Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL 3.946/21) que tenta garantir a presença de doulas nas salas de parto no país, profissionais contratadas pelas gestantes para dar apoio emocional. A proposta foi aprovada pelo Senado, em março do ano passado, e agora aguarda a votação na Câmara dos Deputados. Pelo texto aprovado, a presença das doulas ficará assegurada em qualquer tipo de parto, podendo integrar as equipes de atenção básica à saúde.
A proposta é vista com resistência por médicos que temem intromissões indevidas das doulas em funções próprias da equipe médica e de enfermagem, responsável por definir o melhor procedimento para a mãe e o nascimento do bebê. Por outro lado, muitas gestantes, com medo de sofrer “violência obstétrica” (termo criticado pelo CFM por estigmatizar a prática médica), gostariam que essas doulas estivessem presentes nesses momentos.
Caso o projeto chegue a ser aprovado, para ser doula será preciso ter diploma de ensino médio e qualificação profissional específica em “doulagem”, em cursos com pelo menos 120 horas de duração. Segundo a senadora Mailza Gomes (PP-AC), autora do projeto, a função da doula não será substituir o cuidado familiar e a assistência de profissionais de saúde, mas fazer a ponte entre a grávida e a equipe de saúde. Para ela, a atuação das doulas pode levar conforto às mães, com o emprego de técnicas não farmacológicas que ajudem a aliviar as dores e favorecer o trabalho de parto.
Preocupações dos obstetras
A Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) defende uma discussão mais ampla da sociedade antes do avanço da proposta. A entidade lembra que é preciso possuir conhecimentos técnicos para acompanhar um parto e que a regulamentação das doulas poderia popularizar os procedimentos em casa, lugar despreparado para dar toda a segurança necessária para o nascimento de uma nova vida. Outros agentes de saúde acrescentam ainda entre os pontos preocupantes a insistência das doulas pela realização do parto normal, nem sempre possível, além de sugestões questionáveis quando há intercorrências, no calor do momento, colocando muitas vezes as gestantes contra os médicos.
Mirela Foresti, membro de comissão da Febrasgo, acredita que, para não prejudicar o trabalho de parto, é preciso descriminar com precisão quais serão as atribuições das doulas. “Essa pessoa vai fazer parte da instituição, vai entrar na contratação dos hospitais e como se definirá os limites de atuação dessa pessoa? Ela não pode prescrever medicamentos, não pode fazer o parto. Ela será apenas responsável por acompanhar e dar suporte e não pode interferir no ato das pessoas que estão fazendo o parto, como o obstetra. Tem que ter uma organização [de funções] para que isso funcione no intuito de melhorar o bem-estar da paciente”, afirma a ginecologista.
Em defesa da regulamentação e da atuação dessas profissionais, Marilda Castro, doula e educadora perinatal, pós-graduada em educação e saúde pública e presidente da Associação de Doulas do Distrito Federal, afirma que ainda há preconceitos em relação a essa profissão que precisam ser superados pelo bem das gestantes. “Doulas não realizam nenhum tipo de assistência obstétrica. Doula não faz parto. Doula não verifica dilatação ou pressão arterial da mãe, tampouco ausculta os batimentos do bebê”, explica.
Segundo ela, as doulas têm assumido um papel importante de apoio às mães e também no resgate da importância do parto normal, que é evitado por muitos médicos por exigir deles mais tempo de trabalho, nem sempre com remuneração proporcional.
Para médicos como Elisabeth Kipman, ginecologista e obstetra, “o papel das doulas pode ser muito bom e importante porque podem transmitir segurança e apoio para as gestantes”. Porém, ela destaca a importância de uma regulamentação assertiva para evitar conflitos com o médico que está realizando o parto. “O médico não deve ser tratado como assassino ignorante pela doula, e isso muitas vezes acontece, porque a doula meio que domina na hora fazendo a gestante se revoltar contra o médico”, diz a médica.
Kipman ainda destaca que algumas doulas são influenciadas por cursinhos de cunho ideológico, que em nome da “autoafirmação da mulher” nem sempre defendem as melhores práticas. “Há um ativismo que cresceu com a participação das doulas e isso é prejudicial. Acredito que tem que ser uma função regulamentada assim como o médico tem que se abrir à questão do parto humanizado. A doula tem que ser doula, acompanhante, apoio afetivo e presencial, mas não pode interferir na conduta médica e da enfermeira”, reforça.
