O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino fez um tweet no qual comenta sobre o sistema judiciário de “um país” que condenou 750 pessoas “em razão de uma invasão violenta ao edifício-sede do Poder Legislativo”. A escrita ambígua dá aos leitores uma primeira impressão de que o ministro estaria falando do Brasil e dos atos do 8 de janeiro. Só no parágrafo seguinte, Dino foi claro ao acrescentar que “tem sido assim nos Estados Unidos da América. Parabenizo o seu Judiciário por esse importante trabalho em defesa da Liberdade”.
A ambiguidade de Dino faz uma comparação, ainda que nas entrelinhas, do julgamento da invasão ao Capitólio em 2021 nos Estados Unidos com o dos atos do 8 de janeiro de 2023, no qual manifestantes entraram em prédios públicos na Esplanada dos Ministérios.
Apesar de os acontecimentos possuírem algumas semelhanças, os julgamentos que aconteceram nos dois países possuem diferenças consideráveis. A reportagem da Gazeta do Povo listou três delas.
1. Julgados por juízes naturais do caso
Nos Estados Unidos, os vândalos que entraram no Capitólio, prédio central do Poder Legislativo, foram julgados pelos juízes federais da cidade de Washington, Distrito de Colúmbia. O mesmo deveria acontecer no Brasil. Os juízes naturais do ato dos 8 de janeiro seriam os juízes federais do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, responsáveis por julgar as ações da esfera federal do Distrito Federal. Nos Estados Unidos, os réus foram levados a júri popular, no qual cidadãos comuns são escolhidos para ouvir os lados da acusação e defesa e decidirem sobre a pena dos acusados.
Mas o Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Judiciário brasileiro, definiu que eles próprios seriam os responsáveis por julgar o caso. O motivo é que, a princípio, pessoas com foro privilegiado estariam envolvidas na organização dos atos e, por isso, caberia ao STF julgá-los. Acontece que, mais de um ano depois, não houve a confirmação de nenhuma participação de pessoas com foro privilegiado, como parlamentares ou chefes de Estado.
“A função da Suprema Corte é verificar apenas se o trâmite, que foi da primeira instância à terceira instância, rompeu em algum momento com a Constituição Federal e não verificar mérito dos casos”, afirma Marcelo Suano, doutor em Ciências Políticas e professor de Relações Internacionais. A própria Gazeta do Povo já registrou que juristas consideram que é erro grave STF julgar os envolvidos no 8 de janeiro.
2. Condutas individualizadas
O site da Justiça Americana do Distrito de Columbia reúne todas as sentenças dadas no caso do Capitólio, o que facilita o acesso pelos cidadãos comuns e pela própria imprensa. Na página destinada a cada um dos sentenciados, há um PDF com as provas apresentadas e a declaração dos fatos. Nesse documento, as provas são descritas de forma individualizada, relacionando as ações do julgado durante a invasão.
No caso de Trevor Brown, por exemplo, o relatório de 16 páginas possui diversas publicações dele nas próprias redes sociais, nas quais ele mesmo afirma que entrou no Capitólio. O documento possui também imagens de câmeras de segurança que demonstram que ele tentava invadir o prédio, fazendo força contra um grupo de policiais. Nas fotos que constam no relatório, Brown aparece diversas vezes e tem o rosto circulado, o que facilita a identificação dele ao cometer os crimes.
A exposição dos fatos é muito diferente dos argumentos fornecidos ao STF contra a maioria dos acusados por vandalismo e outros crimes no 8 de janeiro. A maior parte das denúncias apresenta imagens gerais, sem apontar especificamente provas relacionadas especificamente à pessoa acusada.
Esse modus operandi aparece em casos como o da estudante de medicina da Universidade de São Paulo, Roberta Jérsyka de 35 anos. Thiago Duarte, marido de Roberta, organizou as imagens das câmeras de segurança que registraram os atos do 8 de janeiro para comprovar a inocência da esposa. No vídeo, é possível perceber que a estudante não depredou nada. Entrou no Congresso Nacional pela chapelaria, atravessou os salões Verde e Azul e ficou cerca de quatro horas no plenário do Senado Federal. Durante o tempo que passou, Roberta ficou orando e ofereceu comida a outras pessoas que estavam ali.
Apesar das imagens que mostram que Roberta foi direcionada e acompanhada por policiais, da entrada até a saída, o Supremo Tribunal Federal não considerou as provas apresentadas pela defesa. A teoria adotada pela Corte é a de crime multitudinário, que implica que as pessoas influenciavam umas às outras com o mesmo objetivo. Por ser considerado um crime cometido pela multidão, não houve individualização das condutas.
3. Penas proporcionais
Stewart Rhodes foi considerado um dos principais organizadores da invasão do Capitólio. Segundo as investigações da polícia americana, meses antes, Rhodes já estaria planejando o ataque para impedir a transferência de poder presidencial de Donald Trump para Joe Biden. Isso incluía o deslocamento para Washington, e o transporte e uso de armas de fogo e munições. O grupo comandado por Rhodes chegou a agredir policiais durante a invasão ao Capitólio.
Rhodes foi condenado por um júri por obstrução de processo oficial, adulteração de documentos e procedimentos e conspiração sediciosa. Ele está entre os condenados que receberam as maiores penas: foram 18 anos de prisão e 3 anos de liberdade supervisionada. Joseph Biggs, outro rapaz que estaria na liderança das invasões, pegou 17 anos de prisão e também 3 anos de liberdade supervisionado.
A pena de Rhodes é próxima a da faxineira Edinéia Paiva, de 38 anos, presa com uma bíblia e um terço na mão, embaixo da rampa do Planalto, quando tentava se proteger de bombas de gás lacrimogêneo, no 8 de janeiro de 2023. Ela foi condenada a 17 anos de prisão após a maioria dos ministros do STF entender que ela teria cometido os crimes de associação criminosa armada, golpe de Estado, dano qualificado, abolição violenta do Estado Democrática de Direito e deterioração de patrimônio tombado. No parecer do ministro Alexandre de Moraes não há trechos que tratem diretamente dos crimes cometidos por Edinéia.
Edinéia está mais próxima da situação de Danielle Doyle do que de alguns dos líderes organizadores. Doyle também estava presente na invasão do Capitólio. Nas imagens que constam no processo, ela apenas anda pelo prédio público com o próprio celular na mão, sem causar danos públicos. Por meio de um acordo feito, a pena da garota foi de 60 dias de liberdade condicional, multa de U$ 3000, além do pagamento de U$ 500 para restituição dos danos.
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