Em redes sociais e nos meios de comunicação, entre os assuntos mais comentados da pandemia costumam estar as polêmicas sobre a eficácia das vacinas, as discussões sobre medidas de isolamento social, o debate do tratamento precoce, as controvérsias sobre números da Covid-19, ou a última briga entre o presidente da República e algum governador. Mas, para muitos dos 16 milhões de brasileiros que, segundo o IBGE, vivem em favelas, estas tendem a ser questões irrelevantes ou secundárias.
“O pessoal está preocupado em pagar as contas, em comer e em tomar a vacina”, resume Preto Zezé, presidente nacional da Central Única das Favelas (CUFA). Nas últimas semanas, a CUFA e outras entidades de apoio a moradores de favelas têm tentado voltar o olhar dos setores público e privado para uma questão que é urgente, mas não ganha a mesma atenção que outros assuntos no noticiário e nas redes sociais: o aumento da pobreza nas favelas.
Uma pesquisa em 76 favelas do Brasil, feita no começo de fevereiro pelo instituto Data Favela em parceria com a CUFA, mostra que 71% das famílias de favelas estão sobrevivendo com menos da metade da renda que tinham antes da pandemia. Com o aumento do desemprego e a falta de dinheiro para pagar as contas e bancar as necessidades básicas, é difícil demandar que o foco da preocupação das famílias, hoje, sejam os cuidados sanitários para evitar a disseminação da pandemia.
“O gargalo maior é o fato de você ter as pessoas muito tempo desempregadas, numa dependência radical de algum tipo de ajuda monetária, e por muito tempo. Elas começam a ficar muito cansadas”, afirma Celso Athayde, CEO da Favela Holding, uma ONG que reúne empreendimentos de apoio ao desenvolvimento social nas favelas.
A diarista Joelma Numiá, que mora no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro, teve sua renda reduzida consideravelmente por conta da pandemia. “Eu tinha trabalho na semana toda. Com a pandemia, minha patroa não conseguiu me manter, porque ela é autônoma. Isso reduziu meus dias de trabalho e meu salário. Ficou bem complicado… Uma mãe de três filhos morando de aluguel com salário reduzido mais que pela metade praticamente”, conta Joelma, que tem se sustentado com doações da CUFA, pelo programa Mães da Favela.
“Há um impacto muito grande na economia, e essas pessoas são as primeiras a sofrer as consequências”, diz Athayde, que aponta ameaça de “convulsão social” caso esse problema não ganhe uma solução. “Você pode até morar na rua, mas, se não conseguir nem comer, você morre. A nossa maior dificuldade hoje é conseguir convencer as pessoas a continuar doando, para que a gente não corra o risco de entrar numa convulsão social.”
Dificuldades financeiras: o fim do auxílio emergencial e a redução nas doações
Para Preto Zezé, a demora no retorno do auxílio emergencial contribuiu para agravar a fome nas favelas. “O auxílio não veio, e os boletos continuam chegando. Isso gerou um sufocamento que comprometeu a segurança alimentar das pessoas na favela”, diz.
O auxílio voltará a ser pago pelo governo a partir do dia 6 de abril, o que deve ajudar a amenizar a crise social. Mas, segundo Athayde, isso não basta. Um dos problemas, segundo ele, é que muitos daqueles que poderiam receber o auxílio não sabem como ir atrás da ajuda.
Recentemente, ele participou de uma reunião com a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, e apontou essa dificuldade durante a conversa. “Mostramos a importância não só do auxílio emergencial, mas também da necessidade de facilitar a chegada do auxílio às pessoas”, diz. Entre os moradores de favela, de acordo com o Data Favela, 58% pediram e receberam o auxílio emergencial de 2020, 18% pediram e não receberam, e 23% não pediram.
Athayde explica que, além do fim do auxílio emergencial, o agravamento da crise nas favelas se deve em grande parte à queda nas doações de dinheiro, alimentos e cestas básicas por parte do setor privado e da sociedade civil. As doações começaram a cair em setembro de 2020 e, a partir de novembro, despencaram consideravelmente.
“Teve um boom em abril, maio, em que todo mundo doava. Mas as pessoas doavam na expectativa de que ia até junho o problema. Só que o tempo passou, o ano virou, e 80% das pessoas já não estavam mais doando”, diz.
No momento, segundo Preto Zezé, parcerias com algumas empresas e doações de empresários têm sido importantes para que as ações da CUFA de assistência aos moradores de favelas durante a pandemia não parem. “O setor privado tem sido importantíssimo para a gente manter o nariz em cima d’água”, diz.
Além disso, muitas vezes, é necessário contar com a solidariedade dos próprios vizinhos de comunidade. Alguns dos moradores menos afetados pela pandemia chegam a criar subempregos para ajudar no sustento de outras famílias.
Daniele Britto, moradora da favela Baixa do Camurujipe, no bairro de São Caetano, em Salvador, era auxiliar de cozinha até o início da pandemia, mas perdeu o emprego e, hoje, tem dificuldades de ajudar a sustentar a casa. Ela mora com a mãe e o padrasto, que também ficaram desempregados, e é mãe de um menino de 8 anos.
Há alguns meses, ela trabalha como babá da filha de uma vizinha que é vendedora. “Como ela, graças a Deus, conseguiu manter o trabalho dela, e a escola em que a filha dela estava era tempo integral e não tem mais aula presencial, eu fico com a filha dela, tomo café com ela, dou banho, arrumo a casa, e dependendo do mês, ela pode pagar R$ 200, R$ 250, dependendo da comissão que ela recebe. Eu falo: ‘Amiga, qualquer ajuda é bem-vinda’”.
