Discursos ideológicos e pautas identitárias estão ganhando cada vez mais força na atuação do Ministério Público no Brasil. Conceitos como "racismo estrutural", "racismo ambiental", "discurso de ódio", entre outros jargões da cultura woke e dos movimentos antiliberdade de expressão contemporâneos têm sido mencionados em diversas recomendações, ações e documentos do órgão.
Em novembro, o Ministério Público Federal (MPF) lançou uma cartilha sobre o racismo na atividade policial no Brasil, abusando do emprego de conceitos carregados de ideologia, chamando as penitenciárias de "senzalas contemporâneas" e sugerindo que o pacote anticrime do governo Bolsonaro legalizou "o genocídio em curso nas periferias e favelas".
Também em novembro, o MPF se mostrou favorável às normas do Conselho Federal de Psicologia (CEP) que impedem a influência de crenças religiosas no exercício da profissão de psicólogo. O parecer do MPF se deu em resposta a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo partido Novo e pelo Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) contra normas que vedam a associação de conceitos religiosos a métodos da psicologia.
Outro caso emblemático ocorrido neste ano foi a ação civil pública ajuizada para pedir o cancelamento de três concessões de rádio outorgadas à Jovem Pan. Procuradores acusaram a emissora de promover "desinformação em larga escala" sobre o sistema eleitoral, com "potencial de incitação à violência e à ruptura da ordem democrática". As notícias veiculadas pela Jovem Pan, segundo os procuradores, teriam legitimado a invasão dos edifícios dos Três Poderes em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023.
Em setembro, o humorista Léo Lins se tornou réu em um processo criminal depois que uma denúncia do Ministério Público à Justiça se apoiou na chamada “lei antipiadas”, sancionada pelo presidente Lula (PT) em janeiro. A lei define como crime de racismo piadas sobre grupos considerados minoritários.
Também em setembro, o MPF pediu que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) adotasse medidas para impedir o "abuso de poder religioso" nas eleições para os Conselhos Tutelares, após uma onda iniciada via redes sociais de candidaturas conservadoras para esses órgãos.
Ideologização do MP está em crescimento, mas vem de décadas
Para o jurista Márcio Chila, autor de "Globalismo e ativismo judicial: Ministério Público, agente de subversão social" (2020), a tendência de ideologização do MP não é nova, mas está em crescimento.
O MP, segundo ele, foi um dos primeiros órgãos públicos a sofrer a ideologização que penetrou em todo tipo de instâncias governamentais nas últimas décadas. Mudanças significativas começaram a ocorrer no MP já a partir dos anos 1960, quando ideias de inclinação marxista e de esquerda chegaram ao órgão com a influência de juristas europeus que vieram ao Brasil.
Durante a Constituinte, de acordo com Chila, grupos de promotores esquerdistas em São Paulo ajudaram a moldar a nova cara do Ministério Público em todo o Brasil. Esses grupos tiveram grande influência na Constituinte, o que resultou em um texto constitucional com brechas para um papel mais ativo do MP em questões ideológicas.
Nos anos 1970, diz Chila, já foi perceptível uma tendência ao afrouxamento do sistema penitenciário e das leis de drogas. Depois da Constituição, quando o Ministério Público adquiriu novos poderes e mais recursos financeiros, o ativismo político no órgão aumentou. O MP passou a contestar decisões políticas com base em argumentos de escolas modernizantes do Direito – segundo o jurista, antes mesmo de o Judiciário entrar nessa onda.
Como explica Chila, nos anos 1990 o MP acompanhou a tendência global do Direito ao "sociologismo jurídico", em que a sociologia desempenha um papel mais proeminente na interpretação e aplicação das leis.
"O Ministério Público passou a defender as pautas do neomarxismo. Começa ali com o meio ambiente, mas logo vai se estendendo a todo tipo de questão. Hoje a lista é infindável: sem-teto, sem-terra, quilombolas, povos originários, empoderamento feminino, ideologia de gênero…", comenta.
Determinante nessa guinada são os Centros de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAFs) presentes nos MPs de todos os estados, que dão formação aos novos servidores do órgão . "Quando um promotor chega ao Ministério Público, as primeiras aulas que ele recebe são no CEAF. E as pautas do CEAF são totalmente essas há muito tempo: 'empoderamento' da mulher, questões de gênero, todo o tempo. Os promotores são obrigados a fazer esses cursos", relata. "Se você é mais conservador e não concorda com isso, você provavelmente já ficou para trás no concurso".
Diante disso, para promotores que não compartilham das ideologias dominantes no MP e estão ingressando no órgão, Chila vê um panorama desafiador. Anteriormente, segundo ele, era possível evitar promotorias que lidavam com questões ideologicamente sensíveis. Hoje em dia, contudo, essas questões estão permeando todas as áreas do MP.
"Sempre houve no Ministério Público o princípio da autonomia e independência do promotor, que significa o seguinte: se você é promotor, não é obrigado a concordar com a ideia de todo mundo, desde que aquilo que você está escrevendo, pondo no papel no seu parecer, tenha fundamento na lei, em alguma doutrina – enfim, desde que seja jurídico. Mesmo que não seja majoritário, se é a sua posição, tudo bem. Ali na frente, você pode ser vencido, e o tribunal vai notificar, mas a sua posição está garantida", explica o jurista.
"Só que de pouco tempo para cá tem surgido um movimento para dizer o seguinte: essa independência acabou. Há outro princípio, antes um tanto periférico, que está sendo colocado à frente de todos: o da unidade do Ministério Público. Se o Ministério Público estabelece um posicionamento, o promotor não pode discordar. Um promotor não pode dar um parecer contrário às diretrizes da instituição. E hoje tem diretriz para tudo", explica Chila.
Até alguns anos atrás, segundo o especialista, membros do MP avessos à ideologização acreditavam que era possível criar um movimento interno no órgão para tentar mudar essa situação. Isso mudou.
"Poderíamos tentar eleger um procurador-geral com visões mais conservadoras, encorajar associações a promoverem discussões sobre o assunto e questionar as diretrizes do Ministério Público. No entanto, essa janela de oportunidade parece ter se fechado. Hoje em dia, a mudança deve vir de fora, por meio de parlamentares, mudanças na Constituição e na lei, com o envolvimento da imprensa, com esforço coletivo. Internamente, é extremamente difícil promover mudanças significativas", lamenta.
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