• Carregando...
Crianças brincam na Rua Bom Menino, que dá nome à ocupação do Mossunguê: 143 famílias às margens do Rio Barigui | Daniel Derevecki/ Gazeta do Povo
Crianças brincam na Rua Bom Menino, que dá nome à ocupação do Mossunguê: 143 famílias às margens do Rio Barigui| Foto: Daniel Derevecki/ Gazeta do Povo

Vila vai virar Menino Grande

A Vila Bom Menino está em processo de regularização fundiária pela Cohab-CT, o que, em poucos meses, vai lhe alterar o perfil. Há 40 anos os moradores esperavam pela intervenção do poder público. A mudança será radical.

Como está no leito do Rio Barigui, 31 famílias terão de ser relocadas para outros bairros, como Vila Sandra e Moradias Augusta. As casas mais próximas ao rio serão derrubadas, provavelmente até julho de 2010, o que inclui a sede azul da associação. Os moradores da Rua Bom Menino vão ser transferidos para 24 sobrados, que estão sendo erguidos na frente do Bar do Baixinho, na Rua Júlia Domakoski.

Um dos itens mais festejados pela população é o asfalto, que vai passar a 30 metros de distância das águas. Com ele, vai-se a estradinha de chão que faz a Bom Menino parecer uma cidade pequena resistindo à fúria do Ecoville.

José Carlos Fernandes

Lugar incomum

Estudo da Cohab-CT mostra que a Vila Bom Menino tem perfil parecido ao das grandes favelas de Curitiba. A exceção é para o número de habitantes por domicílio, menor do que a média da cidade.

Poucos meninos

> A população da Vila Bom Menino é jovem-adulta, com concentração nas faixas de 18 a 30 anos e 31 a 40, somando nessas idades mais de 40% da ocupação. Crianças de até 11 anos são 25,7% dos moradores.

Muitas mulheres

> As "marias" são a maioria na chefia das casas. Estudo da Cohab mostra que 31,5% dos homens chefiam os lares contra 68,5% das mulheres.

Pobres mulheres

> Nas famílias chefiadas por mulheres o rendimento é menor do que a mé­­dia da vila – que é muito baixa. Não passa de dois salários mínimos nos melhores casos. O agravante é que 34,3% das mulheres que res­­pon­­dem pela casa se declararam sem renda. Outras 34% ganham um salário.

Escola em baixa

> Um total de 31,4% da população da Vila Bom Menino ainda vai à escola, mas a maioria desses estudantes é formada por crianças e adoles­­cen­­tes. Apenas 27 pessoas com mais de 18 anos ainda estudam. E quase 30% dos moradores têm até a 4ª série do ensino fundamental.

Sem creche

> Por ironia, falta local para os pequenos na Bom Menino. Uma das reclamações dos moradores é por creches – aparentemente desnecessárias numa região tão abastada. Estudo da Cohab mostra que do grupo de até 5 anos de idade, 66,6% das crianças não estão no sistema de educação infantil.

Renda na ladeira

> Ganha-se pouco na Bom Menino: 20,3% dos chefes de família recebem entre R$ 300 e R$ 400; e 14,7% faturam entre R$ 400 e R$ 500 mensais.

Casas pequeninas

> Ao contrário das zonas de ocupação próximas ao Centro, na Bom Menino a média é de três pessoas por dom­­i­­cí­­lio. Não é um mar de rosas: estudos apontaram 23 famílias com quatro moradores; 17 com 5 e 10 com 6. Há também algumas poucas famílias com algo entre 7 e 11 moradores.

Para morar

> A maioria dos moradores da vila – 92,3% – usa a casa como residência. Apenas 6 das 143 famílias desenvol­vem atividades comerciais no domicílio. Líderes dizem que muitos sonham com o conjugado de venda e habitação.

Poucos coletores

> Apenas 20 pessoas, de 17 famílias da Vila Bom Menino, vivem da coleta de recicláveis. Destas, 10 usam a casa para a separação e armazenamento de material.