O caso de Daniele não é raro. A renda de 78% dos moradores de favela diminuiu durante a pandemia. Além disso, 67% deles afirmam ter tido que cortar despesas básicas, como as de alimentação, limpeza e contas de luz, segundo o Data Favela.
O problema da alimentação nas favelas durante a pandemia
Os moradores de favela têm sobrevivido com média de 1,9 refeição por dia na pandemia, afirma o Data Favela. Além disso, 68% deles dizem que a pandemia fez a sua alimentação piorar – em agosto de 2020, este número era de 43% –, e 82% relatam que só conseguiram comer, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas básicas nos últimos meses por causa de doações.
Veja infográfico sobre a pandemia nas favelas.
Athayde relata um fenômeno que deixa visível a situação de penúria no cotidiano das favelas: as pessoas não têm mais vergonha de pedir. “Quando você não consegue comida, você geralmente tem vergonha de pedir, você pede escondido. Hoje, não. Isso está muito mais visível. Você vê as pessoas se expondo, saindo de suas casas com seus filhos, indo de bar em bar para pedir as coisas para pessoas.”
Daniele conta que, em alguns momentos, precisou pedir comida a vizinhos. Às vezes, ela tem de explicar ao filho de oito anos que não pode mais comprar alguns alimentos, como biscoitos e iogurte, para que não falte o mais essencial em casa. “Teve dias em que a gente procurou na cozinha e não tinha nada, só água mesmo. É bem difícil, ainda mais quando a gente tem criança que não entende. A gente explica: ‘Mamãe não tem dinheiro agora. Quando mamãe tiver, ela compra’.”
Em muitos casos, a mudança dos hábitos alimentares é drástica. O casal Jefferson Aparecido e Juliana Alves, que mora com seis filhos na favela Jardim Ibirapuera, em São Paulo, teve que mudar radicalmente a alimentação de suas crianças.
Juliana está desempregada, e Jefferson, que lavava carros todos os dias em uma locadora de veículos, passou a ser chamado com muito menos frequência para o trabalho, por causa da queda na demanda. Sua remuneração caiu consideravelmente.
As seis crianças faziam quatro refeições por dia na escola e em um centro recreativo que frequentavam. Hoje, com todos em casa na maior parte do tempo, a família faz, no máximo, duas refeições por dia, com a ajuda de cestas básicas e do dinheiro do Bolsa Família. “Não é todo dia que a gente tem o arroz, o feijão e a carne ou o ovo. A gente vai se virando do jeito que consegue”, diz Juliana.
A adesão às medidas sanitárias nas favelas
Outra dificuldade nas favelas é a da adesão às medidas sanitárias contra a Covid-19. Segundo a pesquisa do Data Favela, 30% dos favelados dizem não conseguir seguir as medidas de prevenção ao vírus, e 5% não estão tentando seguir. Já 33% tentam, mas nem sempre conseguem, e 32% dizem estar seguindo.
A principal motivação para não seguir as medidas é a necessidade de trabalhar ou ganhar dinheiro: 78% alegam isso. O número dos que acreditam que a doença não é tão grave é de 38%, e aqueles que acham que nem todas as medidas são necessárias é de 45%.
Para Athayde, a tendência a baixar a guarda na proteção contra a doença é natural, em vista do que muitas pessoas da favela precisam enfrentar para trabalhar.
“Quando você vai a um supermercado, encontra esta caixa que está lá há um ano sujeita a pegar o vírus todos os dias, o tempo todo, seja no supermercado, seja no ônibus que ela pegou para poder ir para o trabalho e voltar. A relação que essas pessoas têm com o vírus, com o risco e com o medo passa a ser outra”, afirma.
Para Preto Zezé, as campanhas em favor das medidas sanitárias ignoram a situação das favelas e são voltadas somente para pessoas de classes econômicas mais altas. “Vamos pensar em como foi a elaboração da campanha de lockdown, do álcool em gel, do “fique em casa”… Isso tudo foi feito partindo de uma realidade que ignora a realidade social brasileira”, diz Zezé. “Você tem uma propaganda de álcool em gel, e mais de 40% das pessoas não têm sabão e água regularmente. Como se mantêm as pessoas isoladas socialmente numa situação em que as pessoas já vivem socialmente isoladas de direitos?”, questiona.
Ainda assim, segundo Zezé, há uma grande adesão às máscaras nas favelas. “Virou consenso. O problema é que a questão da sobrevivência impõe algumas coisas. Imagine se a pessoa não pegar um ônibus… Como ela vai fazer? As pessoas que trabalham nos hospitais, nos postos de gasolina, os garis… Mesmo elas se protegendo, elas continuam sendo as mais expostas”, afirma.
Na opinião de Athayde, seria necessário incluir alguns destes profissionais entre os grupos prioritários da vacinação. “Durante esses doze meses de pandemia, são as pessoas que estão carregando o país nas costas. Quando você vai, hoje, a um posto de gasolina com seu carro ou seu caminhão, tem um frentista lá que mora na favela. Muitos moradores da favela são a base da pirâmide que está limpando os hospitais, fazendo segurança e dando suporte para os médicos e, no entanto, eles não são nem sequer considerados profissionais que trabalham na linha de frente”, critica.
Não há, hoje, uma estatística oficial unificada sobre a quantidade de mortos por Covid-19 em favelas. No Rio, uma iniciativa da ONG Comunidades Catalisadoras registra, atualmente, mais de 3,6 mil mortos pelo coronavírus desde o início da pandemia em favelas cariocas.
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