Uma menina na noite
A luz vacilante não revela por inteiro o corpo miúdo afogado na escuridão da soleira da loja de colchões. Noite alta, a iluminação da rua mal alcança a menina que encobre o clarão do crack. O intruso causa surpresa, e suspeitas. Você faz programa? "Sim", diz em resmungo. Quanto é? "Dez reais, mais 10 do hotel." Aqui tem 10, posso sentar para conversar? A mão pega a nota, o olhar desconfiado, de soslaio, não diz nem que sim nem que não. Estou fazendo uma pesquisa. Ela suspende a cabeça, o olhar parece dizer "que saco, outra vez". É uma reportagem. Ela dá a indiferença como resposta. Só uma conversa, tudo bem?
Um crime repetido dia após dia mancha a reputação do trecho mais rico do litoral brasileiro. Quatro dos 27 estados do Brasil produzem metade da riqueza nacional, e seus portos escoam 40% de tudo o que se negocia com outros países. São Paulo possui o maior porto da América Latina, Rio Grande do Sul tem o segundo do país, Paraná tem o principal em exportação de grãos e Santa Catarina, o maior em contêineres. Os 1.870 quilômetros de costa desses estados reservam ainda praias badaladas e cultuados paraísos ecológicos. Orgulhoso de seus predicados, o Brasil parece ignorar que por trás de tanta beleza e fartura acontece um crime contra a infância.
Cidades portuárias vivem um paradoxo. O porto traz dinheiro, movimenta a economia e gera empregos. Ao revés, o fluxo de uma massiva população flutuante fomenta o comércio ilegal de sexo e drogas. Para lá convergem caminhoneiros de muitas estradas e marinheiros de todos os portos. Às sombras dessas tradicionais zonas de meretrício, num meio predominantemente masculino, se dá a exploração sexual de crianças e adolescentes. Longe da dureza da estiva, a mansidão das praias que atraem turistas aos milhares guarda igualmente segredos inconfessáveis. O turismo sexual com menores de idade grassa também por essas areias.
Durante três semanas, a reportagem da Gazeta do Povo percorreu 4 mil quilômetros pela costa Sul e Sudeste para revelar os locais de exploração sexual infanto juvenil. Em Rio Grande (RS), um barracão em ruínas foi improvisado como motel; em Paranaguá (PR), um trecho da rodovia que leva ao porto ficou conhecida como Rua 24 Horas devido ao incessante comércio de sexo barato; em Balneário Camboriú (SC), meninas de cidades vizinhas são induzidas à prostituição para alcançar o sonho de consumo nos shoppings de luxo; em Santos, corpos seminus estão à venda, expostos à luz do dia nas ruas do Centro Velho.
Prostituição histórica
Cada uma dessas localidades soma suas particularidades às causas gerais da exploração sexual infantil. Em comum, elas têm grande fluxo de turistas ou caminhoneiros. O porto de Santos, em particular, tem uma relação intrínseca e histórica com a prostituição. Seus 7,7 milhões de metros quadrados e 14 quilômetros de extensão recebem 10 navios e 13 mil caminhões por dia. Descontando domingos e feriados, são 3 mil embarcações e uma população flutuante de 3,5 milhões de caminhoneiros por ano, oito vezes mais do que os habitantes da cidade.
O mercado do sexo proibido desponta em Santos como um legado da prostituição e da violência doméstica. O assistente social Maurício Carlos Rebouças classifica a transmissão geracional da prostituição de adolescentes, exercida pelas mães, como processo natural e inevitável. Um quadro desalentador, ainda que circunscrito a famílias residentes na área portuária. Maurício baseou sua pesquisa de mestrado no Espaço Meninas, unidade que a prefeitura mantinha para atender essas vítimas. Quando aliado à violência dentro e fora da família, o fenômeno pode determinar a entrada na exploração sexual comercial.
Santos possui, ainda, outras particularidades que favorecem a prostituição de menores de idade. A população de 500 mil habitantes é acrescida em até duas vezes na alta temporada, período que vai de dezembro a março, no carnaval e nas férias de julho. Fica visível o aumento de meninas, mulheres e travestis nas ruas, observa a coordenadora da Comissão Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto juvenil (CEVIS), a advogada Verônica Teresi. As características geográficas da Baixada Santista exigem um trabalho conjunto dos municípios, o que nem sempre é possível, reconhece Verônica. Falta diálogo.
Rede em movimento
As cidades da Baixada Santista têm vias de acesso em comum e a proximidade dificulta identificar onde termina uma e começa outra, favorecendo as redes de exploração que estabelecem pontos transitórios conforme a repressão policial, o movimento turístico, o tráfico de drogas, o fluxo de trabalhadores no porto. Essa flutuação proporciona mais lucros, menos riscos de repressão policial e de responsabilização judicial, pontua Maurício Rebouças, que foi coordenador do Programa Sentinela em Santos. A cidade enfrenta ainda um novo fenômeno, que oculta o problema. Os negócios do sexo estão saindo das ruas e deixando de ser tão públicos.