Esgoto

> A coleta é adequada para 58% das famílias da vila: 62 usam a rede pública. 23 despejam dejetos a céu aberto; 12 têm fossa rudimentar e 35 usam vala.

Deficiência

> Semelhante a outras zonas de ocupação, a vila concentra número expressivo de portadores de deficiência. São 22 casos, sendo 10 de deficiência física e 5 de mental.

Fonte: Cohab-CT

  • Ivo, Onofre, Cleuza e Daniel, na ponte que leva à Vila Olaria
  • Veja que comunidade surgiu na década de 60, na beira do Rio Barigui

O comerciante Daniel Valente Trindade, 49 anos, lembra como se fosse hoje o dia em que a Vila Bom Menino foi batizada. Era a década de 80 – aquela que viu minguar os investimentos em habitação popular e proliferar o número de favelas em Curitiba e região metropolitana. Diante de tanta muvuca, mais do que depressa a turma da comunidade bateu na porta da prefeitura, pedindo regularização fundiária, antes que outros o fizessem. Dá-lhe papelada para assinar. Num dos ofícios se perguntava qual o nome da favela. Eis a questão.

A vila ficava no Mossunguê, uma região meio roça, meio cidade, identificada com sobrenomes europeus, feito Nico, Ganz, Ven­dramini e Kuzoski. Logo, era ali, mas não precisamente. O local tampouco fazia parte da Campina do Siqueira ou de algum dos loteamentos próximos, todos tão diferentes daquela aldeia com meia dúzia de ruas plantadas às margens do Rio Barigui. Para ajudar, a pequena ocupação sem nome não tinha surgido da leva das "invasões", arquitetadas por políticos nos anos 80, mas muito antes disso. Parecia mentira.

"Em verdade", a vila "sem no­­me" é filha da crise do café, nos anos 60, quando muitas famílias se viram expulsas do campo e desceram na Rodoviária Velha, o hoje Terminal Guadalupe, para fazer a capital. Era arriscado: havia enchentes, gente de pouca conversa, fazia frio de lascar, mas crescia a olhos vistos. Entre 1960 e 1970, Curitiba tinha passado de 300 mil para 600 mil habitantes.

Foi assim que a vila secreta do Mossunguê, mesmo sem alcançar fama, se integrou a uma linhagem de favelas curitibanas – as "históricas" –, da qual fazem parte o Parolin, Torres, "Inferninho" da Santa Quitéria e da hoje finada favela da Vila Guaíra.

Daniel incorpora o contador de histórias ao lembrar do passado: "Era um lugar de mata virgem..." E lembra que, na pressa em aviar a papelada para a prefeitura, al­­guém sugeriu que a chamassem "Bom Menino". E que na pressa ficou. "Não foi por causa do Natal, porque nem Natal a gente tinha", brin­­ca o morador, hoje dono de uma oficina de bicicletas, nas imediações da Rua Monsenhor Ivo Zan­­lorenzi, via que corta a favela ao meio.

A origem do nome natalino merece um palpite. A Bom Menino fica numa baixada, ao sabor das enchentes e, por azar, de algum carro que ande pelas avenidas a mais de 100 quilômetros por hora, o que não é de todo impossível. Antes da fileira de prédios mais elegantes da cidade serem erguidos por ali, o que se via era mato, alguns edifícios na Praça da Ucrâ­nia e a torre da Igreja de São José Trabalhador. Mata a charada: o pai adotivo de Jesus – cuja imagem habita o frontão da paróquia – carrega nos braços o Bom Menino.

"A gente é mesmo apegado com São José Trabalhador. O povo da­­qui é bom", ilustra a moradora Cleuza Guimarães, 50 anos, uma das líderes do clube de mães. Assim como outros moradores, ela se surpreende com a vitalidade do entrave que nasceu escondido na mata do Barigui e hoje é um corpo estranho numa das zonas vips da capital. Ali, é vizinho do prefeito Beto Richa, deputados, vereadores e gente graúda.

