No fim de 2020, uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) autorizou visitas íntimas a menores infratores que estão em unidades socioeducativas. O mesmo documento permitiu que casais formados entre adolescentes possam permanecer “no mesmo alojamento, sendo levado em conta o direito ao exercício da sexualidade, da afetividade e da convivência”.
O objetivo geral da resolução era estabelecer novas diretrizes relacionadas a questões de gênero no atendimento de adolescentes nessas unidades. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que abriga o Conanda, enxergou graves riscos ocasionados pela resolução para as crianças e adolescentes do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).
O secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício Cunha, afirma que o ministério recebeu com perplexidade o resultado da votação. “A resolução é equivocada. Não leva em consideração que a criança e o adolescente estão em especial condição de desenvolvimento e, portanto, precisam ser protegidos. A gente sabe que dentro dessas unidades socioeducativas, muitas vezes, existe a questão da lei do mais forte. É o mais forte coagindo o mais fraco. Quem me garante que uma menina de 17 ou um menino de 17 não vai coagir um menino de 13 a coabitar, dizendo que eles têm uma relação? Abre espaço, sim, para abusos e violências físicas”, afirma ele.
Para ele, ao liberar as visitas íntimas e permitir que casais formados dentro das unidades permaneçam no mesmo alojamento, a resolução contraria um princípio básico da existência do Sinase, de proteção das crianças e dos adolescentes.
“O adolescente não pode entrar num motel, no Brasil, mas ele pode ter relação dentro de uma unidade socioeducativa. É realmente um absurdo”, critica.
Ele também reprova um artigo da resolução que fala em vedar qualquer tipo de sanção a expressões de afeto, "incluindo abraços, beijos, apertos de mãos, trocas de bilhetes e cartas, entre outros". “Nem numa escola normal isso é permitido. Em uma unidade em que os adolescentes estão para ressocialização e que precisam de certa disciplina e de proteção, quem me garante que isso não vai ser usado para haver cooptação das mais velhas pelas mais novas?”, questiona o secretário.
Confira a entrevista com Maurício Cunha na íntegra:
Como o MMFDH recebeu a decisão
“Nós lamentamos a decisão profundamente. Esclarecemos para a sociedade que o Conanda é um órgão colegiado, composto por 28 membros titulares e 28 suplentes, e que metade é de organizações da sociedade civil e metade de órgãos do governo. Nós, como Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, nos posicionamos contrariamente, assim como todos os representantes governamentais do Conanda, a esta resolução, por entendermos que ela contraria os interesses das crianças e adolescentes, que ela não protege as crianças e adolescentes – pelo contrário, expõe os mais vulneráveis a riscos dentro das unidades socioeducativas –, por entendermos que ela contraria o direito das famílias, também, de proteger as suas crianças e adolescentes que estão no sistema socioeducativo e porque ela está totalmente fora das prioridades do sistema socioeducativo no Brasil”.
Texto não fala em faixa etária e abre brecha para abusos
“Tem a brecha porque o texto é omisso. Ele permite, primeiro, a visita íntima. Aí eles vão alegar que a lei do Sinase já permite essa visita, e de fato o artigo 68 do Sinase permite a visita, para adolescentes que são casados ou têm uma relação estável – ora, uma relação estável pública, que vise a constituição de uma família, para um adolescente de 16, 17 anos já é uma coisa muito rara, mas, tudo bem, vão dizer que a lei do Sinase já prevê essa visita íntima.
Só que o texto da resolução não aponta idade mínima. Ele coloca que todos os adolescentes podem não só receber a visita íntima como podem ter a manifestação do afeto. A resolução é para as adolescentes, para as meninas, mas a gente sabe que isso acaba valendo como uma norma geral para ambos os sexos. E ela não especifica uma idade mínima. Ora, o Sinase recebe adolescentes a partir dos 12 anos.
O Código Civil diz que qualquer conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos é estupro de vulnerável. O adolescente não tem a maturidade psíquica, segundo nosso ordenamento jurídico, para consentir com uma relação sexual com menos de 14 anos. Então a resolução, ao omitir a idade, sabendo que o Sinase recebe adolescentes a partir dos 12 anos, coloca isso em risco, sim. Porque ela coloca isso como uma norma a ser estabelecida nas unidades.
É lógico que alguns juristas vão dizer: 'Não, mas o Código Civil já diz que é 14, então o gestor da unidade socioeducativa vai obedecer a norma dos 14 anos'. Quem garante?
O segundo ponto são as questões muito mais profundas que dizem respeito ao estabelecimento da ordem dentro de uma unidade socioeducativa. Nós estamos em um espaço de ressocialização. A resolução diz que em todos os ambientes, em todas as situações, o afeto pode ser demonstrado, pode haver demonstrações de carinho, de expressões da sexualidade. Ora, isso não é compatível com uma unidade de ressocialização. Nem com uma escola comum. Nem com um ambiente comum de trabalho.
