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Índice canequinha

Entre quatro paredes e um chão que balança

Vídeo | RPC TV
Vídeo (Foto: RPC TV)

O carpinteiro Soalcir Lodi, 55 anos, e o carrinheiro Djalma Rodrigues, 47, moram na mesma vila – a Pantanal, no Alto Boqueirão. Entre a casa de um e outro – na última rua da ocupação – anda-se três quilômetros e uma eternidade. Soalcir está a mais de 15 metros de um afluente do Iguaçu, sã e salvo das águas que costumam invadir a ocupação em dias de chuvarada. Não é o único conforto. Sua casa é modesta, mas tem banheiro e uma pequena área onde recebe os amigos para a roda de chimarrão.

Na casa de Djalma, o lazer vai ter de esperar. A vistosa mesa de sinuca ocupa o puxadinho de ponta a ponta, à espera de melhores dias. Enquanto persistirem os alagamentos, ele não vai poder abrir o boteco com que tanto sonha. Ao que diz, em coro com a nação brasileira, "tudo bem." Dos males o menor. A moradia dos Rodrigues até que é grande. São dois quartos, uma sala e a cozinha fora, com piso de terra. Tudo indica que é um lar – tem fogão, sofá e três televisores. Seria quase perfeito não fossem as fossas que transbordaram. Djalma, a mulher Maria Aparecida, 45, mais quatro filhos e um neto estão sem banheiro. "Preciso passar uns canos", avisa o proprietário. "Aqui é tudo na base da canequinha", explica Maria.

Fosse feito o "índice canequinha", as estatísticas sobre qualidade de habitação no país afundariam nos banhadões como os da Vila Pantanal. A realidade desmente os gráficos do IBGE, confirmando o direito à moradia como um problema urbano tão ou mais sério do que desemprego ou violência, para citar dois temas que monopolizam a mídia e as conversas de muro – claro, onde elas ainda existem. Curiosamente, para entender por que as fossas se rebelam com tanta freqüência, basta fazer coisas simples, como percorrer as ruas que separam, dentro de uma única favela, gente como Soalcir e Djalma. É no meio do caminho que se descobre com os olhos o que as pesquisas não conseguem traduzir.

Aos fatos. É de consenso que mesmo com 254 ocupações irregulares – abrigo de mais de 200 mil pessoas – fora as quase 27 mil que moram em loteamentos clandestinos – a situação de Curitiba não é das piores. Estudo recente do Observatório das Metrópoles, centro de pesquisa ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, apontou Curitiba como a capital com o segundo menor Índice de Carência Habitacional (ICH) do país – perdendo para Vitória e empatando com Belo Horizonte. O otimismo resiste mesmo aos olhos esbugalhados diante da soma nessa conta das demais cidades da região metropolitana – 3 milhões de habitantes e 500 mil sem-teto, divididos em espantosas 804 ocupações irregulares, engrossando o maior exército anônimo da História, o dos sem-teto.

Em miúdos

O bom desempenho se deve à proximidade das vilas com creches, escolas e unidades de saúde, além da coleta de lixo, serviço que costuma fazer Curitiba e região darem de lavada nos levantamentos que medem o desempenho das cidades. A cobertura de coleta é de 99% nos quase 800 mil domicílios da RMC. Há também oito mil famílias acompanhadas pela Cohab, 19 mil em potencial, e investimentos públicos na casa dos R$ 200 milhões, como informa o presidente da instituição, Mounir Chaowiche.

Mas não há quem possa com o choque de realidade causado quando se entra nas casas, de onde não se vê muita coisa além de tábuas em desalinho, gente espremida em pequenos cômodos e soluções de habitação que mereciam constar no manual de sobrevivência do desabrigado. As paredes são cobertas com malhas de pano, para proteger do vento que passa pelas frestas. Documentos são guardados em sacos plásticos – um dispositivo de segurança contra enchente. O resto vai na enxurrada. Em dia de chuva, aliás, a regra é mandar as crianças para debaixo da mesa, caso a casa caia estarão protegidos. "Já desisti de abrir guarda-chuva dentro de casa. A hora em que tudo desaba, não adianta nada", diz Terezinha Élia Costa, 48 anos, moradora da ocupação Vitória Pedro Machado, no Caiuá. No mais, é deixar a canequinha à mão e se acostumar com o regime das fossas – até que elas se revoltem e façam entrar pelo nariz o drama do planeta das favelas, estejam elas no Parolin ou em Changoing, na China.

