Curitiba – A CPI das ONGs tem data para ser instalada: 5 de junho. Os parlamentares pretendem apurar o destino dado a recursos públicos federais transferidos para as organizações não-governamentais. Nos últimos oito anos, elas teriam recebido R$ 20 bilhões, mas não há prestação de contas da aplicação de todo esse dinheiro.

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Desde a década de 90 as ONGs vêm ganhando espaço. O chamado terceiro setor assume funções antes de responsabilidade só do Estado. "É a sociedade civil se auto-organizando e resolvendo seus próprios problemas", diz o advogado Gustavo Justino de Oliveira, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Comissão de Direito do Terceiro Setor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Paraná. Ele acaba de lançar o livro "Terceiro Setor – Empresas e Estado – Novas Fronteiras entre o Público e o Privado".

Nesta entrevista à Gazeta do Povo, Oliveira fala do papel cada dia mais importante das organizações não-governamentais e ressalta a necessidade de haver um controle do trabalho destas entidades. "É preciso diferenciar ONG de quadrilha", afirma.

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Gazeta do Povo – Como o seu livro trata desta fronteira entre o público e o privado?

Gustavo Justino de Oliveira – O que a gente vem observando não só no Brasil, mas no mundo todo, nesses últimos dez anos, é uma mescla do público com o privado. Antes, as fronteiras eram bem determinadas, hoje nós temos uma área de interseção muito grande onde são desenvolvidas muitas das atividades que antes eram tidas como atividades de Estado. Ou antes eram tidas como atividades privadas. Este é o ponto de partida do livro. Nós pesquisamos – somos um grupo de professores – alguns temas onde o público se mistura com o privado e o privado se mistura com o público. Como explicar no Direito que hoje as empresas têm responsabilidade social e realizam função social? Isso não é uma coisa clássica do Direito. Como que uma ONG presta serviço de saúde? O livro retrata essa nova realidade. A grande mudança está nesta denominação terceiro setor, que não é Estado, não é mercado, é a sociedade civil se auto-organizando e resolvendo seus próprios problemas. Também abordamos os limites de atuação destas ONGs e quais são as verdadeiras ONGs. Muitas são de fachada. Nos últimos oito anos, o governo federal repassou mais de R$ 20 bilhões para ONGs e não se tem relatório do que foi feito com esse dinheiro.

E quem é responsável por controlar esta prestação de contas?

A gente não tem na América Latina a conscientização do chamado controle social, que é a própria sociedade controlando a atividade pública, seja ela realizada pelo governo ou pelas ONGs. Quem deveria controlar era a sociedade e a própria sociedade deveria denunciar os desvios, talvez junto com a mídia, que é um grande poder. É um problema cultural. Mas o Ministério Público, por lei, é obrigado a examinar os relatórios de prestação de contas das ONGs que recebem recursos públicos. Nem números existem. Há um censo de ONGs feito pelo IBGE, ano-base 2002, divulgado em 2004, em que se fala em mais ou menos 300 mil em atuação no país. Seria interessante que houvesse um censo estadual. Houvesse formas de se acompanhar a evolução do trabalho dessas ONGs, saber quais são sérias, quais não. E ter até um órgão da própria sociedade, um Conselho de Controle Social, sem participação do poder público, para controlar isso. Não tem solução mágica. A sociedade tem de se organizar. A gente debate muito isso no livro.

E esta mistura do público com o privado é positiva?

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Sim. Hoje você não consegue mais diferenciar. A questão é que esta convivência tem de ser transparente. Por que eu, governante, vou optar pela parceria com o terceiro setor? Eu tenho que justificar isso para o meu eleitorado. Eu vou optar porque é mais barato, vou economizar porque não terei de criar uma nova carreira, não posso contratar. Essa justificativa é o primeiro ponto. Segundo, com quem fazer a parceria? Eu, governante, tenho que justificar isso, comprovar que aquela ONG é a que tem maior capacidade técnica, melhores recursos, capacidade organizacional para realizar aquele trabalho. Depois, tem de fiscalizar a aplicação dos recursos públicos. Não é só ver no final, quando o dinheiro já está na Suíça. É preciso diferenciar ONG de quadrilha. Tem muita quadrilha formada que se auto-intitula organizações não-governamentais. A Constituição garante o direito de livre associação. Mas se eu me associo a alguém buscando o desvio de dinheiro público, eu estou criando uma quadrilha, eu não estou criando uma ONG. E nem o registro público disso poderia ser feito. Então, o controle do Estado também é necessário. O problema é que muitas vezes nós temos políticos envolvidos nessas ONGs laranjas, e aí as coisas passam batido.

Mas não são todas as ONGs que recebem dinheiro público.

Segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, para 55% das ONGs brasileiras a primeira receita é pública. Mas seria preciso que só fossem liberados recursos para aquelas organizações sobre as quais o governo tem uma fiscalização mais intensa. No Brasil, qualquer uma pode receber. Qual seria o melhor processo? Como nós temos a licitação para contratar uma empreiteira para fazer uma ponte, nós teríamos de ter um processo de seleção pública para escolher as melhores ONGs que, eventualmente, viriam a receber dinheiro público.

Com esta mistura do público com o privado, não há o risco de o governo não fazer o que deveria, repassar o dinheiro para uma ONG e ela também não executar o serviço?

Sim e haveria ainda mais prejuízos. Se um prefeito faz uma parceria mal feita, por exemplo, e a ONG fecha, some com o dinheiro e não paga as pessoas que teria de pagar? Essas pessoas entram na Justiça contra a prefeitura. E aí são os cofres públicos que sofrem. Então, a pareceria que se vislumbrava como a solução dos problemas, passa a ser fonte de problema.

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E o serviço que teria de ser feito não é executado.

Não é executado ou é mal executado.

Diante de tudo isso, qual é o destino das ONGs? Elas vão continuar proliferando?

Vão continuar crescendo, no Brasil e no mundo. Cada vez mais a sociedade vai se organizar e vai chegar ao ponto que ela vai combater as ONGs mal-intencionadas. Isso já está acontecendo. O que a gente não tem? Não temos muito bem articulados os órgãos para quem se deve denunciar. Nos países onde dá certo, a própria sociedade se articulou e ela fiscaliza, ela controla, ela denuncia a gestão pública e a gestão das ONGs.

Em que países há experiências bem sucedidas?

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Em vários países. Vou te dar dois exemplos com características similares: Portugal e Espanha, que tiveram problemas de democracia muito grandes e a redemocratização ocorreu na década de 70. Você tinha uma sociedade amorfa, sufocada. Então, tanto em Portugal quanto na Espanha o processo de evolução da sociedade ocorreu muito rapidamente com a redemocratização. Lá tem histórias muito fortes, ligadas com a idéia de democracia, de transparência, de abertura, de visibilidade das ações públicas. Aí você tem outros países na Europa – Inglaterra, Alemanha, Holanda e os próprios países escandinavos – onde há uma atuação da sociedade muito forte na essência ou na base da criação do Estado. Essa sociedade que serviu de base para aquele Estado é uma sociedade atuante. Ela já está acostumada a resolver seus próprios problemas. E outro modelo que é diferente e que eu estou estudando mais de perto agora, é o francês. O Estado lá faz muita coisa e a sociedade é muito dependente do Estado. Já a sociedade brasileira é totalmente dependente do Estado e os governantes sempre quiseram que fosse assim. É uma questão cultural a nossa.

E qual é a colaboração que a CPI das ONGs pode dar a este processo?

Ela vem em bom momento. Não é a primeira. É a segunda CPI das ONGs. Para mim é a terceira. A primeira que envolveu as ONGs foi a CPI dos Anões do Orçamento, na década de 90, quando descobriram que as emendas orçamentárias que os parlamentares faziam eram para ONGs nos seus estados, dirigidas por seus familiares. Essa foi a CPI que mais funcionou. Depois nós tivemos a CPI das ONGs, mas que estava muito focada na Amazônia Legal. Empresas estrangeiras criavam ONGs, faziam parcerias com os índios ou pessoas da região e praticavam o extrativismo ilegal ou outras coisas piores. Esta CPI não teve grandes resultados. Mas o relatório final indicou que deveria haver uma legislação mais específica de fiscalização e controle de ONGs no Brasil. Tudo isso foi tratado e criou-se um projeto de lei que desde aquela época, 2002, está em discussão no Congresso. Esse tema volta com a CPI. Então, tem esse lado bom. Vai ser discutido um marco legal do terceiro setor no Brasil, que não envolve só controle e fiscalização. O foco desta CPI é bem diferente da outra: transferência de recursos públicos federais para ONGs em determinado período. Tem que ver o que aconteceu. O próprio TCU (Tribunal de Contas da União) já detectou que R$ 11 bilhões, só no governo Lula, teriam sido transferidos para organizações não-governamentais, mas não se sabe o destino deste dinheiro. Um aspecto negativo é que a população vai interpretar que todas as ONGs cometem irregularidades, o que não é verdade.

Há uma estimativa de quantas estariam atuando ilegalmente?

A maioria das entidades são bem intencionadas, desenvolvem um trabalho belíssimo em segmentos específicos. Duvide daquelas ONGs que fazem tudo. E as honestas sofrem demais com estes escândalos porque elas dependem do voluntariado.

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