Ouça este conteúdo
As investigações mostram que eles não se conheciam e que carregavam Bíblias e bandeiras na Praça dos Três Poderes dia 8 de janeiro de 2023. Também não tiveram apoio do Congresso e nem da cúpula das Forças Armadas, mas são chamados de “terroristas” pelo governo, já passaram meses presos e têm sido condenados a penas de 11 a 17 anos de cadeia por crimes como associação criminosa armada e tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito.
Entre essas pessoas estão donas de casa, faxineiras, avós, advogados, engenheiros e até um médico que tentou evitar a morte do comerciante Cleriston Pereira da Cunha no dia 20 de novembro. A reportagem da Gazeta do Povo selecionou algumas dessas histórias e mostra abusos cometidos há um ano.
1. Dona de casa pode ser condenada a 14 anos de prisão, após voto de Alexandre de Moraes
Moradora de Betim, em Minas Gerais, Jupira Silvana da Cruz Rodrigues frequenta a igreja Batista, é casada há mais de 30 anos, tem quatro netos e cuida de um rapaz com transtorno mental irreversível. “Não sou criminosa, e peço compaixão”, disse a mulher, que pode ser condenada a 14 anos se prevalecer o voto do ministro Alexandre de Moraes.
Presa no Palácio do Planalto, onde entrou para se proteger das bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, ela passou sete meses na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, a Colmeia, e segue em liberdade provisória com medidas cautelares que a impedem de ir à igreja, mancham sua reputação e mantêm bloqueados todos os seus recursos financeiros. “Bloquearam até a pensão por morte do rapaz com transtorno mental que eu cuido”, lamenta. “Estamos sofrendo muito sem eu ter cometido crime nenhum.”
O colunista Paulo Polzonoff chegou a publicar um texto a respeito de “Dona Jupira e a injustiça revoltante e imoral de Alexandre de Moraes e Cia”. A publicação foi uma das mais lidas da Gazeta do Povo no mês de outubro e está disponível aqui.
2. Cuidadora de idosos presa enquanto orava no Planalto
A agente comunitária e cuidadora de idosos Nilma Lacerda Alves também pode ser condenada a 14 anos de prisão, pelo entendimento de Moraes. Moradora do município de Barreiras (BA), ela chegou a Brasília dia 8 de janeiro para se manifestar pacificamente com uma bandeira sem mastro, algumas barrinhas de cereal, maquiagens e um panetone.
No entanto, foi presa enquanto orava no Palácio do Planalto, e permaneceu sete meses encarcerada, longe da única neta e enfrentando o que chamou de “tortura psicológica”. Em liberdade provisória com tornozeleira desde agosto, a cuidadora conta que não consegue mais ficar perto de outras pessoas, anda de cabeça baixa com as mãos para trás, e chora ao sentar-se para as refeições porque lembra do alimento estragado e com bichos que ingeriu “para não morrer de fome”.
Ela também escreveu um diário em rolos de papel higiênico na prisão para registrar o que enfrentou, já que 164 mulheres presas no 8 janeiro tinham apenas um vaso sanitário disponível e uma pia para uso, além de sofrerem humilhação constante, a ponto de colegas fazerem xixi nas calças devido ao medo. O relato completo está nesse link.
3. Faxineira com terço e Bíblia condenada por associação criminosa armada
Mãe de dois filhos, de nove e 19 anos, a faxineira Edinéia Paiva foi condenada a uma pena de 17 anos de prisão, por sugestão do ministro Alexandre de Moraes. Ela foi presa na Esplanada dos Ministérios segurando um terço e uma Bíblia, e conta que foi arrastada pelos cabelos por um policial.
Edinéia foi algemada, enquanto tinha a bolsa vasculhada, segundo ela, de forma agressiva. A mulher passou sete meses na prisão e mal recebeu notícias da família. Quando voltou para casa, encontrou seu marido deprimido diante dos dias difíceis que viveu e soube que a filha de nove anos passara meses chorando durante as aulas.
