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Como nova tentativa de estabelecer regras para a moderação de conteúdo por parte dos grandes provedores de redes sociais – a exemplo de Facebook, Instagram e Twitter –, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional, no domingo (19), um projeto de lei sobre o tema.
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A estratégia do governo de fazer modificações no Marco Civil da Internet pela via legislativa ocorre dias após os efeitos de uma Medida Provisória (MP) que tratava do assunto, assinada pelo presidente da República Jair Bolsonaro, terem sido suspensos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A MP também foi rejeitada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
De acordo com nota da Secretaria-Geral da Presidência da República enviada à Gazeta do Povo, o projeto de lei - cujo texto é o mesmo que constava na MP - busca criar balizas para que os provedores de redes sociais de amplo alcance, com mais de dez milhões de usuários no Brasil, realizem a moderação do conteúdo de modo que não implique em indevido cerceamento dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros.
“A medida vem ao encontro das regras para uso de internet no Brasil previstas no Marco Civil da Internet, especialmente quanto à observância dos princípios da liberdade de expressão, de comunicação e manifestação de pensamento, previstos na Constituição Federal, de forma a garantir que as relações entre usuários e provedores de redes sociais ocorram em um contexto marcado pela segurança jurídica e pelo respeito aos direitos fundamentais”, cita a nota.
O que diz o projeto de lei
A proposta tem como objeto central a moderação em redes sociais, isto é, as ações dos provedores quanto à exclusão, suspensão ou bloqueio de conteúdos publicados pelos usuários, bem como ações de cancelamento ou suspensão (total ou parcial) dos perfis dos usuários nas plataformas.
O texto não veda a remoção de conteúdos ou perfis, porém cria diretrizes que impedem a moderação sem que o usuário seja informado claramente sobre quais foram as regras infringidas ou possa apresentar defesa. Ao ter algum conteúdo removido, por exemplo, os usuários não apenas seriam informados da penalização de forma genérica – como ocorre atualmente –, mas teriam o direito de receber “informações claras, públicas e objetivas sobre quaisquer políticas, procedimentos, medidas e instrumentos utilizados para fins de eventual moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdo gerado pelo usuário, incluídos os critérios e os procedimentos utilizados para a decisão humana ou automatizada”.
O usuário passaria também a ter direito ao contraditório, à ampla defesa e a recurso em caso de exclusão ou bloqueio de qualquer conteúdo – a medida seria viabilizada a partir da criação de um canal de comunicação específico para tratar desse direito.
De acordo com a proposta, a exclusão, a suspensão ou o bloqueio de conteúdos podem ser automáticos exclusivamente nos casos previstos no texto. Alguns exemplos desses casos, referidos no texto como “justa causa”, são:
- Prática, apoio, promoção ou incitação de crimes contra a vida, pedofilia, terrorismo, tráfico ou quaisquer outras infrações penais sujeitas à ação penal pública incondicionada;
- prática, apoio, promoção ou incitação de atos de ameaça ou violência, inclusive por razões de discriminação ou preconceito de raça, cor, sexo, etnia, religião ou orientação sexual;
- apoio, recrutamento, promoção ou ajuda a organizações criminosas ou terroristas ou a seus atos;
- promoção, ensino, incentivo ou apologia à fabricação ou ao consumo, explícito ou implícito, de drogas ilícitas;
- prática, apoio, promoção ou incitação de atos de violência contra animais;
- cumprimento de determinação judicial.
Já a “justa causa” que permitiria a suspensão ou exclusão da conta dos usuários se aplicaria em casos como:
- Perfis que fizerem postagens relacionadas às temáticas descritas acima;
- contas criadas com o objetivo de assumir ou simular identidade de terceiros para enganar o público, ressalvados o direito ao uso de nome social e à pseudonímia e o explícito ânimo humorístico ou paródico;
- contas automatizadas (robôs);
- cumprimento de determinação judicial.
