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Promotor do Centro de Apoio das Promotorias da Criança e do Adolescente | Alexandre Mazzo/ Gazeta do Povo
Promotor do Centro de Apoio das Promotorias da Criança e do Adolescente| Foto: Alexandre Mazzo/ Gazeta do Povo

Há exatos 20 anos, o catarinense Murillo Digiácomo – então um jovem curtido no sol da praia de Joaquina, em Florianópolis – desembarcou na tradicional Guarapuava, Centro-Sul do Paraná, para assumir seu posto no Ministério Público do estado. Não encontrou nenhuma placa de boas-vindas. Pudera. Parecia piá demais para a tarefa. E havia a estranheza do sotaque cantado e festeiro.

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Ele não confirma, mas esse choque térmico, em todos os sentidos, acordou-o para uma questão que conhecia apenas dos bancos universitários – os direitos da infância. Em "terra estrangeira", evitou a frieza dos órgãos oficiais e se pôs a fazer o que entendia ser a obrigação de um promotor de Justiça: foi às escolas públicas e às periferias ter com as crianças e os adolescentes. Viu ali o que as pranchas de surfe não lhe permitiam en­­xer­­gar. Nunca mais pa­­rou de falar. E Murillo fala.

"Sou um convertido", brinca, sobre a causa que abraçou. Abraço de urso. A intensidade com que Digiácomo se dedica aos pequenos abandonados, vulneráveis e em conflito com a lei pode levar aos tremeliques os indiferentes. Ele é bom de briga. Mesmo na hora em que silencia, não se iludam – está produzindo um artigo, que vai postar na internet, perpetuando o mais tradicional dos motins: a arte de fazer barulho.

Na "rede de proteção", como ficou conhecida a horda dos que fizeram o Estatuto da Criança e do Adolescente um motivo para viver, a presença de Murillo é um alento. "Ele vem?", faz-se grita nos conselhos e ONGs, em momentos de tensão, como a que no início deste ano transformou em órgão de assistência social a festejada Secretaria de Estado da Criança e da Juventude, criada no governo Requião. Digiácomo, claro, não se furtou da palavra.

O promotor vive em Curitiba desde 1996. Trabalha no Centro de Apoio Operacional das Promo­­torias da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Paraná, onde recebeu a Gazeta do Povo. Sua agenda permanece cheia, como nos tempos de Guarapuava.

O senhor tem 42 anos e 20 de Ministério Público. Sofreu algum preconceito por ser jovem demais no ramo?

Comecei em Guarapuava, onde havia um pessoal macaco velho. [risos] No interior dizem: "O promotor mal saiu das fraldas e está querendo mandar no município". Logo que me formei passei no concurso para o Ministério Público. Foi muito rápido. Eu era jovem – 22 anos. Deixei crescer a barba – estava preta na época, não branca como agora [risos] – para parecer mais velho.

Não vou dizer que sofri preconceito, mas fui rotulado. No primeiro júri que fiz, quase saí no tapa com um advogado, porque ele veio com esse papo. E além de jovem, bem, eu não era paranaense.

Falando nisso, o sotaque catarinense está inabalável...[risos] Não perdi o sotaque de Florianópolis nem a vergonha de ser torcedor do Avaí. O time está indo para a segunda divisão agora. Vai levar na cabeça. Vi Avaí e Palmeiras. Que partida miserável, meu Deus. Uma partida do Milan, do Barcelona, parece uma pintura. O jogo do Avaí era só canelada para tudo quanto é lado.

Pegava praia onde?

Sou do Saco dos Limões e vivi uma infância muito feliz, mesmo não sendo rico. Não tive brinquedos – e fiquei na vontade de ganhar um Falcon, do Comandos em Ação. [risos] Subi em árvore e caí. Gostaria que todos os outros experimentassem uma vida igual. Frequentava a Joaquina e a Armação, no Pântano Sul. Era bem moreno do sol, mulato mesmo. Na temporada ia com a família, cachorro e passarinho para a Lagoa da Conceição. Hoje, vou a Daniela e na Galheta, mas não pratico nudismo. Lá é opcional. [risos]

É legítima sua fama de bom de briga?

Já fui mais briguento. A gente amadurece e percebe que o confronto puro e simples não resolve as questões. Fiquei mais ponderado, revi conceitos, mas não me arrependo de ter lutado. Tu erras e depois acabas aprendendo com o próprio erro. Fiz tudo com a convicção de estar certo. Me orgulho de todas as brigas.

Incluindo a briga com a secretária de estado Fernanda Richa?

Não diria que houve uma briga com ela, mas uma divergência de posicionamentos. Entendo que ocorreu um erro político e histórico ao transformar a Secretaria da Criança e da Juventude em Se­­cre­­taria da Família e do Desen­­volvimento Social. E esse erro está se fazendo sentir. Não sou só eu quem diz. Pergunte para qualquer pessoa que atua na área da infância e juventude no Paraná, para os próprios servidores, e vão ver o descontentamento. A visão assistencialista no atendimento da criança é coisa do Código de Menores [de 1927].

Em que pé está a divergência de posicionamento?