Agora, Edinéia segue em liberdade provisória com todas as medidas cautelares impostas pelo STF e com suporte psicológico para enfrentar a possibilidade de voltar a um presídio. “E fico me perguntando o porquê. Porque eu não matei ninguém, não roubei, não fiz nada. Nem quem mata recebe uma pena dessa.” A reportagem completa está aqui.
4. Advogada presa no 8/1 passou dias com fome e ficou 4 meses encarcerada
Com quase 30 anos de profissão, a advogada Edith Christina Medeiros afirma nunca ter acompanhado um processo criminal com tantas ilegalidades. Moradora da Paraíba, ela foi detida no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército de Brasília dia 9 de janeiro de 2023 ao ser convidada a desmontar acampamento com outras 1.926 pessoas — segundo dados do STF.
Com isso, entrou nos ônibus indicados pelo Exército sob pretexto de “passar por uma triagem e ir para casa” e vivenciou um crime de guerra conhecido como perfídia. “Algo repudiado por todas as instituições internacionais, pois remete ao Holocausto”, aponta a advogada, presa com os demais.
Em seu relato à Gazeta do Povo, ela conta que ficou dias com fome, teve direitos profissionais negados, foi alvo de piada e de “humilhação”. “Tudo foi tão doloroso que caí em depressão, passei a tomar remédios para dormir e perdi 15 kg”. Além disso, sua defesa não conseguia acesso aos documentos do processo, e ela só recebeu liberdade provisória quatro meses depois, sem poder atuar como advogada criminal devido às restrições.
5. Engenheira que tinha escritório na Avenida Paulista perde tudo após prisão
A engenheira civil Regina Aparecida Modesto, de 54 anos, perdeu sua casa na Serra da Cantareira, em São Paulo, e seu escritório na Avenida Paulista após ser presa nas ações do 8/1. A mestre em engenharia de túneis foi umas das poucas pessoas reconhecidas por policiais durante audiência devido à sua conduta pacífica dentro do Senado. No entanto, relata que foi tratada como criminosa, ficou 24 horas sem comer e chegou a ser coagida com uma arma.
Sem receber voz de prisão, ela ficou sete meses encarcerada, enquanto sofria com problemas graves de saúde, já que tem histórico de câncer no útero, vesícula e estômago, e precisa de uma dieta restritiva para evitar complicações. “Cheguei a ficar 10 dias internada, e quase morri.”
Em entrevista à Gazeta do Povo, ela informou também que não recebeu artigos de higiene, passando dias sem sabonete, toalha ou roupas íntimas para vestir, e que sofreu tortura psicológica durante a prisão. “Falavam que a gente merecia ‘um calibre 12 na cara’, nos xingavam de 'terroristas', e ameaçavam nos mandar para a solitária”, lamenta a engenheira, ao citar ainda uma revista geral em que as presas do 8 de janeiro ficaram nuas em um corredor da prisão. “Parecia um campo de concentração.”
6. Estudante de medicina da USP tem imagens que mostram sua inocência, mas STF não considerou
Depois que imagens dos atos de 8 de janeiro registradas por câmeras de segurança dos prédios públicos foram disponibilizadas, o engenheiro de telecomunicações Thiago Duarte analisou o material para provar que a esposa, a estudante de Medicina da USP Roberta Jérsyka, 35, não cometeu crime.
As imagens mostraram que ela caminhou pelo Senado, deitou-se no chão e orou. No entanto, o STF não considerou as provas, e a estudante passou sete meses na prisão, cinco deles sem contato com o marido. Além disso, colegas pediram sua expulsão da USP por ter participado nos atos de 8 de janeiro, e a universidade abriu processo administrativo contra ela, que segue em trâmite.
Ainda não há data para seu julgamento pelo STF, mas ela gostaria que ocorresse de forma presencial. “Hoje somos nós, de direita, conservadores, amanhã pode ser qualquer um. Não estou pedindo privilégio, estou pedindo um julgamento justo, que todo cidadão merece”, afirma Roberta. A matéria completa está aqui.