"Por ser uma cidade portuária e turística, há outro mercado da exploração sexual que a gente sabe que existe, mas não consegue acessar. A cidade tem muitas universidades, recebe muitos eventos", diz a coordenadora de Proteção Social de Média Complexidade da Secretaria Municipal de Assistência Social, Rosana Caruso. Ela conta que, para atender a essas demandas, a rede de exploração tem se sofisticado e se tornou mais rápida do que a rede de proteção. Celulares e internet permitem aos exploradores tocar os negócios sem os riscos da exposição. Também por isso mas não só isso os números já não retratam a realidade das ruas.
Santos, por exemplo, atendia 150 casos simultâneos de meninas e meninos prostituídos há 15 anos; hoje são 22. A redução se explica menos pela eficiência e mais pelas mudanças nos serviços públicos. O trabalho sobre violência sexual feito pelo extinto Programa Sentinela acabou se perdendo nas generalizações daquele que o incorporou, o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas). "Antes se fazia um trabalho de busca ativa onde havia exploração. Os números diminuíram quando isso acabou", diz a presidente da Comissão Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto juvenil (Cevis), Verônica Teresi.
Sexo 24 horas
Em Paranaguá, o porto emprega 7,5% dos 150 mil habitantes. Na rota, a Rua Atílio Fontana notabilizou-se como Rua 24 Horas no trecho entre dois postos de combustíveis, devido à ininterrupta oferta de sexo barato. Há quatro anos o Conselho Tutelar faz blitze com apoio de 30 agentes de proteção da Vara da Infância. "Conseguimos resgatar muitas adolescentes", diz o conselheiro Edmilson da Silva Costa. Mas falta abrigo para as meninas resgatadas das drogas e da prostituição. Nos últimos três anos, o Conselho enviou 12 adolescentes para clínicas de desintoxicação. "Por falta de estrutura, elas acabam voltando para a antiga vida", lamenta o conselheiro Adilson Santos Costa.
Em Itajaí, meninas entre 14 e 17 anos, prostituídas em bares da zona portuária são induzidas a portar documentos falsos para simular maioridade. O mais grave no litoral catarinense, porém, não é tanto o vaivém de caminhões no porto, e sim a concentração de turistas. Balneário Camboriú, de 110 mil habitantes, tem uma das maiores densidades de prédios do país e comporta um milhão de visitantes no verão. Nessa época, meninas da vizinha Camboriú, de 60 mil habitantes, cruzam a BR-101 em busca do sonho de consumo nos shoppings de luxo. "O grande fluxo de turistas abre uma perspectiva de ganho e elas se tornam presas fáceis das redes de prostituição", relata o diretor do Núcleo de Prevenção às Drogas e à Pedofilia de Camboriú, Manoel Mafra.
Ao identificar o trânsito de crianças e adolescentes, Manoel iniciou trabalhos integrados com os conselhos tutelares das duas cidades. E tem resgatado meninos também. Às 23 horas de 18 de maio deste ano, os conselheiros resgataram um travesti de 16 anos agenciado por outro de 23 na 3.ª Avenida, em Balneário Camboriú. O adolescente foi levado de Curitiba uma semana antes por uma rede de exploração. Travestis menores de idade também são encontrados nas ruas do Centro Velho de Santos e na Rua Dr. Reinaldo Schmithausen, em Itajaí.
Na cidade portuária de Rio Grande, as ruínas de um barracão, antes uma fábrica de sapatos, viraram esconderijo para uso de drogas e programas sexuais às margens da movimentada Estrada Roberto Socoowski. "São raros os casos de exploração sexual de criança ou adolescente", aponta o conselheiro tutelar Reginaldo Rodrigues. Ele atribui a redução da incidência às blitze frequentes do Conselho Tutelar para "queimar" os pontos. Já a coordenadora do Creas local, a assistente social Maria da Graça da Cruz Piegas, tem outra explicação para os baixos registros.
Maria da Graça tem recebido no Creas muitas denúncias de abuso sexual intra e extra familiar, mas quase nenhuma de exploração sexual infanto juvenil. Foram 10 desses casos desde 2001, média de um por ano. Ela atribui a escassez de registros à falta de entendimento das pessoas sobre o que é exploração, o que é abuso sexual e o que é prostituição. "Quando se vê uma adolescente sendo explorada sexualmente, a ideia é de que está se prostituindo, e está ali porque quer." Sem diferenciar uma coisa da outra, as denúncias não chegam, mascarando a realidade.
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