Não quero de modo algum dar a entender que fazemos oposição ao governo. Mas a atual gestão descumpriu a promessa de não extinguir a secretaria. Passou o rolo compressor em tudo. Não quis ouvir ninguém. É o que mais dói. O Conselho Estadual dos Direitos da Criança não foi respeitado. Queremos que o governo tenha a grandeza de reconhecer o erro. É o que torna altivo o homem público.

Quem falhou?

Não sei. Mas vou confessar para ti: me senti sozinho, desautorizado, pregando no deserto. Tinha de ocorrer uma mobilização e uma pressão junto aos deputados. Me pergunto quantos adolescentes vão ter de morrer para que haja essa conscientização. O silêncio das ruas me incomoda. Cadê o pessoal?

Houve um "marco" que lhe fez despertar para a causa da infância?

Boa pergunta. Houve a inspiração do doutor Olympio de Sá Sotto Maior [procurador], claro. Mas aconteceu por minha própria conta. No interior do estado, passei a dar palestras nas escolas e percebi que tinha de fazer algo pelos jovens. No início, agia de forma improvisada. Cometi erros. Fez parte do aprendizado.

Considero meu trabalho uma missão. Faço por paixão. Eu não precisaria estar aqui no Centro de Apoio. Sou titular de uma vara cível. Poderia estar na minha vara. Aqui não tem hora para acabar. Às 10, 11 horas da noite estou respondendo e-mail.

O senhor leva trabalho para casa...

Inventaram esse objeto terrível chamado laptop. Chego, sento no sofá e coloco no colo. Não tem mais horas. A demanda é muito grande. As pessoas me procuram...

Qual a razão de seu afeto?

A constatação de que temos de fazer a diferença. Nenhuma criança sai do ventre da mãe empunhando uma arma. Em algum momento da vida dela algo aconteceu. Nosso trabalho é evitar que isso se perpetue.

As pessoas da área de infância são apaixonadas pelo que fazem...

Como é que alguém pode não se apaixonar pela área da infância? Essa que é a minha dúvida. Vou até confessar: durante algum tempo fui a favor da redução da maioridade penal. Sou um convertido. [risos] Costumo dizer que a minha posição durou exatamente o mesmo tempo que a minha ignorância sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente [o Eca]. Vi que os problemas não decorrem da lei.

Nasce aí o Murillo com a agenda cheia?

Quando comecei, eu tinha uma outra visão do Ministério Público e do mundo. De repente, me vi em Rebouças [Sudeste do estado] brigando para criar o primeiro conselho tutelar da cidade, dando palestras. Percebi que tinha de sair mais do gabinete. Não podia ficar aplicando medida no papel e encaminhando ofício.

... e Murillo descobriu a internet...

Tempos atrás, no Ministério Públi­­co o equipamento padrão era uma máquina Hamilton torpedo ma­­nual. A gente fazia tudo com papel carbono. Fui, talvez, um dos primeiros a colocar na internet informações sobre infância e juventude. Sentia necessidade de escrever sobre coisas que não encontrava em lugar nenhum. Comecei a produzir artigos e a publicar.

Sente ansiedade?

Ansiedade e angústia. Acontece até uma coisa ruim para mim. Se algo dá errado na área da infância eu me sinto responsável. Fico com a sensação de que poderia ter feito algo para mudar isso. Vocês nem imaginam. [pausa]

Houve um dia particularmente triste para o senhor?

É triste todo dia em que a gente sabe da morte de uma criança. Ou quando morre um adolescente num educandário. Ou porque um deles é usuário de drogas ou vítima de violência. É triste também quando a atuação do Ministério Público não se deu de acordo com o que a gente orientou.

Como deve agir hoje um promotor da área da infância?

O que nos diferencia do Código de Menores é a possibilidade de atuar de forma preventiva. Se nos limitarmos a uma atuação repressiva não vamos mudar nada. No antigo código, a criança tinha apenas o direito de permanecer calada, como nos filmes americanos. Era mandada para instituições. Hoje eu não tenho que esperar acontecer para poder agir.

Se fosse fazer um pedido para o gênio da lâmpada, qual seria?

Que se cumpra o Estatuto da Criança e do Adolescente. Que se cumpra a Consti­tui­ção. Colocaríamos o Brasil entre os três melhores países do mundo. É difícil. Nosso descaso com a infância não é de hoje, vem da época do Descobrimento, quando traziam meninos nos navios para serem vítimas de exploração sexual pelos marinheiros. Me choca constatar que avançamos menos do que poderíamos em 21 anos do ECA.

Fomos atrás do seu "plano B". Nos disseram que o senhor canta, navega e cozinha...

[risos] Quando fui morar no interior tive de me virar. Fazia arroz, macarrão e fritava uns croquetes, até me queimar com óleo quente. Minha mãe começou a fazer marmitinhas congeladas e me mandar. Peguei gosto, é muito mais fácil do que cozinhar. Realmente, adoro o mar – velejo desde que tinha 10 anos de idade. E tenho o hobby de montar maquetes de aviões e navios. Quanto a cantar, só em karaokê. Minha voz serve quando muito para musiquinhas da Xuxa. Mas arrisco tudo – vou de Frank Sinatra a Katinguelê.

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