Juro que conheci João Dunne. Morava no Bacacheri e decifrava a realidade lendo os pés dos passageiros de ônibus. Só viajava nos biarticulados, que lhe ofereciam uma variedade maior de enigmas. Odiava as motocicletas, onde os pés estão impedidos de se mover.

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Conheci-o em um biarticulado rumo ao Juvevê. O ônibus estava lotado. Indiferente, Dunne se ajoelhou diante de uma das portas. Apalpava sapatos, como se fossem bolas de cristal. Afagava seus saltos, encostava os ouvidos em suas solas em busca de sinais secretos, alisava-os – como se desejasse amansar um demônio.

Os passageiros riam, mas eu não. Abaixei-me. "O que você procura?", perguntei. Foi direto: "Procuro o espírito de Curitiba". Tentou achá-lo nos grandes shoppings, nos pontos turísticos, nas avenidas da moda. Nada encontrou. Concluiu, então, que só se conhece uma cidade quando nela rastejamos. "É como o papa, lavando os pés dos prisioneiros para entender a alma humana", comparou. Ao rés do chão, lia a cidade secreta.

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"A alma de Curitiba se esconde nesses pés", ele sussurrou, enquanto apalpava um mocassim sujo de lama. O cavalheiro que se perfilava sobre os sapatos o olhou com desprezo. "Perdoe-me, senhor", desculpou-se. "Mesmo que não saiba disso, o senhor é a alma da cidade." E beijou, piedosamente, a ponta de seu pé direito.

"As pessoas erram quando erguem os narizes para observar o mundo", me disse Dunne. Com as narinas empinadas, permanecemos prisioneiros da superfície das coisas. Não penetramos os subterrâneos, nem descerramos os motivos ocultos que movem uma cidade. "É preciso rastejar para entender a cidade verdadeira", acrescentou. Por instantes, senti na face de Dunne uma espécie apavorante de iluminação.

Dunne se declarava irlandês. Mudou-se para Curitiba muito jovem. Não gostava da cidade. "Passei a amá-la quando descobri seu chão. Você já observou quantos pés distintos a pisam?" Perguntei-lhe porque fazia suas pesquisas sempre nos ônibus. Espantou-se: "Ora, os ônibus se mexem. Rolam pela cidade. Eles a conhecem como ninguém".

Sempre que penso em Curitiba, cidade que também aprendi a amar, penso em João Dunne e seu estranho método de acesso ao coração das coisas. Nunca mais o vi. Já nem sei dizer se existiu, ou se eu o sonhei. Nada disso agora importa.

Sempre que pego um biarticulado, me recordo de Dunne. De sua barba sangrenta de viking, seus olhos marejados, seu nariz medonho. Pelo chão dos ônibus, farejava a cidade. Acessava-lhe as entranhas. Penso que Dunne é a alma de Curitiba. Aquele espírito que se esconde, enquanto os outros, inutilmente, se erguem e se exibem. Aquele elemento secreto, como um rim, ou um pulmão, que mesmo sem ser visto, conserva uma cidade viva.

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