7. Corretor de seguros relata humilhações que sofreu: “nos trataram como animais”
Detido no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília na manhã de 9 de janeiro, o corretor de seguros Roney Duarte Botelho, de 50 anos, nem foi à Praça dos Três Poderes, mas ficou 67 dias preso e relata situações degradantes que vivenciou. “Nos trataram como animais.”
Segundo ele, pessoas foram colocadas por horas em ônibus sem ter alimento ou banheiro, e idosos começaram a urinar nas roupas. Depois, todos ficaram confinados na Academia Nacional de Polícia “sem infraestrutura, com fome e passando mal”, recorda o corretor, que esperou três dias e duas noites até passar pela triagem com delegados da Polícia Federal (PF) para descobrir que estava preso.
Ao chegar à penitenciária, ele conta que foi encaminhado para revista com uma policial feminina e ficou extremamente envergonhado. “Precisei baixar a bermuda e ficar pelado, literalmente, agachando, virando de costas e ficando em posições extremamente constrangedoras, algo absurdo mesmo”, afirma, ao citar ainda que dormia no chão, ao lado do vaso sanitário, que passava frio e fome. A matéria completa está neste link.
8. Agricultor preso no 8/1 percorre 300 km de estrada de chão toda semana para ir ao fórum
Com tornozeleira eletrônica desde o dia 8 de agosto – após sete meses de prisão por se manifestar em Brasília carregando uma bandeira e um cantil de água –, o agricultor Sipriano Alves de Oliveira precisa percorrer 300 quilômetros de estrada de chão toda segunda-feira, de moto, para apresentar-se no fórum mais próximo de sua residência, no interior do Pará.
“Saio 5 horas da manhã, preciso pegar balsa, e gasto quase R$ 200, sem almoço, para ir e voltar”, relata o morador de São Felix do Xingu. “Isso sem contar as épocas de chuva em que os rios transbordam e as estradas ficam intrafegáveis”, continua.
De acordo com o advogado criminal Ezequiel Silveira, essa medida imposta aos presos do 8/1 não é solicitada nem a criminosos de alta periculosidade. “O comparecimento ocorre uma vez por mês para casos mais graves, mas o ministro [Alexandre de Moraes] exigiu apresentação semanal para os presos do 8/1, algo que nem existia no sistema judicial. “A injustiça está sendo muito grande com a gente”, lamenta Sipriano.
9. Pastora presa no 8/1 fundou igreja na prisão e pode ser condenada a 14 anos
Outro caso relatado pela Gazeta do Povo é o da pastora e assistente de enfermagem Sandra Maria Menezes Chaves, de 49 anos. Moradora de São Paulo e avó de três netos, ela viajou até Brasília para clamar a Deus pelo país dia 8 de janeiro, mas foi presa durante sete meses e pode ser condenada a 14 anos de cárcere. “Tudo que fiz foi orar”, afirma a paulista, citando que a prova que a “incrimina” é uma foto “com as mãos ao céu”.
Segundo ela, a prisão ocorreu no Senado, onde deu depoimento durante a madrugada e tentou ligar para seus filhos, às 3 horas. Como não atenderam, passou “sete meses sem vê-los e sem falar com eles”, lamenta a mulher, ao citar ainda que ficou sentada no chão até a tarde do dia seguinte, sem comida ou água.
Na prisão, a pastora conta que tentava manter-se firme para transmitir força às outras presas. “Eu fazia jejum, me consagrava e orava”, recorda, ao citar que fundou uma igreja na sua ala com realização de cultos diariamente a fim de ajudar presas em depressão profunda. “Todas estavam desesperadas, e algumas falavam em se matar.” A matéria completa está neste link.
