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 | Ilustração: Osvalter Urbinati e Robson Vilalba
| Foto: Ilustração: Osvalter Urbinati e Robson Vilalba
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Caminho para a morte

Em 54% dos casos analisados pela Gazeta, a vítima de homicídio usava ou vendia drogas. Nesse caso, a investigação costuma ser pior do que nos outros assassinatos.

Descaso

Família reclama de tratamento diferenciado

"Os policiais não trabalharam bem. Não fizeram praticamente nada. Para eles, uma pessoa que usa drogas não é um ser humano." O desabafo é de Marcos Redkva, irmão de Naiane, morta em janeiro de 2010. O corpo foi encontrado no Rio Atuba no dia 27, possivelmente três dias após a morte. O inquérito só foi aberto 15 meses depois, em abril de 2011. Ele afirma que foi tratado de maneira desrespeitosa quando foi prestar depoimento.

"Falta investimento, falta estrutura, mas também falta vontade. Quando há apelo popular, daí a polícia funciona", diz Neiva, também irmã de Naiane. Ela afirma que a primeira dificuldade foi um jogo de empurra-empurra entre as delegacias de Colombo e de Homicídios, por causa do local onde o corpo foi encontrado, na divisa daquela cidade com Curitiba. Segundo Neiva, a família levou uma série de informações que ajudariam a polícia a resolver o crime, mas até agora nenhum suspeito foi indiciado. Ela diz que a equipe da Homicídios é atenciosa, mas a família quer mais. "Queremos que o crime seja elucidado, que o culpado seja encontrado e que tenhamos acesso a todas as informações."

Maioria morre por arma de fogo

Das mil mortes analisadas pela Gazeta do Povo, 810 ocorreram por tiros de arma de fogo. O valor é bem próximo ao apontado em anos anteriores pelo levantamento Mapa da Violência, do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos. Segundo o estudo Mapa das Armas de Fogo nas Microrregiões Brasileiras, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), há uma relação forte entre armamento e violência: nas 20 microrregiões brasileiras onde há maior prevalência de armas de fogo, a taxa de homicídios é 7,4 vezes mais alta do que a das 20 localidades onde há menos armas. "Uma das medidas cruciais para garantir maior segurança no Brasil é o desarmamento da população", conclui o estudo.

Fev 2013: No Tatuquara, um dia depois do assassinato de A.J.B., a polícia ouviu o primeiro depoimento para esclarecer o caso. A testemunha diz que a vítima era usuária de drogas. Depois disso, a polícia diz não ter encontrado mais nenhuma testemunha e sugeriu o arquivamento do inquérito. O Ministério Público e o Judiciário acataram a sugestão.

Mai 2010: A polícia ouve a primeira e única testemunha que consta do inquérito da morte de J.G.H.. Usuário de drogas, ele havia sido assassinado um mês antes, no Uberaba. O inquérito foi aberto oficialmente pela polícia 16 meses depois do assassinato e continua tramitando sem que o culpado tenha sido encontrado.

Out 2010: A família quase não via J.A., usuário de drogas. Ele mal parava em casa. Também foi assim no dia em que ele foi assassinado, no Tatuquara. Os parentes pouco sabiam para informar a polícia, que ouviu oficialmente apenas uma testemunha. O caso foi arquivado em fevereiro de 2013, sem solução.

Jan 2010: O corpo de A.R. foi encontrado numa rua do Bairro Alto, com dois tiros na cabeça. Ele tinha 33 anos e era dependente químico. Apenas duas testemunhas vão à delegacia. No primeiro depoimento, 14 meses depois do crime, um primo diz que o motivo deve ser uma dívida de drogas. A polícia arquivou o caso dizendo que a solução dele é impossível, devido à "lei do silêncio".

81% dos casos analisados pela Gazeta do Povo são de homicídios cometidos com arma de fogo. As mortes por agressão e por armas brancas aparecem em seguida.

56% dos homicídios envolvem vítimas que eram usuárias ou traficantes de drogas. No total, 25,3% das vítimas tinham passagem pela polícia.

Alexander, Jean Carlos, Gustavo e Daniel não se conheceram, mas partilharam uma história em comum: tinham entre 21 e 30 anos quando foram assassinados por traficantes de drogas, de acordo com testemunhas. Conforme o levantamento feito pela Gazeta do Povo com mil mortes ocorridas em Curitiba entre 2010 e 2013, homens nessa faixa etária e com algum tipo de envolvimento com entorpecentes são as vítimas mais comuns de homicídios.

Nem sempre as drogas estão por trás da motivação dos crimes, mas a maioria das vítimas é usuária ou comercializa droga – essa situação foi verificada em 562 dos mil homicídios. No geral, esses inquéritos seguem o mesmo padrão que os demais, mas há algumas diferenças que fazem com que a taxa de resolução das mortes relacionadas a drogas seja inferior.

