Problemas
Em muitos casos, a fragilidade das provas leva à absolvição
Para a promotora Marcela Marinho Rodrigues, responsável pela Promotoria de Inquéritos Policiais de Crimes Dolosos contra a Vida, a baixa taxa de condenações se deve em parte à dificuldade de colher provas e à Lei do Silêncio que impera nas áreas mais violentas da cidade. "Muitas denúncias são oferecidas com base apenas em indícios frágeis de autoria, amparadas muitas vezes em denúncias anônimas, com a expectativa de que durante a instrução processal a testemunha possa se sentir mais segura e relatar o que realmente sabe. Mas isso acaba não ocorrendo, ocasionando, dessa forma, esse número elevado de absolvições", explica. De acordo com o promotor Marcelo Balzer Correia, que há dez anos trabalha na 1ª Vara do Júri de Curitiba, o baixo índice de condenados reflete diversos problemas do sistema jurídico, que vão desde a fase policial até o momento do julgamento. Segundo ele, até mesmo a falta de lugar adequado para a realização de mais júris atrapalha. Hoje, Curitiba tem apenas um plenário para julgamentos. As duas varas se revezam: uma faz julgamentos na primeira quinzena de cada mês, a outra na segunda. "Há anos pedimos a construção de novos plenários", diz ele. "Com os casos que temos prontos para julgar hoje, se fizéssemos júri todo dia, tem uma fila de um ano e meio de espera", afirma.
Base de dados
Acesse informações sobre os inquéritos de mil homicídios ocorridos entre 2010 e 2013 e que foram analisados pela Gazeta do Povo www.gazetadopovo.com.br/crimesemcastigo
Para cada 23 homicídios ocorridos em Curitiba nos últimos dez anos, a Justiça conseguiu condenar apenas uma pessoa. De acordo com as estatísticas da Secretaria de Estado da Segurança Pública, foram cometidos 5.806 homicídios na cidade desde 2004. O total de condenações, de acordo com pesquisa feita no Tribunal do Júri de Curitiba, era de 247 até o início de julho deste ano. O equivalente a 4,17% dos casos. O resultado apontado fica abaixo da média do país, que, de acordo com pesquisa da Associação Brasileira de Criminalística realizada em 2011, variava entre 5% e 8%.
O número de condenações em Curitiba ainda pode aumentar, principalmente em relação aos anos mais recentes, já que é normal que os casos demorem a ser julgados. No entanto, mesmo nos casos de crimes mais antigos, é possível perceber que a taxa de condenações é baixa. Dez anos depois, por exemplo, há 25 processos com sentenças finais referentes a homicídios registrados em 2003. Naquele ano, segundo o Mapa da Violência, houve 612 assassinatos em Curitiba. A taxa de condenações, após uma década, é de apenas 4%.
Flagrantes
Boa parte das sentenças de homicídios vem de casos em que houve flagrante ou em que a polícia conseguiu rapidamente descobrir quem é o criminoso. Os casos em que foi necessária uma investigação mais profunda para apurar a responsabilidade respondem por menos da metade do total de sentenças de condenação nos últimos dez anos em Curitiba.
De acordo com levantamento feito no Tribunal do Júri, das 247 condenações referentes a assassinatos cometidos entre 2004 e 2013, 140 são de investigações feitas pelas delegacias distritais. Pela divisão atual, essas delegacias ficam com o caso apenas quando já se sabe desde o início quem é o culpado pelo crime.
A Delegacia de Homicídios, por outro lado, fica com os inquéritos em que a autoria é desconhecida. E os inquéritos que saíram de lá relacionados a crimes da última década resultaram em 107 condenações. É o equivalente a 43,3% do total do período.
A estatística da Gazeta do Povo confirma a tese da Estratégia Nacional de Segurança Pública (Enasp). Segundo o documento de criação da instituição, "a quase totalidade dos crimes esclarecidos decorre de prisão em flagrante e da repercussão do caso nos meios de comunicação".
