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José Carlos Fernandes

Dona Eulália e as Zitinhas

 | Foto: Henry Milléo – Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Henry Milléo – Arte: Felipe Lima)

Nem tente puxar conversa com dona Eulália Ventura, 85 anos, sobre as peripécias de Penha, Rosário e Cida, as "empreguetes" do folhetim Cheias de Charme. Ou tampouco especular o que a veterana acha de Nina, a cozinheira vingativa de Avenida Brasil. Eulália não assiste a novelas, embora tenha experiência o bastante para dar consultoria aos dramaturgos: ela trabalhou em casa de família por 46 anos – repita comigo: quarenta e seis. Pode se orgulhar de ter lavado muita louça, mas também de ser uma das fundadoras da Associação das Empregadas Domésticas de Santa Zita, um daqueles grupos que faz com que nos belisquemos, incrédulos, ao saber que ainda têm vapor para funcionar.

Quanto mais próximo da despensa, como se sabe, mais a trama é triste. A de Eulália não foge à regra. Natural do antigo distrito de Terra Cortada, em Prudentópolis, ainda em fraldas perdeu a mãe, ficando entregue aos rigores da orfandade. Aos 11 anos, foi agregada a uma família, os Franco de Souza, para que lhes servisse nas lides da copa e da cozinha.

Tudo parecia uma imensa pilha de roupas para passar quando Eulália, já adolescente, se viu convidada a participar de uma ação pastoral da JUC, a Juventude Universitária Católica. Que pusesse o ferro em pé para esfriar e se mandasse para a catequese. Obedeceu. Num estalo se viu ao lado de mais ou menos outras 30 empregadas domésticas, qual ela habitantes dos quartos dos fundos, vidas em segredo.

Pois foi tão bom que não queriam mais se largar. Assim nasceu a associação, em 1944. Se as filiadas precisassem, as líderes ensinavam a limpar com destreza, sem amarfanhar o avental. Se alguém lhes passasse a perna, orientavam para que estacionassem o escovão e, alto lá, pedissem seus direitos – como folgar e, pasmem, não trabalhar mais que 12 horas por dia. Ao pé dos ouvidos, alertavam sobre como se defender da mão boba de um e outro patrão, mal acostumados desde o tempo das senzalas. E, se fossem despedidas, que não chorassem dizendo-se moça do interior sem ter para onde ir. Que se mandassem para o lar de amparo. Não lhes faltaria uma cama de campanha e uma imagem de santa Zita para rezar.

Para quem ainda não se entregou aos prazeres da hagiografia, Zita viveu na Itália do século 13. Suas virtudes virginais são um conto medieval digno de ser ouvido ao som dos alaúdes. Mas é santa modesta, diga-se. Não fez uma reviravolta à moda de mendicantes espoletas de seu tempo, como são Francisco, mas uma pequena rebelião doméstica. Entre outras proezas, traficava iguarias das mesas dos nobres para os cestos dos miseráveis que lhe batiam à porta, inaugurando a era dos sopões.

Fez tudo tão no capricho que mereceu um lugar nos altares ao lado de mártires e doutores. Eulália teve a alma elevada ao descobrir, numa revista, que Zita era das suas, tanto é que dedicou a ela a associação que ajudara a fundar. Tinha motivos pessoais para tanto. Por aqueles tempos, decidiu que seria freira, mas se sentiu rejeitada pelo convento que escolheu. Não falava polonês, não tinha bens para deixar à congregação, nem dinheiro para enxoval tão cheio de rendas. Sofreu, mas a santa ajudou a entender o que lhe estava reservado. Fez das Zitinhas que amparou suas irmãs de convento. Para elas promovia piqueniques em Piraquara, vendo-as divertidas nos então domingos de folga. Pelas gurias, enfrentou tempos bicudos, contando moedas no fim do mês. Tem 15 associadas. Envelheceu sem ver erguida uma sede própria em que pudesse amparar as desempregadas e idosas sem aposentadoria.

Tempos atrás, uma senhora contou essa história para algumas amigas do elegante condomínio Tirol das Torres. Deu curto-circuito. Qual o quê, as patroas saíram em revoada, fizeram cafés e rifas, barganharam o preço de tijolos, passaram carraspanas nos pedreiros. Juntaram R$ 57 mil para erguer o abrigo das domésticas numa ruela pacata do Uberaba. A obra foi entregue há uma semana, quase 70 anos depois que tudo começou. Ah, as benfeitoras amam ficar em roda de Eulália, fazendo sala à mulher que passou a vida fazendo da cozinha o melhor de todos os mundos.

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