Ao buscar o estabelecimento de regras mais rígidas para a moderação de conteúdo, uma das preocupações do governo é com a prática de “filtros ideológicos” pelos provedores que rotule, ocasionalmente de forma subjetiva, determinados conteúdos como infratores das políticas de uso e, consequentemente, penalize os autores dos perfis com suspensão ou exclusão. Em um dos trechos, o texto veda às plataformas de redes sociais a adoção de critérios de moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdos que impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa.
Em caso de aprovação da proposta, a não observação dessas medidas por parte das Big Techs implicaria em sanções progressivas, que iniciam em advertências e multas, podendo chegar à suspensão das atividades das plataformas no Brasil.
A exposição de motivos do projeto de lei é assinada pelo secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Márcio Nunes de Oliveira; pelo secretário-executivo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, Sérgio Freitas de Almeida; e pelo ministro do Turismo, Gilson Machado Guimarães Neto.
Nela, os signatários argumentam que a previsão, no Marco Civil da Internet, de que o uso da internet no Brasil deve observar, entre outros, os princípios da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal, não tem sido suficiente para efetivar tais garantias no ambiente das redes sociais.
“A previsão abstrata desses direitos e garantias tem se mostrado insuficiente para evitar que um número crescente de brasileiros tenha suas contas ou conteúdos removidos de maneira unilateral, arbitrária e imotivada por provedores de redes sociais, que, ao assim agirem, violam frontalmente o ordenamento jurídico brasileiro”, dizem os membro do governo federal. “Em grande parte dos casos, os usuários afetados por decisões arbitrárias de moderação de conteúdo não encontram, junto ao provedor, recurso célere para impedir ou fazer cessar a violação de seus direitos”, prosseguem.
Tentativa anterior de regulamentação, via MP, foi alvo de ações de cinco partidos de oposição
A tentativa anterior de estabelecer diretrizes para a moderação das plataformas de redes sociais, por meio da Medida Provisória 1.068/2021, encontrou ampla resistência por parte de opositores do governo. O fato de a norma ter sido publicada no dia 6 de setembro, véspera das manifestações de apoiadores do governo em diferentes estados, inflamou ainda mais o debate sobre o tema.
Como resultado, cinco ações foram ajuizadas no STF por partidos de oposição ao governo – Partido Socialista Brasileiro (PSB), Solidariedade, Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Novo – que questionavam a MP 1.068/2021. O motivo apontado pelas siglas foi a “ausência de relevância e urgência que justifique a edição de medida provisória para promover alterações significativas na Lei do Marco Civil da Internet, em vigor há sete anos”.
Em 14 de setembro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), decidiu rejeitar a MP assinada pelo presidente Jair Bolsonaro que alteraria o Marco Civil da Internet. De acordo com o parlamentar, o texto trazia dispositivos que impactavam diretamente o processo eleitoral e a liberdade de expressão e que contrariavam a Constituição de 1988; por isso não poderiam ser tratados por medida provisória.
Na mesma data, a ministra Rosa Weber, do STF, suspendeu a validade da norma ao atender a um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, que argumentou que as empresas de tecnologia teriam prazo muito curto, até 6 de outubro, para se adaptar às mudanças.
Moderação de conteúdo e liberdade de expressão nas redes sociais
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e especialistas em novas tecnologias consultados pela reportagem destacam a importância do debate sobre a regulamentação da moderação de conteúdo por parte das Big Techs, porém discordam da forma como o governo tentou emplacar as normas.
Em nota pública, divulgada em 13 de setembro, relacionada à Medida Provisória 1.068, o CGI.br enfatizou a importância de discutir o tema, mas fez ressalvas quanto a mudanças especialmente no Marco Civil da Internet.
No comunicado, o órgão gestor declarou que apoia “o necessário debate em torno das regras e limites razoáveis e proporcionais que balizem a atuação de grandes provedores de aplicação, bem como a busca por maior transparência e clareza de princípios na eventualidade de moderação de conteúdos na Internet, tendo como objetivo primário o equilíbrio entre a liberdade de expressão dos usuários e a correta aplicação dos termos de uso de cada provedor, observadas as diretrizes legais que mitiguem potenciais danos individuais e coletivos devidos a conteúdos gerados por terceiros”.
