Dezenas de milhões de brasileiros deixaram de lado o receio de manifestar visões políticas de direita.| Foto: Peter de Vink/Pexels.com
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Até pouco tempo atrás no Brasil, intelectuais que defendiam publicamente valores conservadores tendiam a ser condenados ao ostracismo; discursos pró-vida e pró-família eram raros no Congresso; sociais-democratas eram chamados de “neoliberais”; defensores de um liberalismo autêntico não tinham voz em decisões sobre a economia do país; e os cidadãos de direita, receosos de manifestar sua opinião, eram sub-representados nas casas legislativas. Este período da história política nacional acabou.

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O aumento expressivo no número de parlamentares direitistas eleitos em 2022 – quatro anos depois do pleito de 2018, que já tinha mudado a cara da Câmara e do Senado – mostra que o crescimento da direita no Brasil não é uma onda passageira, mas um fenômeno sólido. O conservadorismo se tornou uma alternativa política real. É possível que muitos dos congressistas eleitos na carona da nova direita abandonem o barco nos próximos anos – como já ocorreu na legislatura atual –, mas é inegável que visões de mundo silenciadas na opinião pública e na política por algumas décadas estão ganhando rapidamente espaço e representatividade.

E a nova composição do Congresso é somente a ponta do iceberg daquilo que ocorre na sociedade brasileira. O engajamento de grande parte da população em torno de um conjunto de valores de direita tem ficado evidente, por exemplo, em megamanifestações que levam milhões às ruas do Brasil, como a ocorrida no último dia 7 de setembro. Nas redes sociais e em alguns meios de comunicação, nunca houve defesa tão explícita e frequente de visões conservadoras.

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Os canais de direita têm sucesso estrondoso no YouTube, a ponto de o sistema de recomendações da plataforma ter despertado preocupação na cúpula do Judiciário e em veículos de comunicação de esquerda. E são cada vez mais comuns as iniciativas de empresas de mídia, associações e ONGs com valores abertamente direitistas.

Nas igrejas cristãs, um movimento pela defesa de costumes e valores tradicionais ganha força. Pastores evangélicos, sacerdotes católicos e leigos com influência no mundo digital tornam acessíveis algumas ideias basilares da civilização ocidental que tendiam a ser sufocadas no ecossistema de comunicação anterior às redes sociais. O efeito no cenário político é evidente: os fiéis procuram candidatos que respaldem bandeiras condizentes com aspectos de sua fé.

Nos próximos dias, a Gazeta do Povo publica uma série de reportagens sobre o despertar da direita no Brasil. Neste primeiro artigo, explicamos como o fenômeno está sendo gestado há praticamente duas décadas e por que ele é mais do que uma onda momentânea.

Como a nova direita rompeu a espiral do silêncio no Brasil

Uma conjunção de fatores fez a nova direita brotar no Brasil, e há diferentes visões sobre que personagens e acontecimentos teriam sido mais importantes para isso; mas, qualquer que seja a opinião sobre a relevância de cada elemento na gestação do fenômeno, há dois fatores que não podem faltar na equação: as redes sociais e Olavo de Carvalho (1947-2022).

É responsabilidade de Olavo a introdução a intelectuais brasileiros de diversos autores consagrados do conservadorismo e de uma nova visão do próprio marxismo. O filósofo também foi eficaz em incentivar seus seguidores a romper a “espiral do silêncio”, isto é, a tendência das pessoas a não manifestarem sua opinião quando arriscam entrar em conflito com o pensamento aparentemente dominante. (O próprio conceito de espiral do silêncio, formulado pela cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann (1916-2010), foi popularizado no Brasil por Olavo de Carvalho.)

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No começo dos anos 2000, com os meios tradicionais de comunicação de massa dominados pelo esquerdismo, a internet foi o caminho para romper a espiral do silêncio no Brasil. Uma pequena contracultura de direita surgiu nos porões da internet, seja em textos publicados na própria página oficial de Olavo de Carvalho, seja em revistas digitais e agregadores de blogs daquela época, como Wunderblogs, O Indivíduo e Digestivo Cultural, que reuniam um grupo de escritores talentosos com viés “conservador nos costumes e liberal na economia”. O politicamente incorreto era uma marca estilística de grande parte desses blogueiros.

O advento das redes sociais ajudou a disseminar ramos dessa pequena contracultura na sociedade. Para Eduardo Matos de Alencar, doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a internet permitiu a criação de uma “esfera pública alternativa”, expandindo, no Brasil, a “Janela de Overton” – isto é, a gama de posições políticas toleradas dentro da opinião pública.

