Entre o fim de janeiro e meados de fevereiro, o curitibano João Amauri Geronasso, 65 anos, costuma mandar às favas duas boas companheiras do verão – a casa da praia e a máquina de cortar grama. A ordem é fazer vinho. Vinho de quintal. Para tanto, bastam R$ 1 mil para comprar uvas em Caxias do Sul e 15 metros quadrados, tamanho da adega que mantém nos fundos de casa – que fica de frente para uma ensurdecedora via rápida. Apesar de minúsculo, o puxadinho guarda duas jóias de família – um tonel centenário e uma moenda a manivela, herdadas do pai e do avô de "seu Nenê", como João é conhecido.

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O costume dura nada menos do que 120 anos, desde a época em que Ludovico Geronasso chegou da Itália e ficou famoso por ser um imigrante absolutamente incomum. Tinha dinheiro no bolso – inclusive para voltar à Europa, coisa rara então – e comprou uma fazenda nos arredores de Curitiba, área quase exclusiva de seus descendentes. Virou lenda. Hoje, os Geronasso somam perto de mil pessoas, as terras viraram o bairro da Boa Vista e Nenê, até que provem o contrário, é o representante exclusivo do clã que se dedica à única tradição que fazia de seu antepassado um italiano como todos os outros – a arte de fazer vinho.

A festança que já chegou a render 5 mil litros estacionou em 500 garrafas contadinhas. A matança do porco e o povaréu lotando o quintal ficaram para o álbum de retratos. Mas na cantina particular de Nenê – ao lado do tanque e da máquina de lavar roupa – o ritual é o mesmo dos velhos tempos: o vinho não pode ser vendido, apenas dado (sob pena do fogo do inferno), e a paga permanece sendo uma visita e um abraço. "Regra aqui é porta aberta", proclama.

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O veterano, para tanto, permanece à espera de um primo sumido ou de algum conhecido que queira provar um rosado ou um tinto à moda da casa – "sem conservantes", como papagaiam dez entre dez italianos que ainda fazem vinho caseiro. Mas os aparecidos são raros, conta João nos dedos, sem esconder uma gota de saudade. "Naquele tempo era melhor, sim. Hoje tem muita falsidade. A gente se divertia muito mais. O pessoal saía cantando daqui", diz o falante homem dos vinhos, tendo ao fundo seu museu particular de objetos de agricultura presos à parede, oriundos dos tempos em que a região onde mora era um parreiral de causar inveja até nas bandas de Bento Gonçalves (maior região produtora de vinho do país).

De tudo, sobraram poucas parreiras no terreno do lado e a teimosia de seu Nenê. "Passou uma rua perto do Bosque da Boa Vista e levou tudo. Mas vou manter a tradição", avisa o sujeito que por pouco não azedou. Tinha úlcera, só podia beber o pícolo (líquido não-fermentado), mas se curou, garante, com duas homeopáticas doses diárias de vinho Geronasso. "Recomendo."

Dona Líbera Cavalle Strapasson, 82 anos, mora a 11 quilômetros de José Amauri Geronasso, em Colombo, região metropolitana de Curitiba. Também toma os tais dois cálices milagrosos de "vinhinho", como diz, no almoço e no jantar, segundo ela, um santo remédio para veias entupidas do coração. A receita, garante, tem o aval dos médicos que descem a estradinha de chão do bairro Sapopema e se somam à freguesia que consome 100 mil garrafas produzidas pelos Strapasson a cada ano. Há 60 anos, quando a "famiglia" abriu a porteira e essa história começou, eram 500 litros.

Tirando a artrose nos joelhos, que a obriga a andar de bengala pela chácara de um alqueire, Líbera permanece a nonna de sempre: é o cartão de visitas da Vinícola Pedrinho Strapasson. "Sou a mais velha dos novos. Os mais velhos do que eu, todos se foram." O estabelecimento integra o Circuito do Vinho, mas antes de virar ponto turístico do município funcionava como um daqueles "achados" que atraía gente de tudo que é canto. "O senhor acredita que tenho um freguês que vem de Araçatuba e outro de Brasília?", pergunta Líbera. Não, ninguém duvida.

"O povo está procurando algo que não seja industrial, que tenha raízes. Quer comer frango caipira", interpreta Pedro Hamílton Strapasson, 50 anos, o Pedrinho, agricultor-empresário que se acostumou à freguesia que se emociona com a plantação, com o pinheiral em frente e que se entrega a um prato de polenta e radite como se fosse a última refeição de um condenado. Não lhe espanta, por essas e outras, que tanta gente – como João Amauri Geronasso – bata o pé e continue produzindo em casa. Ele mesmo conhece vários heróis da resistência. "Nas Mercês, tem um que faz com o pé. E aqui em Colombo, um português, o Nelson Goulart, já está produzindo vinho. Como é que a gente foi deixar um português se criar com os italianos?", brinca.

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