Decisões arbitrárias de censura, punições a opositores, disfunção do "sistema de freios e contrapesos", violação dos direitos humanos, controle de narrativas e atmosfera de medo – características típicas de um regime autoritário – viraram realidade no Brasil em diversos casos ocorridos nos últimos anos. É frequente, com isso, que alguns formadores de opinião e usuários de redes sociais afirmem que o país está sob uma ditadura.
Essa tem sido uma das reações mais comuns a fatos publicados pela Gazeta do Povo nos últimos meses que revelam a crise democrática do país. Alguns exemplos entre os mais recentes:
- a perseguição à Lava Jato e a cassação do mandato de Deltan Dallagnol;
- os abusos nas prisões decorrentes dos atos do 8/1;
- a aceitação de denúncias genéricas sobre o 8/1 e a restrição do direito à ampla defesa;
- as frequentes determinações judiciais de bloqueio de contas nas redes sociais, como no caso de Monark nesta quarta-feira (14);
- a agressão à liberdade de expressão até mesmo de humoristas;
- a tentativa ideologicamente enviesada de regulação das redes sociais;
- o chamado "inquérito do fim do mundo", suas derivações e sua duração indefinida;
- a prática pelo Judiciário da censura prévia;
- as dezenas de casos de restrição da livre expressão de ideias democraticamente legítimas sob o pretexto de coibir a "desinformação", o "discurso de ódio" e os "ataques à democracia".
A Gazeta do Povo consultou cientistas políticos e juristas para saber até que ponto a ideia de que o Brasil vive um regime autoritário é verdadeira, tomando como base definições acadêmicas do que seriam regimes autoritários ou ditaduras. Todos concordam que o Estado brasileiro tem muitos elementos de governos antidemocráticos; os especialistas divergem, contudo, sobre o país já poder ser classificado como um regime autoritário.
Em qualquer caso, o Poder Judiciário é, para todos, o maior foco de decisões que agridem o estado democrático de direito no país. Entre os elementos de ditadura que o país já ostenta, segundo os especialistas, incluem-se:
➞ A preponderância abusiva de um Poder sobre os outros, com o surgimento de uma "juristocracia" – isto é, um governo marcado pela judicialização da política. O fenômeno da juristocracia, batizado pelo cientista político canadense Ran Hirschl em 2004, tem sido comum em várias democracias pelo mundo, mas ganhou particular relevância no Brasil.
➞ A volubilidade do Judiciário, que muda decisões com frequência, o que desperta suspeitas sobre o caráter político das decisões. A insegurança jurídica provocada por julgamentos da Corte tornou comum a reescritura do passado no Brasil, uma marca de regimes ditatoriais. Em poucos anos, os responsáveis pela operação Lava Jato passaram de heróis nacionais a figuras perseguidas como criminosos. Em entrevista recente à Gazeta do Povo, Rodrigo Chemim, doutor em Direito do Estado, afirmou que os poderosos não deverão descansar enquanto o senador Sergio Moro (União-PR) e o ex-deputado federal Deltan Dallagnol não estiverem presos.
➞ A disfunção do "sistema de freios e contrapesos", com a hipertrofia do Poder Judiciário e a incapacidade dos outros poderes de responder aos abusos, seja por conivência ideológica ou temor de retaliação. "Isso é uma coisa chave nesse problema todo, porque nenhum ministro é questionado, ninguém é chamado a prestar depoimento, enfim, são incólumes. Esta é uma característica fundamental: a anulação efetiva do exercício de controle do Legislativo sobre o Judiciário", diz Luiz Carlos Ramiro Jr., doutor em Ciência Política (IESP-UERJ) e ex-presidente da Biblioteca Nacional.
➞ A violação dos direitos humanos, como nos casos das prisões do 8 de janeiro e nos ataques à liberdade de expressão dos cidadãos.
