Desde o início da pandemia, quando ficou clara a velocidade de contágio do coronavírus, o que as autoridades de saúde mais temiam era um número muito grande de doentes hospitalizados ao mesmo tempo, provocando falta de vagas especialmente em UTIs.
Neste caso os médicos, já extremamente sobrecarregados, não têm como fugir de uma responsabilidade extra: a de ter que escolher, entre os pacientes graves, quem terá prioridade de acesso aos recursos de tratamento intensivo e quais devem esperar a morte, ou um milagre, recebendo apenas cuidados paliativos em quartos e enfermarias, onde não há respiradores ou outros equipamentos para monitorar os sinais vitais.
A publicação nesta sexta-feira (15) pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) de uma lista de critérios que os médicos devem seguir para classificar pacientes graves, de forma a definir quem serão os primeiros na fila por vaga de UTI, escancara o drama que profissionais de saúde já estão vivendo em algumas das maiores cidades brasileiras.
No fim de abril o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) também divulgou um conjunto de normas para ajudar os médicos nessa difícil escolha. A recomendação do Cremepe n°05/2020 foi publicada depois que Recife viu a fila de espera por leito em unidade de terapia intensiva subir de 30 para 200 pacientes em poucas semanas. Como consequência, a taxa de mortalidade por Covid-19 também teve crescimento significativo em abril.
Apesar das proibições de eventos culturais e esportivos, do fechamento de escolas, universidades, shoppings e outros locais onde pudesse haver aglomeração de pessoas; e também de indústrias, comércio, empresas, clubes e órgãos públicos, a curva de contágio avançou de forma exponencial não só em Recife ou no Rio de Janeiro. São Paulo, Fortaleza, São Luís e Manaus também enfrentam situação crítica na saúde.
O grande gargalo é o tempo de internação dos pacientes com Covid-19 em estágio avançado. Ao contrário de outras doenças, quem chega ao nível de precisar de respirador costuma ficar na UTI por semanas, o que significa que os leitos demoram a ficar vagos. E com o crescente número de infectados com sintomas graves a demanda por leitos nas unidades de tratamento intensivo é sempre maior que a disponibilidade.
“A gente tem dito desde o início que o nosso sistema de saúde não está preparado para que todas as pessoas adoeçam ao mesmo tempo. Frisamos que 80% das pessoas que adquirirem [o vírus] vão passar bem e 20% vão precisar de cuidados intensivos. 20% é muita coisa. O Brasil tem 200 milhões de habitantes. Se toda a população adoece ao mesmo tempo nós estamos falando de 40 milhões de pessoas precisando de respirador. Nenhum país do mundo tem isso, então [se isso acontecer] muita gente vai morrer”, disse o cirurgião proctologista Maurício Matos, vice-presidente do Cremepe, em entrevista à Gazeta do Povo.
“Eu sei que as pessoas vão adoecer, mas é preciso que adoeçam lentamente. Talvez assim tenha alguma folga para tratar do casos graves. Como isso não está ocorrendo, a condição de atendimento dos serviços de saúde já estourou, nós vimos que era necessário priorizar as pessoas que teriam mais chance de sobreviver”, desabafa.
“Quando eu dou o respirador para o paciente ele vai ficar duas ou três semanas, então o respirador fica indisponível para outra pessoa. Se eu escolho alguém com menos chance de sobreviver, ele fica 4, 5, 6 dias e morre. Então aquele que eu não escolhi, que tinha maior chance, ele vai agravar enquanto aguarda o respirador e quando ele finalmente conseguir a vaga ele vai estar numa condição tão crítica que aquele respirador não vai mais salvá-lo. Esse é o dilema.”
Maurício Matos, proctologista, vice-pres Cremepe
Critérios para escolha de quem vai para a UTI
A exemplo do que já tinha sido feito na Europa os conselheiros de Pernambuco adotaram a regra do escore de prioridade, utilizada no mundo inteiro em protocolos de catástrofe. É a forma que os serviços de saúde tem para escolher quem atender primeiro quando muitos feridos chegam ao mesmo tempo após terremotos, atentados terroristas ou grandes acidentes, por exemplo. Se há alguém na iminência de morrer por falta de ar e outra pessoa sangrando, mas sem comprometimento de órgãos vitais, a que tem ferimentos aparentes espera e a outra é atendida primeiro.
Para definir as orientações aos médicos quanto à categorização de pacientes de Covid-19 o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco reuniu médicos de câmaras técnicas. Depois de muito debate o grupo chegou ao Escore Unificado para Priorização (EUP-UTI), que usa critérios clínicos para dar notas aos pacientes. A pontuação indica a posição na fila da UTI.
“A Itália optou pelo escore exclusivamente etário. Se você tem mais de oitenta anos você fica com a sua família e morre em casa, o que é extremamente cruel e injusto”, diz Maurício Matos, lembrando que não são os médicos que criam vagas e sim a Central de Regulação de Leitos do governo do estado. A classificação de prioridade feita pelos médicos apenas ajuda a organizar a fila da central de leitos.