Exemplo
O caso do assassinato de Mauro Justino Ramos mostra que a chance de impunidade diminui quando as investigações andam rápido. O crime ocorreu em 10 de abril de 2010. A polícia instaurou o inquérito no mesmo dia, já que havia um preso em flagrante. Um mês depois, a investigação estava concluída e o Ministério Público pediu a abertura de processo penal. O réu foi condenado em 2012 a seis anos de prisão.
Insistência muda quadro de indiferença
A engenheira florestal Célia Maria Maia perdeu as contas de quantas vezes foi à Delegacia de Homicídios de Curitiba. E de quantas saiu de lá chorando: "Parecia que eu falava com paredes". A primeira ida foi em 4 de outubro de 2010, três dias após o filho Matheus Hoepers, de 17 anos, ter sido morto no bairro Uberaba. Célia não tinha ideia do que pudesse ter ocorrido e achou que na delegacia encontraria respostas. Para sua surpresa, os policiais nem sabiam do crime.
"O descaso chegou a me apavorar." As dúvidas sobre o motivo do crime fizeram com que ela começasse a ir semanalmente à delegacia. E a vontade de manter a dignidade do filho faria com que ela não desistisse diante da indiferença de muitos.
Aos poucos, as investigações foram avançando. A polícia coletou as imagens de uma câmera de segurança que mostravam uma Ecosport se aproximando de Matheus e de onde partiram os disparos. Em janeiro de 2011, a Justiça decretou a prisão de uma suspeita, uma mulher que teve um relacionamento anterior com o pai de Matheus e que negou o crime.
Mas chegou um momento em que as investigações emperraram. A suspeita foi solta em seguida e os materiais apreendidos com ela levaram meses para serem periciados. Também houve troca de pessoal e outro delegado assumiu o caso. Célia ficou desesperada. "Eu entendo que uma investigação não é como comprar pão numa padaria, que você chega no balcão, pede e vai embora. Mas ela também não pode ficar parada, tem que ter empenho", suplica a mãe.
Faixas
Após ouvir várias vezes que "faltavam braços" para a investigação, a mãe resolveu ir ela mesma em busca de pistas que pudessem ser levadas prontas à polícia. Colocou faixas pelas ruas com seus números de telefone e criou um blog pedindo para que quem soubesse de algo entrasse em contato. Ela também enviou as imagens da câmera de segurança para os Estados Unidos na tentativa de identificar a hplaca da Ecosport.
As faixas repercutiram na imprensa e Célia recebeu uma ligação inesperada. "No outro dia me ligaram da delegacia dizendo que o caso seria retomado. Eles nunca tinham me ligado." O computador e o celular apreendidos em janeiro com a suspeita foram periciados. Outra descoberta: um homem próximo à suspeita recebeu ligações de pessoas perto do local do crime. A investigação ganhava um norte.
Após oitivas de diversas testemunhas e um inquérito de mais de 800 páginas, as investigações foram concluídas com o pedido para que quatro pessoas fossem denunciadas à Justiça. O pedido foi acatado pelo Ministério Público. O Judiciário, no entanto, só aceitou a denúncia contra um deles. O caso seguiu para o Tribunal do Júri e agora está na fase de oitiva das testemunhas.
A proximidade do desfecho traz um certo consolo à Célia. "Já vai fazer três anos que não vejo meu filho, mas pelo menos eu sinto que como mãe fiz meu papel." Célia nunca mais precisou voltar à Delegacia. Seu destino agora é o Tribunal do Júri.
Colaboraram: Simon Benoit-Guyod, Maicon Joaquim Gomes, Larissa Fanes, Renata Silva Pinto, Bruna Martins, Vitoria Peluso, Victor Turezo, Vivane Menosso e Bruna Teixeira.
Design e ilustração: Osvalter Urbinati e Robson Vilalba