Ouça este conteúdo
Em julho de 2020, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completará 30 anos. Especialistas na área de direitos da infância e adolescência apontam falhas na implementação dos direitos que o documento prevê, mas não veem necessidade de alterações substanciais em seu conteúdo e celebram sua estabilidade ao longo dos anos.
Desde que o ECA foi criado, durante o governo Collor, o Brasil passou por sete presidentes da República. Algumas alterações foram feitas, mas o documento atual mantém contornos muito semelhantes aos do original, o que indica a capacidade do estatuto de se amoldar a governos com diferentes linhas ideológicas.
“Com 30 anos, a gente não conseguiu implementar todas as promessas do estatuto. Ele trouxe grandes inovações, sem dúvida alguma. É uma das leis mais avançadas no mundo sobre proteção da criança. Contudo, a gente ainda tem grandes desafios”, afirma Leandra Vilela, defensora pública do Núcleo da Infância e da Juventude da Defensoria Pública do Distrito Federal.
Eduardo Tomasevicius Filho, professor do Departamento de Direito Civil da USP, destaca que o ECA trouxe avanços sociais como reconhecer o feto como um sujeito de direito, tratar da saúde da mãe e da criança em gestação, instituir a obrigatoriedade da vacinação infantil, estruturar a função dos conselhos tutelares e estabelecer conceitos como os de família estendida – que inclui parentes da criança – e de família substituta – que passa a ser permitida para crianças sem família. “A partir do Estatuto da Criança, toda criança tem direito a uma família. Se não tem, cabe ao Estado dar um jeito de arrumar uma família para resolver esse problema”, lembra o professor.
Leandra Vilela cita outros avanços relacionados aos direitos da infância e da adolescência que foram favorecidos pelo ECA, como a ampliação da licença-maternidade e a previsão do afeto como um direito da criança.
Tratamento a menor infrator precisa ser melhorado, dizem especialistas
Outro aspecto relevante do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo Tomasevicius, foi aprimorar as regras sobre atos infracionais, que são os crimes praticados por crianças e adolescentes. “Ele estabeleceu garantias e também disciplinou as medidas socioeducativas”, diz.
Para Glícia Salmeron, presidente da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o ECA foi positivo para o tratamento a menores infratores, mas a implementação das medidas propostas pelo documento ainda está longe do ideal.
“O sistema está precarizado em todos os estados brasileiros e aplica de forma inadequada as medidas socioeducativas ao adolescente que praticou um ato infracional”, diz ela. “Os órgãos que executam as medidas socioeducativas estão sucateados. Não têm orçamento, não têm recursos humanos e socioeducadores para trabalhar com esses meninos. A discussão, muitas vezes, passa pela garantia dos agentes de quererem usar armas em vez da formação dos educadores sociais para trabalharem com esses adolescentes”, acrescenta.
Apesar da crítica, Glícia cita alguns avanços em relação às medidas socioeducativas desde a criação do ECA, em 1990. Para ela, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que prioriza a via pedagógica em lugar da punição para os jovens infratores, é um bom exemplo. O sistema foi regulamentado por uma lei de 2012, mas ela lamenta que ele ainda não tenha sido implementado de forma adequada em todos os estados brasileiros.
Leandra Vilela afirma que a parte do ECA sobre as medidas relacionadas a menores infratores poderiam ser colocadas em segundo plano se a parte sobre as garantias à proteção e ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes fosse tomada mais a sério.
“Se a gente trabalha bem nas promessas do estatuto nessa primeira parte, que fala sobre proteção e desenvolvimento, a gente não precisa, praticamente, utilizar a segunda. O que nós vemos, no atual cenário, é que os meninos que ficam desassistidos durante toda a primeira e segunda infância inevitavelmente acabam transgredindo, acabam cometendo atos infracionais análogos a crimes. Aí a segunda parte do estatuto precisa ser aplicada, que é a responsabilização”, afirma ela.
Como o governo atual lida com o ECA
Em maio de 2019, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) lançou uma nova edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com pequenas alterações no texto.
Houve duas mudanças mais importantes. A primeira foi a inclusão de trechos sobre a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, que criou o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas e instituiu regras mais rigorosas para crianças e adolescentes que viajem desacompanhados dos pais. A segunda foi a criação da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência.
