Nascida de um estupro, mulher ajuda a evitar abortos
Bianca tinha 7 anos quando uma colega de escola saiu-se com esta: você é adotada? Em casa, a mãe caiu no choro. Bianca não tocaria mais no assunto. Não até chegar aos 18. Ela precisava entender porque era a única negra numa família de gente loura e pele clara. Sempre foi desencanada com essa história de preconceito e tirava de letra a velha brincadeira do "sua irmã nasceu de dia e você nasceu à noite". Em busca de resposta objetiva, ouviu do pai a tese da adoção. Mas a verdade apareceria nove anos depois.
Um derrame cerebral que quase matou a mãe trouxe junto uma revelação. Por alguma razão, Bianca fez exame de sangue e a compatibilidade genética com a mãe derrubou a farsa. A avó contou a verdade. A mãe de Bianca fora estuprada em 1976, aos 23 anos de idade, e mesmo com a exceção aberta pelo Código Penal nesses casos, enfrentou a família do marido e não abortou.
A revelação fez Bianca entender a atitude de três anos antes frente ao noivo, com quem morava em Diadema (SP). O noivo lhe dera um cheque para abortar o filho. Ela o abandonou e se mudou para Curitiba. Hoje o filho tem 7 anos. Nesse meio tempo, acolheu em casa uma colega paulista que passou todo o período de gestação escondendo da família sua gravidez. A criança foi entregue para adoção.Bianca soube aproveitar a vida. Estudou inglês, morou nos Estados Unidos e hoje é assistente administrativa de uma empresa de comércio exterior. Experimentou várias religiões até se encontrar no espiritismo. Nunca disse à mãe que conhece o segredo dela. O nome nesta reportagem é fictício. A quem pergunta, responde: "Por que sou contra o aborto? Porque existo!" (MK)
Os brasileiros podem ser convocados em breve para decidir sobre seis assuntos polêmicos que têm esquentado as discussões no Congresso Nacional. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado já aprovou o plebiscito para esses temas e caberá à população dizer "sim" ou "não" à legalização do aborto, ao financiamento público de campanhas eleitorais, à união civil de homossexuais, ao fim do voto obrigatório, à redução da maioridade penal e à reeleição de prefeito, governador e presidente. A proposta ainda será votada no plenário do Senado. Se aprovada, irá para a Câmara dos Deputados, onde terá de passar por duas comissões e pelo plenário. Contudo, o debate em torno da legalização do aborto já ganhou as ruas.
Os curitibanos têm opinião formada bem antes do plebiscito, que não tem chance de sair ainda neste ano. Consulta feita na última semana pelo instituto Paraná Pesquisas mostra que 65,81% dos moradores da capital não querem a legalização do aborto no Brasil, contra 34,19% favoráveis. Dos contrários, 47,83% argumentam que ninguém tem o direito de tirar uma vida. Já entre os favoráveis, 12,51% ponderam que só concordam com a interrupção da gravidez em casos de estupro e outros 7,27%, em situações de risco de morte da gestante, exceções previstas no Código Penal. A pesquisa ouviu 468 pessoas maiores de 16 anos nos dias 12 e 13. A margem de erro é de 4,5%.
A polêmica é antiga. A Câmara analisa 24 projetos sobre o aborto. O mais antigo, de 1991, revoga o artigo 124 do Código Penal, que prevê detenção de um a três anos às mulheres que tentarem abortar sozinhas ou permitirem que outros o façam. Em 2005, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) reuniu 15 propostas num só projeto e propôs a descriminalização. Pelo texto, toda mulher poderia optar pelo aborto até a 12.ª semana de gestação, sem justificar o motivo. Foi arquivado por força do lobby antiabortista. A polêmica ressurge agora com a possibilidade de o Congresso aprovar o plebiscito que poderá decidir pela legalização.
Como é hoje
Aborto é crime no Brasil. Só não é punido com ressalva no artigo 128 do Código Penal de 1940 se praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro. Mais recentemente, a falta de legislação específica tem levado tribunais de Justiça de segunda instância a autorizar a interrupção da gestação nos casos de feto anencefálico, isto é, sem cérebro. Desde 2004 o tema é discutido no Supremo Tribunal Federal, na tentativa de estabelecer orientação única para todo o país. Até lá, a decisão depende da interpretação dos juízes e desembargadores de cada estado.