10. Com comorbidades graves, Cleriston Pereira Cunha morreu dentro do presídio, deixando esposa e duas filhas
A defesa de Cleriston Pereira da Cunha afirmava que deixá-lo na prisão seria sentença de morte, e a Procuradoria-Geral da República (PGR) já tinha emitido parecer recomendando liberdade provisória devido aos problemas de saúde que o comerciante enfrentava. No entanto, o ministro Alexandre de Moraes não atendeu ao pedido, e Clezão — como era conhecido — morreu na manhã do dia 20 de novembro, aos 46 anos. Ele deixou esposa e duas filhas.
“Minha cela era ao lado da dele, e víamos o Cleriston passar mal uma ou duas vezes por semana”, recorda o paranaense David Michel, preso do 8/1 que conheceu Cleriston na carceragem. Segundo ele, as crises começavam com vômito e eram seguidas por convulsões e desmaio. “Em uma das vezes o quadro foi tão intenso que achamos que ele tinha morrido”, recorda, ao citar que Clezão ficou 15 dias usando cadeira de rodas após essa crise.
“Tudo em meio à situação desumana de estar na prisão”, onde “era humilhado sem ter cometido crime nenhum”, continuou David, pontuando que o local é insalubre e a alimentação “é um lixo, uma lavagem, algo que nem bicho come”, disse. “E o Clezão aguentou isso durante 10 meses. Ele foi muito resistente... Meu Deus!”. A reportagem completa com relatos de colegas de Clezão está disponível aqui.
11. Médico com arritmia cardíaca passou 324 dias na prisão
O médico Frederico Rosário Fusco de Oliveira, de 60 anos, também foi preso dia 8 de janeiro e passou quase 11 meses na prisão, apesar de correr risco de morte por conta de grave cardiopatia com histórico de arritmia. Ele perdeu mais de 15 quilos.
De acordo com a advogada Carolina Siebra, Frederico foi preso no dia 8 de janeiro, após ajudar uma pessoa que estava passando mal nos arredores do Palácio do Planalto e ser convidado pelos policiais para se abrigar no interior no prédio. “Os policiais pediram para ele entrar porque o ambiente estava inóspito por conta das bombas de efeito moral”, relatou a advogada.
O médico foi preso com os demais e, mesmo sem material ou remédios, cuidou da saúde de diversos colegas na prisão. Inclusive, foi ele quem prestou os primeiros socorros ao colega Cleriston Pereira da Cunha com massagem cardíaca até a chegada da equipe de emergência na tentativa de salvá-lo. “Clezão não será esquecido”, escreveu Frederico em sua camiseta ao deixar o presídio dia 28 de novembro.
12. Idoso com comorbidades está preso desde o 8/1 e foi condenado a 17 anos por Moraes
“Restrição de liberdade não pode ser uma sentença de morte.” É assim que a Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro se refere ao caso do agricultor Jorginho Cardoso de Azevedo, de 63 anos. Preso por quase um ano sem armas e sem nenhuma prova de que tenha danificado patrimônio público, o idoso possui diversas comorbidades – inclusive oito pinos na coluna.
Seu julgamento pelo STF terminou em novembro, e ele foi condenado a 17 anos de prisão, pena sugerida pelo ministro Alexandre de Moraes, e apoiada pela maioria dos outros ministros. O ministro André Mendonça sugeriu pena de quatro anos e dois meses, enquanto o ministro Kassio Nunes Marques votou pela absolvição da maior parte dos crimes imputados por Moraes, com exceção do crime de incitar publicamente a prática de crime (artigo 286 do Código Penal), com pena de 4 meses em regime aberto (já paga pelos meses em que Jorginho está na prisão).
De acordo com a defesa do paranaense, ele está com a “saúde emocional extremamente abalada, com grave depressão”. O homem é casado há 40 anos e, antes de ser preso, cuidava do pai nonagenário na cidade de São Miguel do Iguaçu. “Todas as peças processuais que temos amparo legal no código de processo penal, já impetramos”, afirma a advogada Gislaine Alves Yamashita. “Agora, precisamos de um milagre”, finalizou.