Em 1983, a farmacêutica Maria da Penha Fernandes sofreu duas tentativas de assassinato dentro da própria casa – ambas protagonizadas pelo então marido. Na primeira, o companheiro simulou um assalto e atirou contra ela enquanto dormia. O tiro à queima-roupa a deixou paraplégica. A segunda aconteceu quatro meses depois, quando o marido a derrubou na cadeira de rodas dentro do chuveiro e tentou eletrocutá-la.
Além de uma vítima de violência doméstica, a farmacêutica também foi vítima do próprio sistema judiciário, que manteve o agressor solto por 19 anos. Sem respostas das autoridades brasileiras, Maria da Penha denunciou o caso à Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2001. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Brasil publicamente por fechar os olhos diante dos crimes contra a mulher.
Diante do constrangimento, o Congresso aprovou e o então presidente Lula sancionou, em 7 de agosto de 2006, a Lei 11.340, que leva o nome de Maria da Penha. A ativista, hoje com 71 anos, conversou com a Gazeta do Povo sobre os avanços e desafios da lei, que prevê uma série de políticas públicas destinadas ao combate da violência contra a mulher, como o atendimento especializado e a garantia de proteção. “A cultura machista impede esse compromisso de gestores de criar esses equipamentos”, afirma ela.
A solução para a questão, de acordo com Maria da Penha, só virá por meio da educação e da vigilância contínua da legislação que leva seu nome. E é isso que a ativista espera para os próximos dez anos. Leia a entrevista completa:
Quais foram os avanços que a lei trouxe no enfrentamento da violência contra a mulher?
Pesquisas têm mostrado que, nas cidades onde a Lei Maria da Penha foi devidamente implementada, as mulheres passaram a confiar nas instituições e a denunciar os agressores. Existe um aumento do número de denúncias, o que não quer dizer o aumento da violência em si. Nas cidades onde não existem equipamentos especializados nesse tipo de denúncia, isso não acontece. Está faltando um compromisso maior dos gestores públicos para implementar as políticas públicas previstas na lei para que as mulheres tenham onde denunciar e buscar orientação.
No que ainda precisamos avançar?
No meu caso, eu não denunciei porque nem Delegacia da Mulher existia. Eu pedi a separação e ele [o ex-marido] não queria. Então não tinha o que fazer. Até porque na época existia um grande número de mulheres assassinadas porque não queriam continuar o relacionamento e por isso eles as assassinavam. Se você observar, mesmo nas capitais, onde esses equipamentos especializados existem, as políticas públicas não têm funcionado direito. Na maioria dos locais, a Delegacia da Mulher fica fechada à noite e não há plantão aos fins de semana. A cultura machista impede esse compromisso de gestores de criar esses equipamentos. A dificuldade é muito grande. É preciso investir em educação para acabar com essa cultura.
Há muitas críticas às leis que buscam discutir a questão de gênero dentro da sala de aula. Qual é a sua opinião sobre esse debate?
Não discutir isso é um retrocesso, e isso faz parte da cultura machista. Quando a Lei Maria da Penha foi sancionada, muitas pessoas que não entendiam a importância buscaram enfraquecê-la. Foi pedido inclusive às instâncias superiores da Justiça que a lei fosse considerada inconstitucional porque, na Constituição, homens e mulheres são considerados iguais. Na realidade, a lei veio para fortalecer esse entendimento. A pressão internacional era nesse sentido de impunidade, já que antes não existia punição aos agressores. Nos tribunais, a violência doméstica era considerada uma violência de menor potencial ofensivo e a punição era o pagamento de cestas básicas e trabalho comunitário. Agora, já temos mais segurança. Precisamos avançar para que os pequenos e médios municípios tenham a estrutura para que a mulher possa denunciar e se sentir segura.
O tratamento do agressor é previsto na lei, mas ele dificilmente acontece. Como evitar a reincidência da agressão?
Esse atendimento está sendo feito, mas com muito mais lentidão. A prioridade neste momento é a mulher. No momento em que as políticas públicas se organizam, se começa a atender ao agressor. A atenção maior é cuidar da mulher, porque o apoio para ela é mais complexo. A mulher tem muita dúvida, tem medo, pensa nos filhos. Às vezes, ele é um péssimo marido, mas é um bom pai. É preciso trabalhar essa questão.
Os relatos das mulheres que sofrem violência mostram um ciclo de dependência emocional e financeira, que muitas vezes faz com que a mulher se mantenha em uma relação. Como é possível quebrar esse ciclo?
Uma política pública que é muito importante é a Casa da Mulher Brasileira. Essa política é muito interessante, porque ajuda a mulher na luta pela denúncia e ajuda a impedir que ela desista. Ao chegar na Casa, a mulher já é orientada e capacitada para desenvolver um trabalho que a torne independente e que gere uma renda para ela e para os filhos. Muitas mulheres acabam desistindo da denúncia porque os equipamentos que a mulher tem para fazer a denúncia são colocados em diversos locais e a dificuldade da mulher chegar até lá é grande. Ela vai numa delegacia e encontra ela fechada. Aí, ela desiste. Ela precisa ser encaminhada ao Centro de Referência... mas ele é em outro bairro e ela acaba não conseguindo ir até lá. Por isso é importante que eles funcionem em um mesmo local.
O que a senhora espera da Lei Maria da Penha para os próximos dez anos?
Espero que haja uma sensibilização dos gestores públicos para colocar essa atenção às mulheres nos municípios pequenos e médios. Espero que a partir de agora haja um investimento para atender à recomendação da OEA [Organização dos Estados Americanos], que é proporcionar educação em todos os níveis para desconstruir a cultura machista. As crianças, os jovens e universitários, que serão os futuros apreciadores da lei têm que ser educados nesse sentido. Seria maravilhoso se um dia não precisássemos mais da lei. Mas só a vigilância pode fazer com que a violência contra a mulher diminua e, quem sabe, um dia acabe.
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