, na história evolutiva, as mulheres precisaram enfrentar e controlar um rol maior de situações no ambiente: coleta de alimentos, controle da prole. Um cérebro menos lateralizado e, portanto, menos especializado, estaria pronto para um número maior de cenários.
E na resolução de problemas concretos? Há alguma diferença?
A opinião mais difundida é que em várias situações homens e mulheres usam estratégias diferentes para resolver problemas, embora essa não seja uma questão fechada. Poderíamos citar, como exemplo que confirma essa tese, as diferentes estratégias de aprendizado. Uma das coisas mais importantes para a nossa existência é o que conhecemos como mecanismo de recompensa: o prazer que o cérebro oferece quando realizamos atividades importantes para a manutenção da vida. Não tenho dúvidas de que esse mecanismo é diferente em homens e mulheres: ter um filho, por exemplo, oferece uma satisfação diferente para cada um. Mais uma vez, é difícil precisar qual é essa diferença - em parte cultural, em parte biológica.
Há trabalhos em que as mulheres se sairiam melhor do que os homens ou vice-versa?
Acredito que não. Naturalmente, nos trabalhos em que massa muscular é importante, os homens podem ter um desempenho melhor. Mas, do ponto de vista do cérebro, não creio que existam trabalhos mais adequados para homens ou mulheres. Somos 7 bilhões de pessoas no mundo Não convém recorrer a categorias binárias. Você vai encontrar homens e mulheres com talento para algumas coisas e sem aptidão para outras. Mas não acredito que seja justificável uma separação dos trabalhos por gênero. Para qualquer um é uma questão de treino. Devemos procurar todos os dias novos estímulos: descobrir novos caminhos para voltar para casa, ler livros diferentes dos que estamos acostumados. Vale o princípio: use (o cérebro) para não perdê-lo.
Como o cérebro se adapta às mudanças no ambiente?
Mudar estruturas no cérebro leva milhões de anos. Por isso, as mudanças mais comuns são marginais: regulação de sinapses, interações entre neurônios e células não neuronais etc. Ou seja, o hardware já está lá. Mas há algo como um software de modulação que atua de forma quase imediata para realizar a adaptação. Às vezes, em poucos minutos. Sua atuação depende do ambiente físico e cultural onde a pessoa está inserida. Por exemplo, uma mulher na savana e outra no norte da Europa têm diferentes prioridades e o cérebro se adapta a essas distintas prioridades. O hardware para os dois sexos é muito parecido. Mas alguns ajustes finos do software dependem das prioridades de cada indivíduo e tais prioridades dependem do gênero e do contexto social. Convém lembrar que os neurônios sempre atuam em conjunto. Nunca isolados. Se o estado de um neurônio muda, centenas ou milhares também mudam ao seu redor. Realmente funciona como um arranjo social. Essa modulação no estado dos neurônios ocorre a todo momento. Isso é, afinal, a essência da vida. O cérebro não é estático. Como a vida, ele se reorganiza sempre.
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