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Nos últimos dois anos, os temas de costumes tiveram pouco espaço no Congresso, em grande parte porque o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não os via como prioritários. A deputada Bia Kicis (PSL-DF), nova presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, quer ajudar o novo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), a mudar isso.
A CCJ é a comissão permanente mais importante da Câmara, porque serve como um filtro jurídico das propostas que chegam ao presidente da Casa. E, com a mudança de comando da CCJ, esse filtro deixará de barrar as chamadas “pautas de costumes”, garante Bia em entrevista à Gazeta do Povo.
“Todo mundo vai ter direito a ter os seus projetos pautados, mas certamente os projetos conservadores, das pautas de costumes, que ficavam travados antes, não ficarão mais. Eles vão andar”, afirma. Entre as pautas de costumes que ganharão um olhar mais atento a partir de agora, ela destaca assuntos como o homeschooling, a legítima defesa e a liberdade de expressão.
A deputada é uma das investigadas no chamado inquérito dos atos antidemocráticos do Supremo Tribunal Federal (STF). Sua indicação, segundo diversos veículos jornalísticos, teria sido mal recebida pelos ministros do Supremo. Mas Bia garante que esses fatos não criarão indisposição no diálogo necessário entre STF e CCJ.
Por outro lado, a deputada aponta que há perigo na atual tendência de ativismo judicial do Poder Judiciário. Na CCJ, ela quer abrir espaço para projetos que coíbam esse ativismo. O objetivo disso, segundo Bia, é resgatar a autoridade do Parlamento.
“Aqui não vai nenhum ataque ao Supremo. É muito importante deixar isso bem claro. Aqui é o resgate da autoridade do Parlamento. O Parlamento é a casa do povo. Se nós não resgatarmos a autoridade do Parlamento, nós estamos retirando o poder do povo, que é o titular de todo poder no final das contas. O ativismo judicial se tornou uma grande ameaça à democracia. Projetos que visem a limitar o ativismo judicial serão apreciados”, afirma.
Confira a entrevista na íntegra.
Todos serão ouvidos, mas pautas conservadoras também ganharão espaço na CCJ
Bia Kicis: “É claro que, na presidência da CCJ, eu tenho que ter uma conduta mais imparcial, mais inclusiva, democrática, de ouvir a todos e acolher sugestões e projetos de todos os partidos. Não tenho como dizer: ‘A partir de agora, só pauta conservadora’. Não, não é isso, e nem poderia ser. Até porque uma conduta como essa faria com que essas pautas não andassem.
O que eu quero? Eu quero que a CCJ seja eficiente, tenha uma excelente produtividade. Eu vou pautar, também, projetos da esquerda, do PT, do PSOL, do PCdoB… Todo mundo vai ter direito a ter os seus projetos pautados, mas certamente os projetos conservadores, das pautas de costumes, que ficavam travados antes, não ficarão mais. Eles vão andar.
E como nós temos a questão da proporcionalidade, e o PSL tem muitos parlamentares que são conservadores e apoiam essas pautas – é um partido grande, que tem muitos parlamentares na comissão –, é claro que essa pauta vai estar com bastante apoio lá dentro.
A gente tem não só a questão de aprovar leis, mas de não aprovar leis que vão em sentido contrário. Tem projetos que querem liberação de drogas, liberação do aborto, ampliar as hipóteses de descriminalização do aborto… Eu posso não dar preferência a esses projetos na hora de fazer a pauta. A gente tem que saber escolher, ver junto com os partidos quais são aqueles que eles querem colocar, mas você pode evitar colocar projetos muito problemáticos.”
Homeschooling ganhará atenção da CCJ
Bia Kicis: “O homeschooling é crime? Não é, mas é tratado como tal por promotores, juízes… A gente vê famílias sofrendo perseguição porque fazem ensino domiciliar com os seus filhos. E são pais que são muito mais dedicados aos filhos do que outros que não fizeram essa opção, porque você é obrigado a passar horas e horas por dia ensinando seu filho. É uma dedicação imensa. Eles não podem ser tratados como pais que abandonam os filhos.
Nós temos um projeto que altera o Código Penal para deixar muito claro que pais que fazem o ensino domiciliar não incorrem no tipo penal de abandono de menor. Esse projeto foi apensado ao projeto da regulamentação do homeschooling. A gente já solicitou desapensamento, para que a gente possa rapidamente votar essa alteração do Código Penal.”
Legítima defesa também poderá ser pautada na CCJ
Bia Kicis: “Nós queremos coibir um pouco essa ‘bandidolatria’ que existe hoje no Brasil, em que bandidos podem andar fortemente armados e o cidadão de bem não pode ter uma arma para se proteger. A gente tem visto, até agora, movimentos de ministros do STF querendo alterar a legislação que já permite que, para posse, para você ter uma arma em casa, você não precise demonstrar necessidade. Já tem ministro do Supremo querendo impor isso daí. Isso é um ativismo, e outra coisa que a gente pretende é limitar esse ativismo judicial.
