A atuação da Polícia Militar de São Paulo no Guarujá ocupou um espaço considerável do noticiário no mês passado. A operação — iniciada depois que um policial militar foi assassinado por bandidos — deixou 14 mortos e gerou acusações de que a ROTA, unidade de elite da corporação, cometeu execuções extrajudiciais.
Ao mesmo tempo, a Polícia Militar da Bahia matou 23 pessoas num período de quatro dias, sem que houvesse o mesmo escrutínio. A Bahia é governada por Jerônimo Rodrigues (PT), enquanto São Paulo tem Tarcísio de Freitas (Republicanos) como governador. Seriam as críticas à letalidade da polícia brasileira uma mera arma política, usada pela esquerda apenas quando lhe convém?
Primeiro, os fatos: a polícia brasileira é, sim, uma das que mais matam no mundo.
Um estudo elaborado por um professor da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, mostrou que os policiais brasileiros causam, em média, 30,2 mortes por 1 milhão de habitantes por ano (os dados são de 2020). O país aparece em segundo lugar em uma lista de 18 países, com números muito mais altos do que o de Estados Unidos (3,4 mortes por 1 milhão de habitantes), Argentina (2,1) e Canadá (0,9).
ONGs de direitos humanos e organizações como o Partido dos Trabalhadores culpam o racismo da polícia e a “guerra às drogas” pela estatística preocupante. Mas o problema é muito mais complexo.
O mesmo estudo da Universidade Rutgers, aliás, mostra que outro país ocupa o topo da lista com números assustadores: a Venezuela. Lá, a polícia matou 185 pessoas por 1 milhão de habitantes no ano de 2019. A ditadura chavista, entretanto, não costuma ser mencionada no Brasil como um mau exemplo de brutalidade policial ou perseguição às classes mais pobres — o que é um sinal de que, em grande medida, a oposição de grupos de esquerda à atuação da polícia brasileira tem razões políticas.
Violência é generalizada
Os números da violência no Brasil são elevados de forma geral. Se tem uma das polícias mais letais do mundo, o país também está no topo da lista quando o critério é o número de policiais assassinados — ou o número de homicídios como um todo.
Em 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o país teve 47.398 assassinatos. De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), o número equivale a aproximadamente 10% dos homicídios do mundo, embora o Brasil tenha apenas 2,5% da população global. Em outras palavras: de cada 200 pessoas, cinco são brasileiras. De cada 200 assassinatos, 20 acontecem no Brasil.
A polícia brasileira também tem um dos índices mais altos de vitimização policial. Em 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 161 policiais da ativa foram assassinados no Brasil em 2023. Mais de dois terços deles (67,3%) eram negros (segundo a classificação usada pela publicação, que soma pardos e pretos).
Embora tenha uma população maior do que a brasileira e um efetivo policial muito mais numeroso, os Estados Unidos registraram 60 policiais assassinados no ano passado. No Chile, foram apenas dois.
Os números da chamada “letalidade policial” precisam ser vistos nesse contexto.
A proibição às drogas e o racismo parecem ter pouco a ver com o problema. Desde 2006, o porte de entorpecentes para uso próprio já não leva à cadeia no Brasil. E a maioria dos policiais assassinados é negra.
A criminalidade elevada parece ser uma melhor explicação.
Em 2020, um artigo publicado em uma revista acadêmica americana mostrou que a taxa de mortalidade dos policiais no Pará acompanhava a taxa de homicídios do Estado.
Além disso, o estudo do professor da Universidade Rutgers menciona as peculiaridades do policiamento no Brasil. Ao contrário do que ocorre em países mais seguros, a polícia brasileira precisa estar sempre de prontidão — o que significa, por exemplo, sacar a arma enquanto se movimenta em uma favela, em vez de deixá-la no coldre. Isso também aumenta as chances de disparos acidentais.
Por fim, a combinação de impunidade e falta de esclarecimento de crimes significa que o Brasil tem mais criminosos nas ruas do que a maior parte dos países, mesmo quando se leva em conta apenas os vizinhos sul-americanos. E, em lugares onde o crime organizado domina, os bandidos geralmente possuem armamento pesado.
Concentração em três estados
O suposto racismo da polícia cai por terra com um dado simples: nos dois estados com mais mortes causadas pela polícia (Bahia e o Rio de Janeiro), a maioria dos policiais é negra. Acompanhados do Pará, esses somaram a maioria dos casos de morte por intervenção policial no Brasil em 2022.
Faz sentido. Na Bahia e no Rio de Janeiro, facções criminosas controlam favelas inteiras, muitas delas localizadas em morros, o que dificulta o acesso da polícia e aumenta as situações de confronto. No Pará, vastas regiões têm presença reduzida do Estado. O sul do Estado, mais especificamente, tem “terras sem lei”. Muitas vezes, quando a polícia entra em ação, a situação já se tornou de alto risco.
Para o coronel Mário Sérgio de Brito Duarte, ex-comandante do Bope no Rio de Janeiro, a situação da polícia brasileira — em especial a fluminense — é muito peculiar. “É uma criminalidade com características de insurgência criminal, onde o narcopoder se impõe de forma deliberada, organizada e o com propósito de causar baixas nas forças estatais, com armas de guerra e táticas militares”, diz.
Duarte acrescenta que o contexto de algumas regiões brasileiras se assemelha a um conflito urbano armado (como em guerras civis), embora com um grau de intensidade menor do que o de países como Síria e Afeganistão. “O Brasil tem uma violência criminal com estética de conflito urbano armado, devido a presença de armas de guerra aao milhares”, explica.
Bahia, Rio de Janeiro e Pará têm algo mais em comum: o alto número de policiais assassinados. Juntos, eles compõem 34% desses registros — embora representem apenas 15% da população brasileira.
Tampouco surpreende que o número geral de homicídios nesses três lugares seja mais alto do que a média nacional. Os três estados tiveram, juntos, 29,8% dos homicídios no país em 2022.
É difícil mostrar que o racismo é a causa do problema. Um levantamento do Ministério da Justiça mostrou que, dos policiais militares do Rio de Janeiro que declararam a raça, 55,2% são negros.
No Pará, a soma de pardos e pretos equivale a 85,3% dos policiais militares. A proporção é praticamente idêntica no Amapá, que ocupa o topo na lista em relação à mortalidade policial.
A Bahia não forneceu os dados para o levantamento. Entretanto, um estudo recente com 545 policiais militares baianos indicou que 89% deles eram não brancos.
No país inteiro, segundo o Ministério da Justiça, os policiais militares brancos são minoria (47,4%).
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