➞ A tentativa de controle das narrativas e da linguagem, como na utilização dos atos do 8 de janeiro como pretexto para defender medidas de restrição das liberdades ou no empenho por emplacar termos como "desinformação", "discurso de ódio" e "ataques à democracia" como justificativa para censurar críticos do autoritarismo. "Para mim, o primeiro sinal de autoritarismo são as narrativas. É uma palavra-chave: narrativas. Quando um Estado começa a ganhar feições de Estado totalitário, ele começa a trabalhar narrativas, a ir contra a própria realidade", diz o advogado Rafael Augusto Domingues, doutor em Direito do Estado. "Começa a haver um descolamento da verdade, um descolamento do genuíno diálogo que é necessário para a convivência em sociedade. Isso passa a ser substituído por algo que eu chamaria de persuasão. O detentor do poder começa a exercer pressão, com imposição da vontade para fazer valer as suas ideias."
➞ A adesão da imprensa, que deixa de ser um instrumento de controle democrático contra o autoritarismo e passa a servir para sustentá-lo. A defesa de mecanismos de controle da liberdade de expressão por formadores de opinião de grandes meios jornalísticos se tornou comum nos últimos anos. "A preocupação fundamental que devemos ter é o que vai ficar e como vai ser contado. Em todos esses momentos nebulosos [da vida em sociedade], a gente começa a perceber que pessoas diferentes contaram coisas diferentes. Mas isso só aparece quando há memória. Quanto menos memória nós temos, e quanto menos variedade de memórias, mais preocupante é o futuro", diz Ramiro Jr. "A imprensa, nesse sentido, tem um papel fundamental de difundir as diferentes visões sobre os fenômenos. Não tomar partido de forma cega quanto a determinados governos; procurar a realidade, procurar a verdade das coisas."
Para a juíza Ludmila Lins Grilo, aposentada compulsoriamente pela Justiça de Minas Gerais em uma decisão recente, é impreciso falar em "cooptação" da imprensa pelo autoritarismo estatal. "O que houve, na verdade, foi uma adesão voluntária da imprensa. O polo ativo desse movimento não foi o Judiciário obrigando a imprensa a fazer nada, mas sim a própria imprensa que, por sua livre iniciativa, aderiu ao comportamento tirânico vindo do Judiciário. E por que isso acontece? Isso é um movimento de décadas do gramscismo cultural", diz.
Juristas divergem sobre definir Brasil como "regime autoritário"
O sociólogo e cientista político Juan José Linz (1926-2013), especialista no estudo do autoritarismo na política, tem uma das definições acadêmicas mais usadas até hoje do que seria um regime autoritário. As quatro características principais apontadas por ele são:
- pluralismo político limitado;
- legitimidade política baseada em apelos à emoção e na identificação do regime como um mal necessário para combater problemas sociais;
- escassa mobilização política;
- poderes do líder ou da elite governante definidos de forma vaga, o que permite um controle maior do Estado.
Os especialistas entrevistados pela Gazeta do Povo reconhecem a presença de algumas dessas características no Brasil, mas divergem sobre chamar o que ocorre no país de "regime autoritário".
Para Ludmila Lins Grilo, o Brasil é uma ditadura "há pelo menos quatro anos". Ela critica quem questiona se o país "já" pode ser considerado um regime autoritário, como o fez a própria reportagem da Gazeta do Povo. "A gente vê muito essa frase rolando em Twitter, nas redes sociais. Qualquer coisa que o Moraes faça, [as pessoas dizem:] 'o Brasil agora já é uma ditadura'. Eu falo: 'gente, pelo amor de Deus, o Brasil é uma ditadura e não é já; não é uma coisa de agora'", comenta.