Outro ponto que há anos se discute relacionado ao ECA é a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Nomes importantes do Poder Executivo do atual governo, como o próprio presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, são favoráveis à redução. Trata-se, no entanto, de um tema que precisaria passar pelo Congresso.
Uma mudança relacionada ao estatuto que Bolsonaro já promoveu ocorreu em setembro do ano passado, via decreto: a redução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), órgão responsável por fiscalizar e garantir o cumprimento do ECA. O MMFDH justificou a medida afirmando que ela fazia parte da estratégia de redução de gastos do governo, e que as funções do Conanda seriam preservadas.
Os especialistas entrevistados pela Gazeta do Povo consideram que meras alterações na lei não são o mais importante no atual momento. É preciso, segundo eles, que as políticas públicas previstas no ECA se cumpram com maior eficácia.
“É uma lei muito boa, prevê praticamente todos os direitos que garantem a dignidade da criança e do adolescente e dão condição de pleno desenvolvimento. Mudar a legislação eu não acho que seja necessário. O que é necessário é que ela se cumpra de uma forma plena. E o cumprimento do estatuto só é possível com políticas públicas. Não adianta a lei se não há uma mudança de mentalidade dos governos e da sociedade de modo geral”, diz Leandra Vilela.
Glícia Salmeron vê com receio algumas alterações no estatuto. A discussão sobre leis, segundo ela, pode tirar a atenção da necessidade de ações. “Vou dar um exemplo da lei que a sociedade denominava ‘lei da palmada’. Qual era a finalidade daquela lei? O objetivo era ‘não bata, eduque’. Isso reduziu o número de violações? Não. O espírito da lei era fazer com o que o Estado brasileiro, além de fortalecer o monitoramento, trabalhasse com campanhas de conscientização. Isso não foi feito.”
Apesar das críticas, algumas mudanças são vistas como positivas. Vilela afirma que a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, por exemplo, que foi acrescentada ao ECA pelo MMFDH em 2019, pode trazer bons resultados. “Acho que tem uma repercussão muito grande. A gente está falando de um país em que a gravidez geralmente não é planejada e que tem um alto índice de gravidez na adolescência”, diz.
Profissionalização de adolescentes e adoção ainda são desafios
Embora os especialistas celebrem o ECA, consideram que alguns de seus pontos foram ignorados ao longo dos anos. Para Eduardo Tomasevicius Filho, um trecho do estatuto que merece mais atenção é o que trata da profissionalização dos adolescentes. “Fala-se muito pouco sobre o aprendiz. Acho que se perde uma grande oportunidade de preparar os adolescentes para a entrada no mercado de trabalho”, diz.
Glícia Salmeron concorda. “A gente não entende por que num país como o Brasil se discute tanto a economia e não se discute, de forma prioritária, a profissionalização e a inclusão dos adolescentes na aprendizagem”, afirma ela.
Leandra Vilela destaca a necessidade de políticas públicas mais eficazes para a adoção de crianças. “A gente precisa avançar com um trabalho ostensivo para aqueles que pretendem adotar, com relação à mudança do perfil.” Hoje, segundo ela, há uma fila de adoção em que o número de crianças a serem adotadas é menor do que o número de interessados em adotar, porque as crianças não atendem ao perfil geralmente preferido.
Tomasevicius diz que há trechos do ECA que poderiam ser atualizados, para que o documento ficasse mais relevante para a sociedade atual, levando em conta especialmente a revolução digital pela qual o mundo passou a partir dos anos 1990.
“O ECA foi desenvolvido para uma criança dos anos 90. Hoje, as crianças são muito mais espertas, pela quantidade de informação. Para se ter ideia, o ECA fala que revistas pornográficas têm que vir em um envelope opaco. Mas, com a disponibilidade pornografia na internet, o estatuto ficou até inocente.
Em seu artigo 78, o ECA diz que “revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo” e que as editoras devem protegê-las “com embalagem opaca”.
Apesar de recomendar atualizações pontuais do ECA, Tomasevicius considera que o documento não precisa de mudanças substanciais e destaca sua consolidação no Brasil.
“Tendo em vista que já são 30 anos, vejo que o Estatuto da Criança e do Adolescente já está bem consolidado na nossa sociedade. Sempre pode sofrer aperfeiçoamento, mas já é um ramo bem consolidado. Acho que é uma lei que pegou, se estruturou e faz parte da nossa cultura.”