Em abril de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) devolveu ao narcotraficante André do Rap seu Porsche de 2016, seus quatro jetskis, seu helicóptero de R$ 7,2 milhões, entre outros bens de luxo que haviam sido apreendidos em operações policiais no passado; em maio, o mesmo STJ absolveu um traficante que confessou a posse de 257 pinos de cocaína, porque a confissão teria ocorrido sob "estresse policial"; em junho de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) inocentou dois traficantes que carregavam 695 kg de cocaína encontrados pela Polícia Federal (PF), porque a busca e apreensão que acarretou a prisão deles ocorreu sem mandado judicial; também em junho, o ministro Sebastião Reis Júnior, do STJ, liberou Leonardo Lima, o "Batatinha", um dos líderes do PCC.
Enquanto tudo isso acontecia na Justiça brasileira, Iraci Nagoshi, de 70 anos, estava sem seus remédios para diabetes, perdia peso, tinha crises de ansiedade e apresentava sinais de depressão nos sete meses em que ficou presa por ter ido às manifestações do 8 de janeiro em Brasília. Ela não participou dos atos de vandalismo. Iraci foi liberada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, no dia 7 de agosto, mas continua sendo forçada a usar uma tornozeleira eletrônica e a cumprir outras medidas cautelares.
Como Iraci, dezenas de brasileiros que nem sequer participaram dos atos de depredação do 8/1 foram vítimas de violações flagrantes aos direitos humanos nos últimos meses. Diversos idosos, pessoas com doenças graves, um autista e mães de crianças menores de 12 anos foram colocadas na cadeia sem o cumprimento do devido processo legal, sem individualização das condutas e com violação das prerrogativas dos advogados de defesa.
O sistema judicial brasileiro vive, para juristas consultados pela Gazeta do Povo, uma subversão do conceito de crime, em que criminosos que geram risco evidente para a sociedade – como líderes de organizações criminosas, traficantes e homicidas – são colocados em liberdade, enquanto pessoas sem antecedentes criminais e objetivamente inocentes são enquadradas em crimes que não existem e tratadas como ameaças para a sociedade.
"Não tenho dúvida em dizer que este é um dos mais nebulosos capítulos da história jurídica brasileira. De um lado, vemos o fortalecimento da ideologia garantista, justamente do que resultam decisões que favorecem criminosos habituais, especialmente os traficantes; de outro, há um rigor inexplicável com condutas que têm uma característica muito maior de protesto do que de qualquer ato efetivamente criminoso", afirma o jurista Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes).
A subversão do conceito de crime não é levada a cabo sem certa resistência institucional. Recentemente, o procurador-geral de Justiça (PGJ) de São Paulo, Mario Sarrubbo, recorreu da decisão do STJ que libertou o traficante "Batatinha", do PCC. No recurso, Sarrubbo recorda o óbvio: que o traficante "é indivíduo da alta hierarquia de facção criminosa, sendo evidente sua periculosidade" e que o histórico de casos semelhantes "mostra que a fuga é a escolha preferencial de criminosos dessa estirpe".
Esse tipo de reação, contudo, tem sido uma exceção no Brasil. As decisões que favorecem o narcotráfico são crescentes, e têm gerado temor do nascimento de um narcoestado no país.
Do outro lado, as violações aos direitos humanos e ao ordenamento jurídico brasileiro no caso do 8 de janeiro e em outras situações que envolvem a defesa de direitistas tendem a ser ignoradas pela principal entidade que poderia proteger as prerrogativas dos advogados: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Para o advogado Miguel Vidigal, especialista em Direito Civil, a perplexidade da população diante desse quadro é natural. "O Brasil passa por um momento complicado social e jurídico. O cidadão comum, independente da preferência política, não entende essa forma de agir de parte do Judiciário nacional", observa.
Garantismo para traficantes e intransigência para manifestantes escancara duplo padrão do Judiciário
No Brasil, nas últimas décadas, popularizou-se no meio jurídico a teoria do garantismo penal, do jurista italiano Luigi Ferrajoli, segundo a qual é preciso dar especial prioridade às garantias do acusado no processo penal.
A teoria tem sido aplicada com generosidade pelo Judiciário brasileiro no caso de traficantes, mas tende a ser menosprezada quando os acusados são manifestantes de direita, alvos dos inquéritos do STF ou membros das polícias.
Para Rebelo, o principal motivo desse duplo padrão é o crescente envolvimento do Judiciário em questões políticas. "A única explicação que se evidencia é a politização da Justiça, como se houvesse um entendimento prévio de que um determinado espectro político representa uma ameaça à democracia e, por isso, precisa ser reprimido, para o que valeria criminalizar toda mobilização sua", diz.
Chama a atenção, nas justificativas do Judiciário, o esforço argumentativo para justificar a liberação de traficantes e, por outro lado, de buscar pretextos para a criminalização de senhoras idosas e de pessoas com pouca ou nenhuma capacidade física para cometer atos violentos.
No caso de "Batatinha", do PCC, por exemplo, o STJ entendeu que o traficante teria sido perseguido pelos policiais porque demonstrou nervosismo, o que, de acordo com o tribunal, é um elemento subjetivo que não pode fundamentar uma abordagem policial – em resumo, os policiais teriam sido preconceituosos ao desconfiar de Batatinha, porque usaram um elemento intuitivo para ir atrás dele; por isso, sua prisão não valeu.
No caso de idosas como Iraci Nagoshi, ou do catador de materiais recicláveis Jean de Brito Silva – que tem deficiência intelectual moderada e autismo, e é incapaz criminalmente –, a mera presença deles em uma manifestação foi suficiente para acusá-los de crimes graves como associação criminosa armada e golpe de estado.
Para Miguel Vidigal, essa interpretação elástica e ao sabor do juiz pode ser explicada pelo fenômeno do neoconstitucionalismo, que torna a lei um mero pano de fundo e dá protagonismo ao magistrado nas decisões. "O ativismo judicial tem feito com que a lei deixe de ser impositiva e represente apenas um horizonte que o juiz não se sente obrigado a seguir", diz. "A lei passa a ser desprestigiada, a norma deixa de ter importância, e o papel do legislador originário é mero acessório para um Judiciário não eleito, mas com um protagonismo excessivo", complementa.
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