A questão do armamento, em algum momento a gente vai ter que olhar para isso. Mas a gente ainda precisa fazer um diálogo para mostrar para muitos parlamentares que têm uma visão, a meu ver, equivocada de que é o Estado que tem que fazer a segurança… Sim, o Estado tem que fazer a segurança, mas quando a gente fala de armar a parte da população que quiser usar armas – que não são todos que querem –, a gente não está falando de segurança pública, mas de legítima defesa. São dois conceitos completamente diferentes, até porque o Estado não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, protegendo todas as pessoas.”
Ideologia de gênero
Bia Kicis: “Existem projetos nesse sentido. A gente já conseguiu que esses termos [relacionados à ideologia de gênero] fossem retirados da base curricular. Agora nós temos que trabalhar junto à Comissão de Educação, com a professora Dorinha. Nós temos que trabalhar para que esses termos não constem em nenhum documento, essa questão de gênero. Agora, se vai haver algum avanço no sentido de proibir… É possível que isso aconteça. Vamos ver como é que conseguimos trabalhar isso junto à Comissão de Educação.”
Pandemia será prioridade, mas pautas de costumes terão espaço
Bia Kicis: “Eu não colocaria isso [as pautas de costumes] como prioridade agora porque eu acho que, no momento, nós temos muitas outras prioridades para ver na CCJ. E, claro, temos também questões de reforma, a questão da pandemia… Qualquer coisa que chegar de pandemia vai ter prioridade, mas nós não podemos deixar mais as pautas de costume no fundo da gaveta, não dá mais.
Temos que fazer o que der. Em tempos de Rodrigo Maia, nós tivemos aquela MP da carteirinha da UNE que desobrigava o estudante a ter que pagar pela carteira da UNE. E essa MP não foi para frente, porque o Rodrigo Maia não quis, por causa dos compromissos dele com a União Nacional dos Estudantes, com o PCdoB, com a esquerda. Isso é uma coisa que pode voltar, a carteirinha digital. Por que não? Isso é tão bom para os estudantes.
Tem muita coisa que a gente pode fazer, e a gente tem que ficar de olho, porque a gente sabe que tem muita gente querendo voltar com imposto sindical… A gente tem que ficar de olho para não deixar essas coisas acontecerem.”
PL das Fake news e liberdade de expressão
Bia Kicis: “O projeto [das fake news] nasceu de uma interpretação totalmente equivocada da realidade. Não existe fake news como conceito jurídico. Não existe crime de fake news, não existe nada disso. O que existe é uma vontade da parte de alguns partidos, de algumas autoridades, de calar os conservadores.
Mas as pessoas já estão vendo que não existe isso de calar só os conservadores. Quando você cala, quando você impõe a censura, ela vale para todos. Já estamos assistindo a isso. A gente vê isso no caso do deputado Daniel Silveira, que foi até preso, e depois a gente tem caso como o do Danilo Gentili, do Felipe Neto, que também recebeu a visita da Polícia Federal na sua casa. O que vale para um vale para todos. Pau que dá em Chico dá em Francisco. Tem que ser assim. Às vezes as pessoas acham que vão conseguir calar só uma parcela da sociedade, mas isso é só o começo. Depois isso vai se espalhar como vírus.
Nós temos que defender a liberdade de expressão. Temos que defender todas as liberdades. Isso é uma coisa que eu quero trabalhar na CCJ. A defesa das garantias constitucionais. Qualquer projeto que venha nesse sentido será muito bem-vindo.”
Limitar ativismo judicial para resgatar a autoridade do parlamento
Bia Kicis: “Nós temos hoje na CCJ, já pautado, um projeto do deputado João Campos que limita as decisões monocráticas em geral, não só do Supremo. Elas não podem interferir na condução de outros Poderes. Esse projeto já está pautado.
E aqui não vai nenhum ataque ao Supremo. É muito importante deixar isso bem claro. Aqui é o resgate da autoridade do Parlamento. O Parlamento é a casa do povo. Se nós não resgatarmos a autoridade do parlamento, nós estamos retirando o poder do povo, que é o titular de todo poder no final das contas. O ativismo judicial se tornou uma grande ameaça à democracia. Projetos que visem a limitar o ativismo judicial serão apreciados.”
CCJ e STF terão uma boa relação?
Bia Kicis: “No que depender de mim, sim, porque eu sou uma pessoa do diálogo. E o que eu estou buscando é resgatar a autoridade do Parlamento. Eu espero que o STF seja respeitoso com o parlamento, assim como nós somos com o STF. Então eu acho que dá para a gente manter, sim, um bom diálogo, cada um cumprindo seu mister constitucional. Eu acho que isso não é pedir muito. O que eu estou lutando é pela democracia.