O documento segue, entretanto, apontando que há riscos ao alterar as estruturas do Marco Civil da Internet, o que poderia levar a “categorizações exaustivas em detrimento do caráter principiológico, abrindo espaço para regulação excessiva por um lado, ou regramentos que rapidamente serão tornados obsoletos por outro”.
Anderson Godz, fundador da comunidade Gonew.Co e autor do livro Governança e Nova Economia, destaca que há pontos positivos no projeto de lei proposto pelo governo, que poderiam minimizar “efeitos colaterais” na relação entre as plataformas e os usuários.
“As redes sociais ficaram muito grandes para serem reguladas, e nós ficamos num trade-off em relação a essas tecnologias, porque elas crescem muito rapidamente num limbo de não haver regulação”, diz Godz. “E, para regular algo que é tão inovador, disruptivo e que tem um impacto tão grande, é preciso muita discussão. É por isso que a MP feita na calada da noite foi um tiro errado. O que temo agora é que esse assunto tenha sido queimado na largada”, pontua.
Para ele, o projeto de lei conta com quatro temas imprescindíveis na relação provedor e usuário de rede social: transparência de critérios de moderação; direito do usuário de ser informado do motivo de suspensões; oportunidade de defesa, e a minimização do prejuízo social decorrente da suspensão.
“Hoje não existem critérios claros, não existe um protocolo global de conduta não só dos usuários, como também das próprias redes. O que precisa ser construído a muitas mãos é uma espécie de código de conduta universal a respeito das redes tanto do ponto de vista dos usuários quanto do comportamento dessas redes”, diz.
Segundo Godz, as gigantes das redes sociais atualmente se constituem um “quinto poder” na sociedade – atrás dos três poderes tradicionais (Executivo, Legislativo e Judiciário) e de um "quarto", que seria a mídia –, e que a criação de uma regulamentação mais ampla sobre esse "quinto poder" é positiva tanto para a sociedade quanto para as próprias plataformas.
Achiles Batista Ferreira Junior, doutor em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), reforça a importância de se debater amplamente a regulamentação da moderação de conteúdo. Nesse processo, ele enfatiza a importância de se evitar a politização excessiva, a fim de gerar uma norma que evite abusos por parte dos usuários e das redes.
“A moderação de conteúdo é uma linha muito tênue em relação a algum tipo de controle que possa cercear o direito de expressar pensamentos”, declara. Ferreira Junior explica que há numerosos casos de conteúdos sobre determinadas visões de mundo que são banidos pelas redes sociais sem que os usuários saibam exatamente quais regras foram descumpridas.
“Então é preciso muito cuidado nesse momento. A palavra de ordem é ‘cuidado’, para não ferir nenhum tipo de manifestação, nem a liberdade de expressão, que é o pilar de um mundo democrático, e que deve ser respeitada”, ressalta.
Posicionamento redes sociais
À Gazeta do Povo, o Twitter encaminhou o seguinte posicionamento quanto ao projeto de lei do Executivo:
“A atividade de moderação de conteúdo é essencial para proteger a integridade da conversa pública e oferecer segurança às pessoas que usam o Twitter. A proposta do governo federal é um retrocesso e contraria princípios bem estabelecidos pelo Marco Civil da Internet. A faculdade das redes sociais para moderar conteúdos que violem a lei ou suas regras é essencial para preservar direitos fundamentais das pessoas que as utilizam, incluindo a própria liberdade de expressão e de informação. Além disso, a moderação de conteúdo, assim como a definição dos termos de serviço, é reconhecida globalmente como uma atividade intrínseca ao modelo de negócio das plataformas”.
A reportagem contatou o Facebook - que também gerencia o Instagram -, mas a empresa optou por não se posicionar no momento.