Embora seja um forte crítico da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nos últimos anos, Adriano Soares da Costa, ex-juiz de Direito e especialista em Direito Eleitoral, diz que é preciso "cuidados com o uso de expressões". "Às vezes a gente tira o peso delas e depois, quando a gente vai utilizá-las no momento adequado, elas já perderam a densidade que elas têm", observa. "Quando outras instituições democráticas estão frágeis, uma delas – e hoje é o Judiciário – se empodera, se hipertrofia e passa a exercitar um poder para além daquilo que a Constituição lhe faculta. Nós não estamos em uma ditadura; nós estamos em uma democracia disfuncional, em um estado de exceção constitucional – em alguns casos, com suspensão de direitos e garantias individuais, com suspensão de garantias inclusive históricas, civilizatórias, no campo criminal", complementa.
Soares da Costa ressalta ainda que "há instituições que poderiam funcionar para controle" dos abusos do Judiciário, o que não acontece em ditaduras. "Elas não funcionam por omissão. Não há impedimento ou constrição delas para não atuar. O Senado Federal está se omitindo do seu dever de preservar a Constituição Federal, de colocar limites ao Judiciário. Não se trata, portanto, de uma questão de autoritarismo ou de ditadura, mas de instituições democráticas que estão deixando de funcionar adequadamente. Há uma disfuncionalidade do Poder Judiciário quando exacerba essas atividades no âmbito penal, descumprindo inclusive cláusulas pétreas da Constituição no capítulo das garantias e direitos individuais. E, por outro lado, os demais poderes, sobretudo o parlamento através do Senado Federal, vira as costas para a sociedade brasileira e não exercita aquilo que é dever seu, de fiscalizar, de colocar limite e eventualmente de tomar medidas constitucionalmente previstas no sentido de pôr cobro em definitivo a essas atuações", observa.
Para Pedro Moreira, doutor em Filosofia do Direito pela Universidad Autónoma de Madrid, o que acontece no Brasil é um fenômeno próprio, que ele prefere chamar de "regime oligárquico". "Acho que o Brasil tem a sua própria história e tenho a impressão de que, com a ascensão do sistema de 1988, fomos criando um tipo específico de oligarquia urbana e burocrática, que, agora, parece alcançar um nível próximo do insuportável. Porque já não se trata apenas de uma burocracia que faz de tudo para preservar o seu próprio poder. Ela, cada vez mais, com o apoio de parcela importante das classes intelectuais, acadêmicas e jornalísticas, avança contra o modo de vida do próprio povo, das pessoas comuns. Portanto, talvez possamos falar em uma espécie de regime oligárquico", comenta.
Congresso é responsável por "juristocracia" no Brasil, afirmam juristas
A hipertrofia do Poder Judiciário e o ativismo judicial no STF não são responsabilidade somente de ministros da Corte: o Congresso também tem grande parcela de culpa, dizem os juristas consultados pela reportagem.
Para Pedro Moreira, "é bem provável que o Brasil seja o maior exemplo" mundial do fenômeno da juristocracia. "Falamos muito no STF. Mas a hipertrofia é generalizada. Os poderes não eleitos têm um poder político completamente contraindicado em uma democracia. Creio que não exagero ao dizer que hoje, no Brasil, uma recomendação do Ministério Público está valendo mais que a própria lei", comenta.
Segundo ele, a inércia dos parlamentares é uma das causas da juristocracia no Brasil. O fenômeno acaba fomentando um Legislativo que muitas vezes propõe, por demagogia, aquilo que sabe que não vai avançar e que, ao mesmo tempo, fica omisso quando deveria agir. O resultado é um Congresso com duas características: a temeridade e a covardia.
"Se o poder de fato está concentrado no Judiciário, o legislador pode, por demagogia, propor coisas absurdas, porque o juiz as derrubará. Isso é temeridade. Mas o legislador também pode – precisamente porque sabe que, no final do dia, quem decide é o tribunal –, deixar de deliberar sobre temas delicados e impopulares. E isso é covardia", observa.