Sobre a realização de partos domiciliares, acompanhado por doulas em casa, a Febrasgo alerta para os riscos de complicações sem a presença de profissionais da saúde ou equipamentos médicos adequados.
“O parto se inicia com riscos baixos, mas rapidamente pode se agravar e estando longe do ambiente hospitalar esse cuidado do agravamento da situação pode não ser rapidamente atendido. A gente defende a assistência ao parto focada na segurança e isso se dá dentro do ambiente hospitalar”, reforça Foresti.
Por que as mulheres buscam doulas
O trabalho das doulas no Brasil é datado da década de 70, mas passou a ganhar mais notoriedade nos anos 2000, com a realização do primeiro curso de certificação de doulas. Apesar da resistência de alguns profissionais de saúde, muitas mulheres têm recorrido a esse serviço, com a anuência de médicos que não se opõem à prática.
Esse foi o caso de Natally Antelo, mãe de um bebê de 5 meses, Natally Antelo, que decidiu ter o acompanhamento de uma doula assim que descobriu a gravidez. Ela conta que se sentiu mais segura ao ter uma doula do lado por ser mãe de primeira viagem. “Foi uma experiência muito boa, dava força pra mim e para o meu esposo. E ela nos acompanhou desde o início até a hora do parto, que foi normal e sem intercorrências”, disse.
Nataly ainda disse que recebeu todas explicações sobre os tipos de parto e os cuidados com o bebê, além de técnicas de respiração para o período expulsivo do bebê. “Se todo mundo pudesse contrataria uma doula, traz afeto, um carinho e muita segurança. Você sabe que vai dar tudo certo porque ela está ao lado pra ajudar”, diz.
A doula Renata Cordova conheceu a doulagem em 2015, através de uma amiga, e decidiu unir a enfermagem com esse acompanhamento. Há quase 10 anos nessa missão, ela conta que acompanhou muitos partos emocionantes e somente neste ano, já está atendendo 5 gestantes. “Como enfermeira a gente vê um lado técnico e como doula vê com um olhar diferente, especialmente a paixão e a emoção que existe entre o encontro dos pais com o bebê", diz.
Leis estaduais permitem o trabalho das doulas
Pelo aumento da procura e sem uma regulamentação nacional para o trabalho das doulas, alguns estados começaram a criar leis estaduais autorizando a entrada destas profissionais em maternidades, casas de parto e estabelecimentos hospitalares congêneres, das redes públicas e privadas.
Os estados brasileiros que, até então, sancionaram tal norma são: Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Amazonas, Alagoas, Pernambuco, Ceará, Tocantins, Amapá, Rondônia, Santa Catarina e o Distrito Federal.
Todos estes estados reconhecem a função de doula de acordo com a definição da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO): “acompanhantes de parto escolhidas livremente pelas gestantes e parturientes, que visam prestar suporte contínuo à gestante no ciclo gravídico puerperal, favorecendo a evolução do parto e bem-estar da gestante”.
Pelas leis estaduais, a profissional pode acompanhar a gestante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato; mediante autorização da parturiente e certificação de curso para formação ocupacional dessa área. A profissional não está autorizada a realizar procedimentos médicos ou clínicos, bem como procedimentos de enfermagem, a não ser que tenha essa formação devidamente certificada.
No estado de Goiás, por exemplo, foi determinado que a restrição ou proibição da entrada, circulação ou exercício da atividade profissional das doulas nas instituições de saúde públicas e privadas pode gerar punições ao estabelecimento que vai de advertência e, se reincidente, de multa com valores entre R$ 1.600 e R$ 16 mil.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde de vários países, entre eles o Brasil, reconhecem e incentivam a atuação dessas profissionais. Estudos internacionais mostram que a presença, o apoio e as técnicas ensinadas pelas doulas podem ainda reduzir em 17% o uso de analgesia, em 31% o uso de ocitocina e em 28% a necessidade de cesariana, por exemplo.
Para virar lei, o projeto precisa ser aprovado nas comissões de Defesa dos Direitos da Mulher; de Seguridade Social e Família; de Trabalho, de Administração e Serviço Público; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Depois seguirá para o Plenário, e caso seja aprovado, vai à sanção do presidente da República.
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