Quando a morte tem relação com entorpecentes, a polícia tem mais dificuldade para ouvir testemunhas, por causa do medo que elas têm de sofrer represálias. Em média, são apenas 3,5 depoimentos nesses casos, contra 4,1 quando não há drogas envolvidas. Outra barreira que dificulta a resolução do homicídio é o tempo decorrido entre o crime e a primeira vez que uma pessoa depõe – que pode ser de forma anônima. Nos casos em que há alguma relação com drogas, o primeiro depoimento ocorre, em média, 97 dias após o crime. Nos demais, o prazo é bem menor: 63 dias.

A utilização de provas técnicas, como balística, exame papiloscópico ou análise de celular, também é inferior nos casos com entorpecentes: só 13% dos 562 inquéritos. Nos inquéritos em que não há registro de drogas, as provas técnicas estão presentes em 20% dos casos.

Indiciamento

Por esses e outros motivos, dentre os homicídios relacionados a drogas, em apenas 9,2% a polícia indiciou algum suspeito. Considerando os demais casos, essa taxa sobe para 15%.

Os inquéritos das mortes dos quatro rapazes citados no início do texto continuam em andamento e em nenhum deles há indiciados, apesar de a polícia ter ouvido várias testemunhas que apontaram nomes suspeitos. Daniel devia para traficantes, e a mãe dele e um denunciante anônimo indicaram o nome do suposto assassino. Gustavo foi morto cerca de um mês após ter sofrido tentativa de homicídio. Em depoimentos, foram citados nome e sobrenome de criminosos envolvidos na morte. Jean Carlos era usuário de drogas, e por várias vezes seu pai pagou a dívida que tinha com traficantes. O pai de Alexander relatou que o filho usava e traficava, e citou o nome de três homens que teriam assassinado o filho.

Falta investigação

Segundo o pesquisador Luís Felipe Zilli do Nascimento, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, não é possível tratar da mesma maneira todos os crimes relacionados a drogas. "Debaixo desse grande guarda-chuva de tráfico de drogas ocorrem desde crimes passionais até guerras de gangues, por disputas comerciais de ponto de drogas. É preciso separar e aprofundar cada caso." Na avaliação dele, é preciso investigar mais a fundo esses casos, pois a resolução deles vai contribuir para diminuir o número não só dos homicídios como de outros crimes que atingem toda a cidade.

Estado precisa estar presente em áreas violentas, dizem policiais

A análise da geografia do crime é uma das estratégias utilizadas pelas autoridades policiais. O comandante-geral da Polícia Militar do Paraná, coronel Roberson Luiz Bondaruk, especialista no assunto, confirma que nas áreas com pouca iluminação, terrenos abandonados e sem conservação há mais chance de acontecerem crimes mais violentos. "Nas áreas menos cuidadas, seja pelos moradores, seja pelo poder público, o criminoso sabe que há menos risco de ele ser denunciado."

Na opinião de Bondaruk, as áreas mais carentes precisam ter mais acesso a todo tipo de serviço público. "A criminalidade crônica não é decorrente do policiamento menos ostensivo. Ela tem uma relação forte com o ambiente." Mas, diz ele, enquanto não há uma reestruturação urbana, a polícia precisa atuar de forma intensa nessas áreas mais pobres, e por isso são feitas batidas policiais com frequência.

Em março de 2012, o governo estadual criou as Unidades Paraná Seguro (UPS) com o objetivo de levar mais segurança e serviços públicos nas áreas com maior criminalidade. Hoje há dez unidades em Curitiba, próximas dos locais com maior número de ocorrências. "A intenção é estabelecer um sistema de sustentabilidade social. Primeiro levamos o policiamento, e depois todas as esferas do poder público precisam prover os serviços básicos, criando na sociedade um sentimento de pertencimento", explica.

Problema nacional

O delegado Rubens Re­­calcatti, que comandou a Delegacia de Homicídios nos últimos dois anos, afirma que é necessária uma ação mais efetiva do poder público para que ocorra a diminuição no número de assassinatos.

Segundo ele, este é um problema nacional. "O país não avança nas questões básicas, como educação, saúde. Na verdade está até regredindo."

Avaliação semelhante é feita pela promoto­­ra Marcela Marinho Ro­dri­­gues, da Promotoria de Inquéritos Policiais de Crimes Dolosos Contra a Vida. Segundo ela, a repressão é importante, mas sozinha não resolve o problema da criminalidade. Para ela, é fundamental que o Estado atue para estruturar uma rede social estável para dar suporte a todas as famílias.

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