Três bairros de Curitiba têm dois nomes. O Bigorrilho é Champagnat. O Mossunguê é Ecoville. E o Sítio Cercado, Bairro Novo. Confuso. Mas diferente das zonas elegantes dessa lista, nas quais o batizado duplo gerou contendas infindáveis, na periferia, quanto mais nomes, melhor. Ora a população diz que mora no Sítio Cercado. Ora no Bairro Novo, e tudo bem. "O orgulho é o mesmo", avisa a educadora social Ivani Martins de Oliveira, 51 anos, 16 deles passados na região.
A educadora não fala sozinha. Em enquete feita a esmo pela Gazeta do Povo, outros moradores se desmancharam tanto quanto ela, mesmo quando maldizem a demora nos ônibus ou a criminalidade, que faz do bairro o terceiro mais violento da cidade. Foram 37 homicídios de janeiro a setembro de 2012. "Tem crime, claro. Mas esta noite o pessoal da minha rua se mobilizou para ajudar uma vizinha que passou mal. Isso é o Bairro Novo", ilustra Ivani.
O vendedor Marcos Bender, 52 anos, 19 passados no Sítio, usa um argumento parecido. "O pessoal da quadra joga baralho sentado na calçada, faz almoço comunitário de domingo. Acho que explica tudo, né?", resume, ao comentar se lhe parece verdadeira a frase: "O Bairro Novo é um projeto que deu certo".
No lote
O Bairro Novo foi o nome dado a um loteamento dentro do Sítio Cercado. Teve início em 1991. Sob pressão. Temia-se que se formassem outras Ferrovilas a ocupação surgida naquela época em parte da linha do trem na zona sul de Curitiba. Dava calafrios nos técnicos da prefeitura só de imaginar os 4 milhões de metros quadrados de grameiras e pastos do Sítio sendo cercados pelo movimento sem-teto.
Era preciso agir rápido. E acertar a mão. A prefeitura não temia só uma onda de ocupações. Tinha pavor de repetir erros do passado, como o da Vila Nossa Senhora da Luz, inaugurada em 1966 sem serviços básicos e para onde foram enviadas 2,1 mil famílias. Os moradores, até então favelizados em áreas como Parolin e Capanema, ficaram ainda mais estigmatizados. "Havia trauma de loteamento grande. E o Bairro Novo era imenso", conta o economista de formação, urbanista na prática, Lourival Peyerl, 56 anos, já no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) à época do projeto.
Tudo indica que os temores da prefeitura fizeram bem ao Bairro Novo um projeto 15 vezes maior do que o da Vila Nossa Senhora da Luz, somando 10 mil lotes e 20 mil apartamentos. Pianinho, os técnicos do Ippuc colocaram no papel tudo o que "não" deviam fazer. "O resto ficou a cargo da sorte", brinca Lourival. Hoje, passados 20 anos da experiência, o Sítio Cercado soma 115 mil habitantes.
Eldorado
O Sítio Cercado é, na verdade, o bairro mais brasileiro de Curitiba. Desde o início, recebeu moradores dos mais diversos estados do país, com escolaridades e níveis salariais igualmente variados. A Secretaria Municipal de Habitação confirma. Os lotes e apartamentos foram destinados a tipos sortidos de famílias, garantia de que não repetiria a sina de um lugar longe, de gente pobre e sem instrução. "Todo mundo sabia construir. Começaram os mutirões. Fez diferença", lembra a urbanista Teresa Elvira Gomes de Oliveira, diretora-técnica da Cohab, para explicar o afeto, cuidado e vínculo dos moradores com o local.
Os sobradões com vidro fumê, desafiando os limites dos terrenos de 10 por 20 metros, parecem ilustrar essa "teoria da prosperidade". O mesmo se diga da pujança comercial das três principais ruas da região a São José dos Pinhais, a Tijucas do Sul e a Izaac Ferreira da Cruz. Ao todo, o Bairro Novo/Sítio Cercado tem 4,2 mil estabelecimentos comerciais, o mesmo número do tradicional Pinheirinho e o dobro do Tatuquara, que se desenvolveu na mesma época. São 7 mil autônomos, sendo 700 taxistas, 600 cabeleireiros e mil pedreiros, conforme levantamento do Ippuc no site "Curitiba em Dados".
Para ajudar, a turma do Sítio vai à área comercial sem cerimônia, manhã, tarde e noite, mesmo que as chuvas alaguem o que sobrou das grameiras. Nas principais esquinas, espetinhos nunca faltam. Os moradores lotam as pistas do Parque do Semeador, "nosso Parque Barigui", como dizem, e fazem do bosque da Vila Tecnológica, espécie de parque com casinhas das mais diversas matizes, nas quais funcionam serviços públicos, um lugar para chamar de seu. Em campanha política, o bairro é incomparável. Até eleição para o conselho tutelar, sofrível nas demais regionais, ali vira um acontecimento.
Espaço público
Esse uso contínuo do espaço público traz sensação de segurança e desafia a má fama de algumas divisas. Em tom de brincadeira, são associadas às ex-repúblicas soviéticas e ganham apelidos como "Osternackistão". A Unidade Paraná Seguro, claro, tem ajudado: virou mais um motivo para a turma do Sítio Cercado/Bairro Novo sair na calçada, tomar sorvete na Izaak ou curtir a "Festa das Tendas", um dos eventos do calendário local. Poucos bairros da cidade podem se orgulhar de ter agenda fixa.
Há quem diga que festejar é próprio do Sítio Cercado, desde o começo. Qual interior, a comunidade fazia festa para receber o então prefeito Rafael Greca de Macedo, que vinha com a Banda Lyra e falava do Bairro Novo nos palanques e secretarias. Há quem atribua os bons ventos que ali sopraram ao marketing que o político fazia para a região. Antes que dissessem ser um lugar ruim, ele garantiu que era bom. "Chegava a ser romântico. Criou-se uma aura em torno do bairro que tinha o nome de Novo. O nome ajudou", sugere Lourival Peyerl. Eis a única certeza.
PerfilMarcos Vieira, o Jesus
Ele se chama Marcos Antônio Vieira (foto), tem 38 anos, é formado em Administração, trabalha com engenharia de produção e mora numa bela casa. Bem-sucedido, como se diz, pode ser apontado como a cara do Bairro Novo "que deu certo". Quando lhe perguntam por que permaneceu ali na periferia , nem espera terminar a frase. "Porque esse lugar representou o novo na minha vida..."
Natural de Siqueira Campos, no Norte Pioneiro, Marcos chegou ao loteamento aos 18 anos, com os pais. Pisou muito no barro, andou no escuro e algumas vezes até se pelou de medo. Mas logo no início se engajou numa comunidade católica. Achou sua turma. E como. Alto e magro, ganhou o papel do Jesus da Paixão, encenação que este ano reuniu 11 mil pessoas em palco montado na Avenida Tijucas do Sul. "Olha o Jesus", gritam as crianças, que o reconhecem.
Dia desses, um morador novo do bairro lhe confidenciou: "Meu filho pequeno diz que vai ser igual a você quando crescer...". Mas a modéstia de Marcos impede que ele fique falando de como se tornou um modelo para a gurizada. "Já tive oportunidade de morar noutro lugar. Mas nem pensar", diz o bom moço do Bairro Novo. Ali atua junto aos jovens e, tão bom quanto isso, está em casa. Estava escrito. (JCF)
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