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Vanderley do Carmo (foto), 50 , enfrenta a solidão da noite para manter limpo o Largo da Ordem | Henry Milléo/Gazeta do Povo
Vanderley do Carmo (foto), 50 , enfrenta a solidão da noite para manter limpo o Largo da Ordem| Foto: Henry Milléo/Gazeta do Povo

Solidariedade

Há seis meses um gari de 56 anos ficou prostrado na cama vítima de um câncer no intestino. Desde então os colegas da turma da noite o ajudam com mantimentos ou algum dinheiro. Quem não pode num mês, ajuda no outro. E assim vão se revezando na solidariedade. Agostinho Dubinski faz as vezes de emissário das boas novas ao colega doente.

  • Agostinho Dubinski, 52 anos, é um dos responsáveis pela Rua Marechal Deodoro, no Centro

Curitiba tem fama de cidade limpa, a capital mais asseada do Brasil. O curitibano é bem consciente, é verdade – e não faltam campanhas ou programas de conscientização –, mas há sempre os sujismundos pondo tudo a perder. As pessoas podem não se dar conta, como normalmente acontece, mas há uma legião vestida de laranja com listras amarelas que, vassoura à mão, deixa a cidade tinindo a qualquer hora. Eles são muitos e estão por toda parte, embora, por ironia, só sejam lembrados quando ausentes.

Cada um dos 625 garis de Curitiba (585 homens e 40 mulheres) caminha 2 quilômetros de dia ou à noite e os 1.060 coletores de lixo orgânico e reciclável percorrem outros 20 quilômetros dependurados na traseira de um caminhão vasculhando a cidade atrás dos descartes alheios. Essa jornada pelas lixeiras e sarjetas resulta em 42 mil toneladas de resíduos por mês, parte disso descartada nas ruas – uma cena que se repete país afora. Não é coisa pouca. Conforme pesquisa do IBGE, cada brasileiro produz, em média, 1,1 quilo de lixo por dia.

Alguém precisa dar bom destino a tanto descarte. Basta observar o próprio quintal ou os entulhos de três dias em frente de casa para se ter alguma compreensão da importância desse serviço, antes pela relevância da saúde pública do que pelo glamour de qualquer ranking de limpeza. Mas a mesma importância parece não recair sobre quem o faz, a despeito das intempéries e da indiferença. Pesa sobre eles uma percepção condicionada unicamente à função social.

Estudo

Essa condição de espectro social já valeu estudo científico. Mesmo após 10 anos, o mestrado do psicólogo Fernando Braga da Costa ainda hoje diz muito sobre a invisibilidade dessa gente. Em seu trabalho de imersão, vestido de gari, ele próprio passou incógnito aos olhos dos colegas e professores nos corredores da Universidade de São Paulo (USP). Todos viam o uniforme, não a pessoa dentro dele. A experiência do psicólogo resultou no livro Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. O nome é revelador.

Os garis são dessa classe de gente presente em todo lugar, mas inaparente aos olhos dos passantes. Uma multidão invisível na paisagem urbana porque neles se vê uma representação social à qual se atribui pouco valor, embora o volume de resíduos e a limpeza das ruas digam o contrário. Quem passa indiferente provavelmente nunca vai saber o quanto isso dói. Os relatos são de lamento e resignação. Quem não se incomodaria por ser tratado como um objeto, uma coisa? Pois é.

Descaso

Há os que já não fazem caso da indiferença. Na profissão há 17 anos, sempre à noite, Agostinho Dubinski, 52 anos, já esteve mais abatido com o descaso alheio. Agora nem liga. Ajuda o fato de à noite ter menos gente para virar-lhe o rosto. Mesmo que houvesse, a indiferença não é motivo para arrefecer o orgulho do que faz. "Criei meus filhos com a varrição", diz. Estão sob sua responsabilidade as seis quadras da Marechal Deodoro entre a Rua Tibagi e a Travessa Doutor Muricy. Ele vai por um lado da avenida e volta pelo outro varrendo a calçada e esvaziando as lixeiras.

Há noites em que Agostinho recolhe até 18 sacos de 100 litros de lixo, mesmo que os colegas da manhã e da tarde já tenham passado. As coisas mais chatas de limpar são os tocos de cigarro – o que mais se encontra nas ruas –, os panfletinhos de garotas de programa, esses que infestam os telefones públicos na região central, e ainda os santinhos de candidatos em época de eleições. De restos de um vício às sobras de uma refeição às pressas, das promessas políticas às propostas de algumas horas de prazer, tudo vai parar na pá dos garis. A eles, Curitiba dá nota 10 pela limpeza.

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