A Bom Menino, aliás, é pródiga em contradições. Apesar de estar num lugar privilegiado, não passa de 143 famílias, 800 pessoas, o que faz dela uma das menores dentre as 285 ocupações irregulares da capital. E não mete medo em ninguém. Muitas mulheres dali trabalham nos condomínios elegantes logo adiante. E não se fala em tráfico ou coisa que o valha, ao contrário do que acontece em muitas das zonas favelizadas da capital.

Uma das explicações para o anonimato é de caráter geográfico. Faz poucos anos que Mossunguê e Campina do Siqueira foram enredadas pelo mercado imobiliário. Por extensão, a vila não era vista nem lembrada, o que explica o atraso jurássico pela regularização. Outro fator é que a comunidade é meio invisível para quem passa de carro.

Tirando as 30 e poucas casas grudadas à Rua Monsenhor Ivo Zanlorenzi, o restante da vila está num vale protegido por árvores, onde só se chega descendo ribanceiras. É justo o maior encanto da Bom Menino. E causa espanto que os expedicionários urbanos não a tenham encontrado, transformando-a na favela cult da capital. Merecia. O que se vê 20 passos abaixo da Monsenhor impressiona.

A Bom Menino é uma espécie de oásis na selva de pedra urbana. Não lhe falta arvoredo, matagal, capivaras, gansos e galos à solta, pássaros e estradinha de chão. É como se habitasse o Túnel do Tempo. Com tantas benesses, a situação de penúria dos casebres quase passa despercebida.

"A gente é muito unido. As casas aqui ficam abertas", repetem os líderes comunitários Ivo Antô­­nio Rodrigues, 58 anos, e Onofre Pau­­lino, 53, para explicar porque cargas d’água a Bom Me­­nino passa ilesa pelos problemas que afligem outras ocupações, como a violência. Desde que se iniciou o processo de regularização fundiária, por exemplo, nenhum novo morador foi aceito – de comum acordo. E pouco se vê lixo pelas ruas, ainda que cerca de 10% dos moradores sejam catadores de recicláveis.

O tamanho e a antiguidade do local explicam tudo. Em 40 anos, os poucos bom-meninenses criaram vínculos fortes. E o rio é a maior prova de que eles se dão mui­­to bem, obrigado. Os 500 me­­tros de Barigui que cortam a vila são um verdadeiro parque linear, plantado pelos moradores. Há ár­­vo­­res frutíferas, pinheiros e petizada brincando em volta. Por um minuto, tem-se a ilusão de que as águas estão limpas e que dá para mergulhar.

Onofre garante que até pesca no river que Deus lhe deu. Não raro, também trabalha pesado em prol do rio, retirando pneus, sofás, colchões e fogões, muitas vezes atirados de um lugar bem perto – da ponte da Monsenhor Ivo Zanloren­zi. "Já vi parar Blazer e Ecosport para jogar tranqueira lá de cima", acusa Cleuza. "Mas é melhor do que antigamente, quando o rio era desova de morto", emenda Daniel. A conversa esquenta.

Na Vila Bom Menino é assim: todos falam ao mesmo tempo, às vezes mais alto do que o normal. Coisa de velhos conhecidos. Parte da movimentação social se dá no Bar do Baixinho, plantado onde acaba a Rua Júlia Domakoski e começa a ponte que leva à Vila Olaria. O bar é o que há: bilhar, puxadinho, a cara de Bob Marley pintada na parede, música sertaneja no último volume e galinhas ciscando ao pé das mesas.

O lugar por excelência da Bom Menino, contudo, é a Associação dos Moradores. Funciona num grande barracão de madeira azul turquesa, com mesas e cadeiras à vontade. Parece a casa de alguém, tantos sinais nas paredes. Numa delas, tem aqueles quadros dos tempos da vovó – mostrando Jesus no Horto. E troféus e mais troféus. "É do nosso time de futebol. E tem o feminino". A pergunta é se o futebol explica o que acontece de bom na Vila Bom Menino. "Ô se explica", responde um, dando início a uma nova reportagem. Quem descer a ladeira vai entender do que se trata.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]