A resolução é equivocada. Não leva em consideração que a criança e o adolescente estão em especial condição de desenvolvimento e, portanto, precisam ser protegidos. A gente sabe que dentro dessas unidades socioeducativas, muitas vezes, existe a questão da lei do mais forte. É o mais forte coagindo o mais fraco. Quem me garante que uma menina de 17 ou um menino de 17 não vai coagir um menino de 13 a coabitar, dizendo que eles têm uma relação? Abre espaço, sim, para abusos e violências físicas.
Outro ponto é que, muitas vezes, num espaço mais hostil, os mais frágeis buscam proteção nos mais velhos. A resolução pode abrir espaço para uma série de distorções em um ambiente em que deve ser preservada a ordem e se deve trabalhar justamente para a proteção dos adolescentes e para sua ressocialização”.
Discussão sobre relações sexuais no Sinase não era prioridade do momento
“O Sinase tem muitas outras prioridades. Nós temos tantas necessidades no sistema socioeducativo brasileiro… Nós temos exemplos de unidades onde adolescentes ainda não têm a educação correta, onde a escola não funciona direito, onde eles ficam 22 horas por dia dentro de uma cela, não têm atividades de ressocialização adequadas. Há tantas prioridades… Não era hora de trazer a discussão sobre permitir relações sexuais dentro da unidade socioeducativa. Isso é uma imposição de uma agenda ideológica totalmente desconectada da realidade do Sinase”.
Resolução ignora a autoridade da família sobre os jovens
“O artigo 20 diz: 'É vedada qualquer forma de castigo ou punição de qualquer natureza para as adolescentes, independentemente de sua orientação sexual ou de gênero, quando da expressão de afeto, incluindo abraços, beijos, apertos de mãos, trocas de bilhetes e cartas, entre outros, como forma de instauração de procedimento disciplinar ou de sanção.'
Você percebe que o espírito da resolução é permitir que os encontros amorosos aconteçam, também, dentro das unidades, não só para visita íntima externa. Nem numa escola normal isso é permitido. Em uma unidade em que os adolescentes estão para ressocialização e que precisam de certa disciplina e de proteção, quem me garante que isso não vai ser usado para haver cooptação das mais velhas pelas mais novas? A gente sabe que isso acontece, que isso é uma prática nas unidades socioeducativas.
Outro ponto que a gente considera uma violação: onde está o poder familiar nessa resolução? Não aparece. Embora os adolescentes estejam numa unidade socioeducativa, não foi perdido o poder familiar. Eles estão em conflito com a lei. E cadê o consentimento da família para uma união dessa, para um encontro desse, para uma relação dessa, considerando que adolescente está em uma condição de desenvolvimento? Quem me garante que uma adolescente não vai ser iniciada na vida sexual por imposição de uma mais velha?
É algo que não protege as nossas adolescentes, não ressocializa e não é prioridade do sistema socioeducativo. Tanto é que os trabalhadores do sistema socioeducativo emitiram uma nota de repúdio a essa resolução. Uma boa parte dos gestores estaduais do Fórum Nacional dos Gestores do Sistema Socioeducativo dos Estados também é contrária à resolução. Conselhos tutelares já tinham se manifestado contrariamente. A gente percebe que é bastante desconectado da realidade. Na verdade, é uma agenda político-ideológica imposta.”
O que o MMFDH pretende fazer para reverter o problema
“A Secretaria Executiva do Conanda não publicou a resolução oficialmente ainda. Ela ainda não tem valor oficial, porque tem vício de ilegalidade. Ela foi aprovada como uma resolução conjunta do Conanda com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Para eles, não dar às adolescentes esse direito é uma forma de tortura, veja só. Como o Mecanismo não tinha publicado a sua deliberação interna autorizando a deliberação dessa resolução, ela não tem valor jurídico e não poderia ser uma resolução conjunta. Então, se o Conanda quiser aprovar, vai ter que voltar para o plenário para eles aprovarem de novo como uma resolução só do Conanda, e não do Conanda e do Mecanismo. Ela não foi publicada e não está tendo valor legal.
O segundo ponto do que a gente pretende fazer é uma articulação no Congresso Nacional para a gente tratar dessa matéria no âmbito de lei, porque a lei é superior a uma resolução de um conselho. Já há alguns PLs em andamento. O deputado Diego Garcia [Podemos-PR] apresentou um projeto revogando o artigo 68 do Sinase, que autoriza as visitas íntimas. A gente entende que isso vai ser positivo, no sentido de que vai gerar um grande movimento de normatização dessas práticas para fazer reverter a decisão do Conanda.
A sociedade é contra [os termos da resolução], e já é uma coisa muito rara nas unidades socioeducativas. A sociedade quer ver esse adolescente ressocializado, com atividades de profissionalização, atividades educativas… O adolescente não pode entrar num motel, no Brasil, mas ele pode ter relação dentro de uma unidade socioeducativa. É realmente um absurdo.”
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