Pedro da Mata, guardião do Marco Zero de Londrina| Foto: Alexandre Mazzo

O Marco Zero de Londrina se tornou uma grife. O ponto exato onde em 1929 desembarcou a comitiva da Companhia de Terras do Norte do Paraná (CT­­NP), para dar início à colonização, atende agora pelo nome de Complexo Marco Zero. Com perdão ao trocadilho, é de fato complexo.

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Slideshow mostra os bastidores da entrevista

Assista ao vídeo com Pedro da Mata

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A área situada na Zona Leste da cidade e a cinco minutos do Centro vai abrigar, entre outros empreendimentos, o Shopping Boulevard Londrina, em construção, projetado para ser o maior do Norte paranaense, com 80 mil metros quadrados e 236 lojas.

A 100 metros do Boulevard se encontra o local que deu nome a todo esse in­­vestimento – são dois al­­queires de ve­­getação na­­ti­­va, tombados pelo município desde 1984, mas em mãos de particulares. Já foi propriedade de gi­­gantes co­­mo a Anderson Clay­­ton e a Ges­­sy Le­­ver. Ali es­­tá a pla­­ca de bron­­ze que indica a chegada dos pioneiros. E também ali, há exatas quatro décadas, vive o "guardião da floresta", Pedro Dias Barbosa, sua mulher, Nair, e o filho Isaías.

Há cinco anos, Pedro da Mata, como ficou conhecido, aguarda a regularização trabalhista de suas funções no Marco Zero, hoje propriedade do shopping. Desde esse dia, vive assombrado pela ideia de ter de deixar o local, do qual cuida dia e noite, recolhendo o lixo, atendendo escolares e evitando que se torne refúgio de dependentes químicos e mesmo de arruaceiros.

A hipótese o leva às lágrimas, à invocação divina, mas também à obediência. "Se as autoridades assim decidirem, eu saio", diz o homem convertido num misto de profeta e ambientalista, uma versão londrinense do mítico Velho do Rio. Em seu misto de lucidez e paixão, não consegue deixar, contudo, de lembrar tudo o que fez pelo Marco Zero. E de manifestar o medo de que se torne um bosque como tantos, pondo em perigo as perobas-rosas e os animais.

Confira trechos da entrevista dada à Gazeta do Povo e ao Jornal de Londrina.

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Quando Pedro Dias Barbosa virou o Pedro da Mata?

Um colega de trabalho me disse um dia: "Olhe seu Pedro, o senhor só vive no mato. Seria melhor que se chamasse Pedro da Mata." Por coincidência, na Mata dos Godoy tem um cidadão que chama João da Mata. E um juiz disse certa vez: "Quem toma conta da Mata dos Godoy é o João da Mata. E quem toma conta do Marco Zero de Londrina é o Pedro da Mata." Eu falei que concordava. Meu nome ficou até mais elegante.

Como o senhor veio parar em Londrina?

Nasci no dia 20 de dezembro de 1937, na pequena cidade de Américo de Campos, interior de São Paulo. Uma irmã minha, a Sebastiana, veio morar no Paraná. Quando eu tinha 17 anos, decidi visitá-la. Gostei de Londrina. Aqui mexi com gado, com fazenda e fui entregador.

E a cidade naquela época...

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Só tinha uma rua calçada com pedra, a Guaporé. E um prédio, o Hotel São Jorge. O circular era aquele ônibus pequeno. Quando chovia precisava acorrentar as rodas para não derrapar. Ficava lotado, subia na Vila Nova e subindo era tudo terra. Muitas vezes o motorista fazia a gente descer pra empurrar. Eu sou daquele tempo. Ah, aqui me casei... Tinha 19 anos.

Conte para a gente...

Até hoje a Nair é bonita. É de origem espanhola, um povo maravilhoso, mas muito ciumento. [risos] Foi uma rosa que Deus me deu. Casei na Igreja Central, quando ainda era uma capela. São 53 anos de casamento e eu nunca traí a minha mulher. Quando eu tinha uns 33 anos, meus filhos precisaram de um estudo melhor e vim para a cidade. Acabei aqui. Meu papel no Marco Zero começou em 14 de janeiro de 1971, quando o doutor Anderson Clayton me colocou para tomar conta desse lugar.

O que é o marco zero para Lon­­drina?

Foi aqui que pioneiros chegaram em 1929. Daqui saíram para abrir a picada para construir Londrina. Nesse pedacinho de chão começou a história da cidade. O doutor George Smith, representante daquela comitiva, sonhava transformar essa área num cartão de visitas. In­­felizmente, nossas autoridades ainda não acordaram para isso.

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O senhor tomou o Marco Zero como missão de vida. Mas a empresa que o contratava já não existe mais. Como fica a situação?

Boa pergunta. Venho lá das primeiras empresas, da Anderson Clayton, da Gessy Lever e da Coimbra. Que a Coimbra vendeu para o shopping já faz cinco anos. Quando acertou com os funcionários, não pediu para eu sair. E eu assumi um compromisso de cuidar dessa área. Pedro deu a vida pela mata.

Pedro da Mata vai se tornar o Pedro da Cidade?

O que posso responder? Se eu falasse que quero viver lá fora, seria um mentiroso. Isso aqui é um pedacinho de mim. Mas se eu disser que vou ficar a todo custo estarei sendo negligente. Aqui não é meu. Saio se mandarem.