Soares da Costa também acredita que o Congresso é culpado da juristocracia no Brasil. Uma das evidências disso é que o Legislativo delega funções ao STF: muitas questões que deveriam ser resolvidas no âmbito parlamentar têm sido levadas ao Judiciário. "A saída da juristocracia é o parlamento chamar para si o protagonismo do processo dialógico na política. O problema é que as minorias circunstanciais do parlamento, quando perdiam as suas discussões no âmbito do debate parlamentar, passaram a levar o termo ao Judiciário. As próprias minorias dizem: eu não creio no parlamento. E, na medida em que o Congresso nacional perdeu o seu autorrespeito, o próprio conceito de imunidade parlamentar passou a ser esvaziado. Esse é um dos sintomas muito claros da fragilidade do parlamento."
Omissão da classe jurídica sobre o STF tem paralelo na Alemanha nazista
A escassa reação da classe jurídica contra os abusos do STF tem paralelo na Alemanha nazista, de acordo com Ludmila Lins Grilo. Para ela, a omissão de muitos juristas renomados e de órgãos de classe como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre as medidas autoritárias do Supremo recorda um fenômeno que ocorreu com os nazistas no poder.
"O silêncio do meio jurídico é um dos elementos caracterizadores de ditaduras. Vou dar um exemplo: no livro 'Hitler e os Alemães', do filósofo Eric Voegelin, há uma parte em que o autor diz que após o regime de Hitler, após a queda do nacional-socialismo, ele começou a circular pelas bibliotecas na Alemanha procurando escritos dos juristas da época para saber o que eles escreveram durante o nacional-socialismo, durante os horrores do nazismo, o que esses juristas escreveram [sobre o regime]. E ele percebeu o seguinte: praticamente não havia nada", relata Ludmila.
Na visão dela, "o que está acontecendo no Brasil hoje é exatamente esse fenômeno da omissão dos juristas em escrever, em falar sobre o que está acontecendo em tempo real". "Isso é uma característica de ditadura. Já aconteceu na Alemanha e está acontecendo no Brasil hoje."
No livro em questão, Voegelin relata: "Pedi a membros do Instituto para fazerem uma pesquisa para investigar se, em monografias ou ensaios longos, os professores de Direito alemães haviam tomado uma posição diante dos julgamentos dos crimes nacional-socialistas. Há alguma literatura acerca dessa questão? O resultado da pesquisa é este: professores de Filosofia do Direito e de Direito Público não se expressaram em monografias acerca dos julgamentos dos Einsatzgruppen, ou seja, desses assassinatos em massa."
Atmosfera de medo no Brasil é característica de regime autoritário, dizem analistas
O temor de deputados, senadores, jornalistas, influenciadores digitais e juristas de manifestar suas críticas sobre a atuação de membros do Poder Judiciário evidencia a crise da liberdade de expressão, e é uma característica de regimes autoritários, dizem os analistas entrevistados pela Gazeta do Povo.
Até mesmo em um ambiente como o Congresso, em que a Constituição prevê imunidade justamente para permitir discussões abertas sobre questões de interesse público sem receio de ações legais, a autocensura por temor é crescente.
"Há uma atmosfera de medo. Há, especialmente no flanco da direita, um temor. Conversei com vários assessores de deputados que expressam isso", diz Luiz Carlos Ramiro Jr.
Em maio, após a participação em uma comissão parlamentar que discutia a censura no Brasil, a youtuber Bárbara Destefani, do canal Te Atualizei, foi censurada no YouTube. "Há essa atmosfera de receio de expressar algo, de escrever algo, de falar algo, mesmo dentro de esferas de debate público – como no caso da youtuber Bárbara. Mesmo sendo em um ambiente de debate público, ela foi punida pelo que falou, quando se pressupõe que naquele ambiente há especial liberdade de fala para quem for convidado."
Ludmila Lins Grilo destaca que o temor de se expressar é uma marca de ditaduras. "Uma das características dos regimes autoritários, dos sistemas tirânicos, é justamente o império do medo. Hoje em dia nós vemos que as pessoas, até aquelas que não são famosas, não são influenciadoras, não têm milhões de seguidores, têm medo de se manifestar nas redes sociais, medo de falar. Esse medo generalizado é um dos elementos que caracterizam regimes ditatoriais."
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