Marco Aurélio Becker, 49 anos, gerente de Regularização Fundiária da Cohab, festeja bodas de prata no ramo da habitação. Ele já viu o bastante para deduzir que 20%, em média, de qualquer favela, têm problemas gravíssimos de "habitabilidade". Em Curitiba, de acordo com o Plano de Regularização Fundiária da Cohab-CT, ainda inédito, o sinal de pisca tem de estar sempre ligado: 52,7% das casas são de madeira reaproveitada, 33,3% têm torneiras clandestinas, 40,4% apenas conta com luz regularizada e 72,3% não dispõe de rede de esgoto.

Se a favela for jovem, a proporção é maior. "Quanto mais recente a ocupação, mais tem esgoto empossado debaixo da casa e gatos de luz", comenta o técnico sobre a pátria dos rabichos. A Pantanal, que tem quase 20 anos, não cumpriu o destino. "Das 700 famílias daqui, acho que 400 vivem no sofrimento", calcula o pensionista Gentil da Cruz Camargo, 48 anos.

Samba quadrado

Como as pesquisas trabalham por amostragem e são muito vagas, nem sempre essa disparidade é apontada, confirmando uma história que já deu samba de Bezerra da Silva: "A favela é um problema social" – e sua indigência espirra nos índices de saúde e de violência, ainda que ninguém tenha passado a régua no assunto. Uma pena. O próprio Marco Aurélio lembra de ter visto um dado em que se afirmava que 70% da miserável ocupação Terra Santa, no Tatuquara, tinha ligação de esgoto. Mas esgoto não tem ali. "O povo faz confusão. É um índice complicado, que esbarra na falta de informação sobre como funciona o sistema. Curitiba tem no máximo 60% da área de esgoto coberta. É um dos menores índices em capitais do país", constata Becker, tirando da cartola o primeiro de uma série de indícios de que o país ainda deve para si mesmo um retrato cru das suas favelas.

Enquanto isso, resta se resignar diante de informações no mínimo curiosas: faltaria banheiro em apenas em 1,2% dos domicílios da região metropolitana – 1,8 mil em Curitiba e 9,7 mil nas demais cidades. Mas não é preciso bater perna para encontrar essas raridades: a privada é que é um problema social.

Fosse pelos levantamentos como o do déficit sanitário, Curitiba e região estariam a dois passos do paraíso. O cruzamento de dados do IBGE diz que 81,9 mil casas da RMC tem estrutura deficiente – o que daria 30% do conjunto das ocupações. É improvável, mesmo diante do argumento de que a tendência das favelas é melhorar, não piorar. Segundo a Cohab-CT, mais da metade das áreas ocupadas estão urbanizadas. Somando às parcialmente urbanizadas, apenas 84 ocupações estariam em situação de penúria, mas o esforço do poder público sucumbe às regras informais que rondam o nada maravilhoso mundo da favelização. Esse mundo não tem nada a ver com na cidade que bateu o recorde de construção civil em 2006, com 1,3 milhões de metros quadrados de área edificada, de acordo com dados do Sindicato da Construção Civil.

Por exemplo – até 70% dos moradores iniciais de uma ocupação se alteram com o tempo, azedando todo e qualquer senso de grupo que havia entre os iniciantes. A migração intrafavelas é outro fenômeno não-estudado, fazendo com que se tornem grupos que possuem em comum apenas a pobreza e a espera por um documento de posse. Sem falar na instabilidade. Como os moradores têm medo de despejo, investem na casa apenas para o gasto, colocando a perigo a família. "Enquanto não vem a regularização a tendência é não investir nas melhoria das casas", comenta Hilma de Lourdes Santos, 45 anos, coordenadora do Movimento Nacional de Libertação da Moradia (MNLM).

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