Como é sua convivência com os dependentes químicos e outros que tentam se esconder no Marco Zero?

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Não tenho inimigos. Minha vida é mexer com viciados e ladrões. Não tenho medo. O alimento deles é o crack. Mas se estão com fome, mando a mulher fazer comida.

A ronda faço todo dia, toda hora. Quando me veem, levantam e pedem desculpa. Eu perdoo. Prego para eles. Eles me abraçam. Me chamam de pai e de tio. Digo que se amam o Pedro da Mata, saem.

Eles dizem "a gente não presta". E eu digo: "Você é importante, só que o caminho que escolheu só dá cadeia ou cemitério." Saiba que essa mão nunca tocou em ninguém. Esse corpo magrinho nunca apanhou de ninguém. Deus me colocou aqui e tem uma missão para mim.

Nunca chamou a polícia?

Nunca. Quem tem de ser criativo sou eu, o Pedro da Mata. A polícia aqui é Jesus.

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Quais são os maiores problemas do Marco Zero?

Precisa de cerca e de uma trilha para receber visita. Mas uma trilha estreita para não acabar com a mata. Vem escola, mas não podemos fazer passeio porque não tem as condições certas. A gente só recebe as pessoas aqui na pedra fundamental, mostrando onde a comitiva chegou em 1929.

Outra coisa: não deixar limpar o mato. O Pedro da Mata não aguentaria. No dia em que tirarem o mato se torna um bosque. E o que acontece com o bosque? Fizeram uma poda no Bosque Central e derrubaram uma árvore de 100 anos lá. Pra quê?

E o dia a dia do Pedro da Mata...

Tenho 73 anos e não me sinto um velho gagá. Estou lúcido e guardado pelo meu Deus. Tenho uma casinha cabocla e sinto orgulho dela. É da idade de Londrina. Fiquem atentos, pra não deixar derrubar, pois o homem destrói as lembranças.

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Me levanto às cinco horas. Gosto de mingau de aveia. Não me falta nada. Tenho porquinho, galinhas pra botar ovo caipira.

Aqui a gente tem o silêncio da natureza. Parece uma Amazônia. Ouço o pássaro cantar, a saracura comunicar dentro do nosso quintal. O cântico dela é tão lindo. E quando começa, pode aguardar que vai chover.

Qual a responsabilidade de ter a história da cidade no quintal de casa?

Digo que aqui não tem nada de bonito, não. Aqui tem é natureza. Eu convivo com as aranhas, só que elas não vão lá em casa. A gente se comunica. Uma aranha não mato, ela faz parte do meio ambiente. Tem cobras, mas também não vão lá em casa. Quando encontro uma, converso com ela, penduro o bicho na enxada.

Muito lixo?

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Se eu não fosse uma pessoa exigente, isso aqui tinha virado um lixão. O cidadão muitas vezes para o carro e joga um saco de lixo. Até saco pra lixo eu compro. Sabe por quê? Eu não estou aqui pra embelezar a minha casa, estou com compromisso de preservar. Todos sabem que nessa mata do Marco Zero tem um pé vermelho [chora]. Ele cuida com alma, sem cobrar nada.

Qual sua relação com a natureza?

No começo, minha maior tristeza era que o povo não tinha conhecimento. Se precisava de uma casca de árvore, ia lá e descascava uma lasca para fazer remédio. Eu chorava. Mas Deus me deu inteligência. Eu fazia um barro batido e passava na planta. Ela não morria. Ficou até hoje a cicatriz de barro vermelho. Não passei pela faculdade, mas passei por uma escola espiritual. Dei de fazer algo educativo. Subia na escada e pegava um galho e uma casca para quem pedia.

O senhor chama as árvores de amigas...

São amigas inseparáveis. Fazem parte da minha história há 40 anos. Elas me confortaram. Uma árvore não fala, mas ou­­ve. E ama aqueles que a amam. A vida é be­­la.

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Um dia de sá­­ba­­do eu estava varrendo a pracinha e uma menina de 17 anos veio e me disse: "Tio, tô triste. Vou me jogar do ponteão." Abracei com uma árvore e orei a Deus. Essa árvore é o infinito.

Temos árvore de 350 anos. Quando houve o tombamento, em 1984, fizeram uma pesquisa na peroba rosa: estava com 324 anos. Temos centenas de perobas rosas, amigas minhas. Tem a perobinha menininha, a mocinha e a senhora – a mãe peroba.

O senhor se sente uma dessas árvores...

Sim.

Alguma lembrança muito forte?

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Certa ocasião, um bando de papagaios selvagens veio visitar a mata. Um deles sentou na copa da peroba, que tem 40 metros de altura. Lá em cima tinha uma pipa e o papagaio enroscou na linha. Liguei para o Ibama. Liguei para a Polícia Flo­­res­­tal. Quan­­do o ga­­vião vinha pe­­gar o papagaio, o bando não deixava. Os bombeiros gastaram oito horas para resgatar o bicho. No pé da peroba tinha umas 150 pessoas. Foi bonito. A ave ficou 48 horas em observação. E depois 15 dias na cozinha lá de casa.

Qual sua sensação quando está fora do Marco Zero...

Eu sinto triste, filho [chora]. Quando entrei aqui abracei essa causa. Ganhei um vínculo com a natureza. Quando Deus achar que minha missão foi cumprida, se eu pudesse ser sepultado aqui dentro, filho, eu ficaria muito feliz.

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