“Durante algumas décadas, no Brasil, o debate público foi monopolizado pela esquerda. Em certo sentido, era direita aquilo que a esquerda classificava como tal, ou aquela posição que estava menos à esquerda do que aquilo que as personalidades mais importantes colocavam como centro da agenda esquerdista. Na janela da opinião pública que vai do totalmente aceitável, passando pelo inaceitável com reservas, até o totalmente inaceitável, a esquerda tinha monopólio e colocava o parâmetro do que seria uma direita permitida ou não. Quem não tinha determinada posição, quem saía do espectro do aceitável, era tachado como fascista, defensor de ditadura etc., o que gerava certo clima de medo e apreensão de cair nesse tipo de rótulo. Eram rótulos confirmados pelos ambientes intelectuais, reforçados pela mídia e intensificados pelas redes de opinião dominantes. Com as redes sociais, você criou a possibilidade de instituir uma nova esfera pública. O que você teve, no Brasil, foi o nascimento de uma esfera pública alternativa”, explica.

Como a esfera pública alternativa se massificou e consolidou a nova direita

As manifestações de junho de 2013 e, um pouco mais tarde, o apoio à Operação Lava Jato ajudaram a massificar essa esfera pública paralela. A aversão ao petismo foi se consolidando em grande parte da população, mas nenhuma das alternativas ao PT convencia como oposição.

“Aquilo que antes se chamava de direita não tinha grandes diferenças em relação ao petismo, principalmente na pauta de princípios ligados a questões sociais, e também ao papel do Estado na economia. Esse fato foi reconhecido pelo próprio Fernando Henrique Cardoso quando o Bolsonaro assumiu. Ele declarou que o PSDB não tinha grandes diferenças ideológicas com relação ao PT. E a gente vê agora um tucano tradicional, o Alckmin, migrando para o PSB e se tornando o vice do Lula”, comenta o sociólogo Lucas Azambuja, professor do Ibmec-BH.

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O fenômeno Jair Bolsonaro surge justamente diante dessa lacuna. Em 2014, ao ser reeleito deputado federal, ele triplicou sua votação em relação às eleições de 2010, recebendo mais de 460 mil votos. Seu estilo politicamente incorreto e sua ênfase nas pautas de costumes divergia do caráter insípido dos políticos que se ofereciam como oposição ao petismo até então. Durante a legislatura 2015-2018, Bolsonaro colecionou polêmicas e aparições na TV.

“A partir de todas as mobilizações que culminaram no impeachment da Dilma, formou-se um eleitorado não identificado com a esquerda ou com aquele espectro de centro-esquerda formado principalmente pelo PSDB. Começou a haver uma autoidentificação de direita na população, e o Bolsonaro soube captar a preferência do eleitorado, que se identificou com a postura e o discurso dele”, diz Azambuja.

A nova direita não é, no entanto, uma mera onda política liderada por Bolsonaro e pelos novos congressistas eleitos. O fenômeno político é relevante, mas é somente a manifestação mais superficial de uma mudança cultural em curso.

As redes sociais ajudaram milhões de pessoas a saltar a barreira do esquerdismo dominante nos meios de comunicação e ter acesso a ideias conservadoras nos perfis de fenômenos como Ítalo Marsili, Ícaro de Carvalho, padre Paulo Ricardo, André Valadão, Bárbara Destefani (do canal Te Atualizei) e Bernardo Küster. O que antes eram ideias restritas a blogs de nicho voltados a intelectuais direitistas se disseminou a milhões de brasileiros em um estilo mais popular.

Também são cada vez mais comuns e bem-sucedidas as empresas de mídia que sustentam convicções como a defesa da vida, o valor da família e a liberdade econômica – caso de meios jornalísticos como a própria Gazeta do Povo, a Jovem Pan e a Revista Oeste, ou de plataformas como a Brasil Paralelo. Há cerca de dez anos, opiniões de direita minguavam nos grandes meios de comunicação, e o fenômeno dos influenciadores de direita com milhões de seguidores era impensável.

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A nova direita ainda depara, no entanto, com algumas barreiras importantes, que dificultam colocá-la em pé de igualdade com a esquerda no campo da opinião pública. Uma delas é a falta de um partido autenticamente direitista, baseado em convicções, e não na conveniência política do apoio ao presidente Jair Bolsonaro, como foi o caso do PSL e é, hoje, o do PL.

Outra barreira – a mais importante e resistente delas, aliás – é a hegemonia esquerdista dentro das universidades, especialmente no que se refere ao campo das humanidades. “É um ambiente muito fechado em si mesmo. É muito difícil, hoje, ainda mais depois do governo Bolsonaro, algum doutor declaradamente de direita passar em um concurso para lecionar em uma universidade pública, por exemplo”, diz Alencar. “A direita precisa criar espaços, criar instituições. Talvez uma das formas para facilitar isso, do ponto de vista institucional, seja o governo ser mais liberal em relação à possibilidade de criar cursos”, complementa.