
O comerciante Daniel Valente Trindade, 49 anos, lembra como se fosse hoje o dia em que a Vila Bom Menino foi batizada. Era a década de 80 aquela que viu minguar os investimentos em habitação popular e proliferar o número de favelas em Curitiba e região metropolitana. Diante de tanta muvuca, mais do que depressa a turma da comunidade bateu na porta da prefeitura, pedindo regularização fundiária, antes que outros o fizessem. Dá-lhe papelada para assinar. Num dos ofícios se perguntava qual o nome da favela. Eis a questão.
A vila ficava no Mossunguê, uma região meio roça, meio cidade, identificada com sobrenomes europeus, feito Nico, Ganz, Vendramini e Kuzoski. Logo, era ali, mas não precisamente. O local tampouco fazia parte da Campina do Siqueira ou de algum dos loteamentos próximos, todos tão diferentes daquela aldeia com meia dúzia de ruas plantadas às margens do Rio Barigui. Para ajudar, a pequena ocupação sem nome não tinha surgido da leva das "invasões", arquitetadas por políticos nos anos 80, mas muito antes disso. Parecia mentira.
"Em verdade", a vila "sem nome" é filha da crise do café, nos anos 60, quando muitas famílias se viram expulsas do campo e desceram na Rodoviária Velha, o hoje Terminal Guadalupe, para fazer a capital. Era arriscado: havia enchentes, gente de pouca conversa, fazia frio de lascar, mas crescia a olhos vistos. Entre 1960 e 1970, Curitiba tinha passado de 300 mil para 600 mil habitantes.
Foi assim que a vila secreta do Mossunguê, mesmo sem alcançar fama, se integrou a uma linhagem de favelas curitibanas as "históricas" , da qual fazem parte o Parolin, Torres, "Inferninho" da Santa Quitéria e da hoje finada favela da Vila Guaíra.
Daniel incorpora o contador de histórias ao lembrar do passado: "Era um lugar de mata virgem..." E lembra que, na pressa em aviar a papelada para a prefeitura, alguém sugeriu que a chamassem "Bom Menino". E que na pressa ficou. "Não foi por causa do Natal, porque nem Natal a gente tinha", brinca o morador, hoje dono de uma oficina de bicicletas, nas imediações da Rua Monsenhor Ivo Zanlorenzi, via que corta a favela ao meio.
A origem do nome natalino merece um palpite. A Bom Menino fica numa baixada, ao sabor das enchentes e, por azar, de algum carro que ande pelas avenidas a mais de 100 quilômetros por hora, o que não é de todo impossível. Antes da fileira de prédios mais elegantes da cidade serem erguidos por ali, o que se via era mato, alguns edifícios na Praça da Ucrânia e a torre da Igreja de São José Trabalhador. Mata a charada: o pai adotivo de Jesus cuja imagem habita o frontão da paróquia carrega nos braços o Bom Menino.
"A gente é mesmo apegado com São José Trabalhador. O povo daqui é bom", ilustra a moradora Cleuza Guimarães, 50 anos, uma das líderes do clube de mães. Assim como outros moradores, ela se surpreende com a vitalidade do entrave que nasceu escondido na mata do Barigui e hoje é um corpo estranho numa das zonas vips da capital. Ali, é vizinho do prefeito Beto Richa, deputados, vereadores e gente graúda.
A Bom Menino, aliás, é pródiga em contradições. Apesar de estar num lugar privilegiado, não passa de 143 famílias, 800 pessoas, o que faz dela uma das menores dentre as 285 ocupações irregulares da capital. E não mete medo em ninguém. Muitas mulheres dali trabalham nos condomínios elegantes logo adiante. E não se fala em tráfico ou coisa que o valha, ao contrário do que acontece em muitas das zonas favelizadas da capital.
Uma das explicações para o anonimato é de caráter geográfico. Faz poucos anos que Mossunguê e Campina do Siqueira foram enredadas pelo mercado imobiliário. Por extensão, a vila não era vista nem lembrada, o que explica o atraso jurássico pela regularização. Outro fator é que a comunidade é meio invisível para quem passa de carro.
Tirando as 30 e poucas casas grudadas à Rua Monsenhor Ivo Zanlorenzi, o restante da vila está num vale protegido por árvores, onde só se chega descendo ribanceiras. É justo o maior encanto da Bom Menino. E causa espanto que os expedicionários urbanos não a tenham encontrado, transformando-a na favela cult da capital. Merecia. O que se vê 20 passos abaixo da Monsenhor impressiona.
A Bom Menino é uma espécie de oásis na selva de pedra urbana. Não lhe falta arvoredo, matagal, capivaras, gansos e galos à solta, pássaros e estradinha de chão. É como se habitasse o Túnel do Tempo. Com tantas benesses, a situação de penúria dos casebres quase passa despercebida.
"A gente é muito unido. As casas aqui ficam abertas", repetem os líderes comunitários Ivo Antônio Rodrigues, 58 anos, e Onofre Paulino, 53, para explicar porque cargas dágua a Bom Menino passa ilesa pelos problemas que afligem outras ocupações, como a violência. Desde que se iniciou o processo de regularização fundiária, por exemplo, nenhum novo morador foi aceito de comum acordo. E pouco se vê lixo pelas ruas, ainda que cerca de 10% dos moradores sejam catadores de recicláveis.
O tamanho e a antiguidade do local explicam tudo. Em 40 anos, os poucos bom-meninenses criaram vínculos fortes. E o rio é a maior prova de que eles se dão muito bem, obrigado. Os 500 metros de Barigui que cortam a vila são um verdadeiro parque linear, plantado pelos moradores. Há árvores frutíferas, pinheiros e petizada brincando em volta. Por um minuto, tem-se a ilusão de que as águas estão limpas e que dá para mergulhar.
Onofre garante que até pesca no river que Deus lhe deu. Não raro, também trabalha pesado em prol do rio, retirando pneus, sofás, colchões e fogões, muitas vezes atirados de um lugar bem perto da ponte da Monsenhor Ivo Zanlorenzi. "Já vi parar Blazer e Ecosport para jogar tranqueira lá de cima", acusa Cleuza. "Mas é melhor do que antigamente, quando o rio era desova de morto", emenda Daniel. A conversa esquenta.
Na Vila Bom Menino é assim: todos falam ao mesmo tempo, às vezes mais alto do que o normal. Coisa de velhos conhecidos. Parte da movimentação social se dá no Bar do Baixinho, plantado onde acaba a Rua Júlia Domakoski e começa a ponte que leva à Vila Olaria. O bar é o que há: bilhar, puxadinho, a cara de Bob Marley pintada na parede, música sertaneja no último volume e galinhas ciscando ao pé das mesas.
O lugar por excelência da Bom Menino, contudo, é a Associação dos Moradores. Funciona num grande barracão de madeira azul turquesa, com mesas e cadeiras à vontade. Parece a casa de alguém, tantos sinais nas paredes. Numa delas, tem aqueles quadros dos tempos da vovó mostrando Jesus no Horto. E troféus e mais troféus. "É do nosso time de futebol. E tem o feminino". A pergunta é se o futebol explica o que acontece de bom na Vila Bom Menino. "Ô se explica", responde um, dando início a uma nova reportagem. Quem descer a ladeira vai entender do que se trata.