Os 189 deputados da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Contra o Aborto rejeitam o plebiscito por julgá-lo inconstitucional. O artigo 5.º da Constituição, argumentam, é cláusula pétrea, imutável. Se a lei maior do país garante "a inviolabilidade do direito à vida", isto basta. Na interpretação mais radical do presidente da Frente, Luiz Bassuma (PT-BA), a consulta popular não passa de uma busca por uma licença para matar. "O Estado tem de ser promotor da vida, não da morte", diz. Legalizar o aborto, teoriza o deputado, mergulharia o Brasil no atraso da era medieval. O governo não pode ver nesta prática uma solução para a gravidez indesejada.
Até a promulgação da Constituição, havia polêmica sobre o estágio inicial da vida. "Nos últimos dez anos, com os avanços da embriologia e da genética, não há mais dúvidas de que começa na fecundação", diz Bassuma. Tanto que, enfatiza ele, o Código Civil, revisado em 2002, estabelece a garantia da vida desde a concepção. A Frente pediu audiência urgente com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Quer saber se a declaração do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, é uma fala isolada ou uma posição do governo. Temporão se manifestou publicamente a favor do plebiscito por entender que a gravidez indesejada é uma questão de saúde pública.
Em 2006, o Sistema Único de Saúde fez 220 mil curetagens, procedimento realizado após aborto espontâneo ou clandestino. Cerca de 20% das pacientes eram adolescentes. Mas há quem desconfie de estatísticas e duvide de que a legalização reduza os casos clandestinos. "É um falso argumento", diz a pesquisadora em biologia celular Alice Teixeira Ferreira, pós-doutorada na Research Division of Cleveland Clinic Foundation (EUA). Para ela, não existem pesquisas confiáveis para dimensionar o problema, inclusive na Organização Mundial da Saúde. Defensores do aborto estariam criando números mirabolantes para impressionar a opinião pública.
Questão de saúde?
A opinião do ministro assemelha-se à da organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir, criada por religiosas na década de 1980, nos Estados Unidos, que hoje promove os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres nas Américas e em parte da Europa. Sem vínculo com a Igreja, a ONG apóia o uso de anticoncepcionais e a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Mas uma das integrantes do grupo no Brasil, a socióloga Dulcelina Vasconcelos Xavier, adverte: não se trata de defender o aborto como opção contraceptiva. Para ela, o debate não pode girar em torno da criminalização ou de discussões morais. É preciso largar o Código Penal e tratá-lo como caso de saúde pública.
Para a socióloga, os valores morais ditados pelo pensamento religioso comprometem o debate em torno do assunto porque encobrem as questões conjunturais que levam ao aborto. Uma das questões é a dificuldade de acesso ao planejamento familiar, mais disponível à classe média e menos para as pobres. Não só isso. Há uma hipocrisia em relação à paternidade. Muitos homens dão no pé quando elas anunciam a gravidez. A opção pela maternidade é solitária. Todo encargo recai sobre a mulher e o Estado não lhe garante políticas públicas para cuidar dos filhos. Faltam creches, por exemplo, e o serviço público de saúde está bem longe do ideal.
"Perda de tempo"
Já para o administrador com formação em organização de serviço de saúde Humberto Leal Vieira, o "plebiscito é uma bobagem". Ele preside a Associação Nacional Pró-Vida, entidade ecumênica que há 13 anos reúne pessoas contrárias ao aborto e a eutanásia. Vieira não vê motivos para a consulta popular. Assim como a Frente de Bassuma, vê na Constituição a garantia da inviolabilidade da vida. Concessão mesmo, só em casos de morte iminente da gestante. Ainda assim, apenas em situações que ele chama de "efeito não desejado", isto é, quando a mulher corre sérios riscos e se vê obrigada a tomar remédios que podem provocar o aborto.
Nem nos casos de estupro Vieira transige. "O criminoso (estuprador) tem a chance de ser julgado e talvez vá preso, mas a criança morre sem julgamento", compara. Ele combate a interrupção da gravidez também nas ocorrências de fetos anencefálicos. "Seria uma eutanásia pré-natal."
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