Se a minha eleição para o CCJ servir como um reforço ao sistema de freios e contrapesos, eu fico muito feliz, porque estarei prestando um grande serviço ao país. E eu não vejo por que fazer oposição, porque eu não vou atacar. Eu não estou aqui para atacar pessoalmente nenhum ministro. Não é isso que eu quero fazer. Estou lutando pela democracia. Faço um convite a que todos estejam imbuídos desse mesmo espírito. Vamos trabalhar pelo Brasil, os três poderes unidos. Vamos trabalhar pelo Brasil, com independência e harmonia. Esse é o momento.
O presidente Bolsonaro é um político que respeita a democracia. Agora, ele entrou no STF pedindo que se faça respeitar a Constituição na questão de estado de sítio e estado de defesa, para que o Supremo diga o que está escrito na Constituição. Que declarem inconstitucionais esses decretos de toque de recolher, de lockdown, de prisão de pessoas que ‘ousam’ sair às ruas para trabalhar.”
PEC da segunda instância
Bia Kicis: “Precisa avançar. Eu faço parte dessa comissão especial da PEC 199, e ela precisa avançar. Já está com o relatório pronto, do deputado Fabio Trad, e a presidência do deputado Marcelo Ramos. Nós precisamos votar essa PEC, aprová-la, para que haja um mínimo de segurança jurídica neste país. Não é possível que uma pessoa condenada em duas instâncias continue solta por aí, perpetrando seus crimes. A sociedade espera isso. Essa é uma das pautas mais importantes para a sociedade.”
Voto impresso
Bia Kicis: “Vai avançar. Ele foi aprovado com uma ampla margem favorável na CCJ em 2019. Foram 33 votos a 5. O que nós temos que fazer agora é montar a comissão especial. Já conversei com o Presidente Arthur Lira. Vamos montar essa comissão especial, vamos tocar o voto impresso. Esse assunto é muito importante. Temos que dar transparência ao sistema eleitoral.”
A relação com Lira e suas visões sobre as pautas de costumes
Bia Kicis: “Eu conversei muito com ele durante a campanha, quando eu coloquei a minha intenção de ser presidente da CCJ e tudo mais. Ele sempre me apoiou. E o que ele diz é que ele não tem preconceito com nenhuma pauta. Ele diz que pode pautar qualquer assunto de qualquer partido, de qualquer ideologia, e vamos para o voto.
Eu acho isso uma postura muito democrática. Eu também vou agir dessa forma na CCJ. É assim que eu pretendo agir, também. Na pauta desta semana, já coloquei projeto do PT. Nós vamos pautar e vamos para o voto. Isso é a coisa mais democrática que existe. E o presidente Arthur Lira já deixou muito claro que esse é o estilo.”
Projeto da "maconha medicinal"
“Estamos trabalhando muito para não deixar avançar esse projeto. Porque existe muita desinformação. Muito parlamentar acha que é só a questão da "maconha medicinal", e fica solidário às famílias que têm filhos com crianças – nós temos em torno de 4 mil crianças no país que têm problema, que são refratárias ao tratamento usual.
Mas nós já estamos trabalhando junto à Anvisa para a liberação da medicação para essas famílias, de forma gratuita, pelo SUS, porque o medicamento é caro, o que existe hoje. Nós já estamos trabalhando. Porque você pode ter o canabidiol feito de forma sintética. Isso já está sendo feito, já está sendo produzido. Você não precisa liberar plantação de maconha. Até porque a Polícia Federal já se manifestou contrária, dizendo que ela não tem condições de fiscalizar. Quando a própria polícia diz que não tem condição de fiscalizar… Olha o tamanho desse país, de dimensão continental. É óbvio que não vai ter condição de fiscalizar mesmo. E aí nós vamos abrir a porta ao tráfico.
O que querem, na verdade, é tornar o Brasil um grande exportador de droga. Essa intenção que está por trás dessa pauta bonita de ajudar as famílias. Eu também quero ajudar essas famílias, tenho trabalhado por isso. Já tive reuniões no Ministério da Saúde, já falei com a Anvisa, e essa pauta já está caminhando. Não precisamos liberar plantio de maconha para ajudar essas famílias.”
O que será mais importante: barrar projetos contrários ou pautar projetos favoráveis às pautas conservadoras?
Bia Kicis: “São duas coisas muito importantes. Uma aparece, outra não. Quando a gente evita que uma lei que pode ser desastrosa para os conservadores siga em frente, ninguém nem fica sabendo. Mas eu tenho que saber dosar isso com o meu compromisso, que eu vou cumprir, de atender a todos os partidos. E a outra coisa é o que vai aparecer para o público: aquilo que a gente conseguir pautar. Evidentemente que eu pretendo fazer as duas coisas.”