“Sabemos que parece muito cruel, mas não é assim. Muitos pacientes estão tão graves, inclusive por outras doenças anteriores, que a chance de recuperação é mínima, desprezível, meramente estatística, e os leitos de UTI são valiosos. Esse escore não exclui nenhum paciente, mas hierarquiza aquele que tem mais chances de sobreviver.”
Maurício Matos, cirurgião proctologista, vice-pres do Cremepe
O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro também descartou a possibilidade de escolher os pacientes mais jovens para as vagas de UTI. Embora não oriente os médicos a atribuir notas às condições clínicas dos pacientes, a recomendação do Cremerj também fala em priorizar quem tem mais chances de sobreviver num respirador conforme o quadro geral de saúde no momento, independentemente da idade.
A recomendação do Cremerj n° 05/2020 diz que o critério para a triagem inicial deve ser a gravidade clínica durante a avaliação do paciente e lembra que "quanto maior for a gravidade clínica inicial; mais graves forem as comorbidades e mais reduzida for a funcionalidade do paciente, menores as chances de que ele se beneficie de medidas intensivas e de seus recursos." Os médicos não devem utilizar o critério da funcionalidade para avaliar pessoas portadoras de deficiência física ou intelectual.
O Conselho de Medicina também orienta que os hospitais tenham uma equipe de triagem formada por médicos com pelo menos cinco anos de experiência e que não estejam na assistência direta dos pacientes que forem avaliados.
Em carta aberta à população divulgada no começo da semana o Conselho já alertava que “o sucateamento crônico da saúde brasileira cobra um preço alto, neste momento de crise” e que "nem todos os leitos existentes estão em condições de uso, por falta de materiais, medicamentos e equipamentos, problemas de estrutura física e recursos humanos."
A carta, publicada no site do Cremerj diz ainda que “não é função do médico garantir vagas em UTI, mas das autoridades públicas (União, Estado e Municípios) ou privadas. É inaceitável que a decisão sobre vida e morte de seres humanos, neste momento de pandemia, seja jogada sobre os ombros dos médicos.”
À Gazeta do Povo o ginecologista Raphael Câmara, conselheiro do Cremerj, que ajudou na definição das diretrizes aos médicos fluminenses e é também representante do Rio de Janeiro no Conselho Federal de Medicina (CFM), fez um desabafo.
"Esperamos que essa recomendação nunca precise ser usada. A cada caso que for, um gestor terá sido incompetente em ter providenciado um leito de UTI para sua população jogando irresponsavelmente a função de decidir quem terá mais chance de viver para o médico."
Raphael Câmara, ginecologista, conselheiro do Cremerj
Triagem de pacientes de Covid-19 para internação em UTI e Justiça
A definição dos critérios foi recebida com alívio pelos médicos e até por profissionais do Direito, que trabalham com questões de Família e Bioética.
Para a juíza Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz, de Recife, nesse momento de pandemia, a saúde pública está totalmente judicializada, com ações pedindo para a Justiça definir desde o tipo de tratamento até a priorização de vagas em UTI. Ela diz que as regras estabelecidas pelos Conselhos Regionais de Medicina servem como balizador.
“Aqui em Pernambuco os juízes não estão mais concedendo liminares para internação em UTI, porque, se os médicos têm que seguir a recomendação do Cremepe, como é que eu mando A passar na frente de B? Eu estou fazendo isso com base em quê? Eu agora falo: você vai ter que ir para a central de leitos e se sujeitar aos critérios médicos. Para eu dizer que A vai passar na frente de B eu teria que analisar todos os paciente da fila e usar os critérios científicos”, diz a juíza.
Ana Cláudia Brandão é pós-doutora em Bioética e presidente da Comissão de Bioética da ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões, entidade que produz artigos, pareceres e representa grupos da sociedade em audiências públicas. Ela diz que a recomendação do Cremepe é fundamental para dar transparência também para as famílias dos pacientes graves.
“Essas normas conseguem concretizar o princípio da justiça, da bioética, da igualdade e o humanismo também, porque nessas horas a gente tem que se preocupar que essas mortes não são números, são vidas e nenhuma vida vale mais do que outra.”
Ana Claudia Brandão, pres. Comissão de Bioética da ADFAS
Situação das UTIs
O Ministério da Saúde não divulga o número total de leitos em unidades de terapia intensiva nem a atual taxa de ocupação. Através de nota informou que está realizando um Censo Hospitalar e preparando um painel de gestão que em breve mostrará o número real de leitos, como está a ocupação e qual a capacidade disponível para atendimento a pacientes de Covid-19 nos 26 estados e no Distrito Federal.
Segundo a nota desde o início da pandemia foram habilitados em todo Brasil 3.810 novos leitos de UTI, sendo 115 de UTI pediátrica, ao custo de R$ 550,5 milhões. O número já inclui os 430 leitos habilitados no Paraná na terça-feira (12).
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