Hotéis acobertam crime com passagens secretas
O amontoado de edificações seculares e decadentes, que toma cada centímetro quadrado do Centro Velho de Santos, camufla a consumação de um crime iniciado ainda nas ruas. Essa área da cidade tem 32 hotéis suspeitos de favorecer a prostituição e, por extensão, de acobertar a exploração sexual de crianças e adolescentes. Esses estabelecimentos têm o alvará de hotel, mas na prática funcionam como motéis, com serviço e decoração bem característicos. Alguns dos mais antigos se interligam por passagens clandestinas para burlar a fiscalização policial, de forma a evitar o flagrante de exploração sexual infanto juvenil.
"O que existe são imóveis travestidos de hotéis", diz o promotor de Justiça da Infância e Juventude de Santos, Carlos Alberto Carmello Júnior. Em geral, eles não têm alvará e funcionam em situação irregular. "Na verdade, servem como refúgio para prostituição. Hotel, verdadeiramente, não existe, porque aquilo não se pode, em momento algum, ser considerado um hotel", completa. Ele relata muitos casos de adolescentes encontradas nesses locais. Em 2005, por exemplo, uma adolescente prostituída para atender ao vício em crack foi estrangulada pelo cliente dentro de um desses hotéis, que funcionava de forma irregular.
"Isso incomoda porque esses estabelecimentos acabam funcionando como combustível para a exploração sexual infanto juvenil", lamenta o promotor. O que impressiona ao Ministério Público, segundo ele, é que por décadas a fio isso vem funcionando, e de certa forma com a condescendência de todos. "Como é que esses estabelecimentos, que a olhos vistos fomentam a prostituição, e fazem com que possa estar acontecendo a exploração infanto-juvenil, podem funcionar sem que se tome uma ação mais incisiva contra eles?" Ele se fez essa pergunta mais de uma vez quando chegou em Santos, há 7 anos, e, diante da falta de resposta, decidiu agir.
Quinze ações ajuizadas por Carmello contra esses hotéis estão em andamento, 12 deles proibidos de funcionar por força de liminar judicial. No início houve relutância do Poder Judiciário em aceitar as ações, mas aos poucos o MP foi encontrando no Tribunal de Justiça um entendimento favorável. "Hoje, os juízes estão sensíveis à questão e têm coibido o funcionamento regular desses hotéis", diz o promotor. O MP tem atuado em três frentes contra esses estabelecimentos: a criminalização de quem favorece ou explora uma adolescente, a tutela preventiva, para evitar que ela caia na prostituição, e, por fim, o que ele chama de tutela indireta.
A tutela indireta consiste em pegar esses estabelecimentos por outros meios que não o crime em si, mas por ações da Vigilância Sanitária, de irregularidades administrativas, ou mesmo da ordem de defesa do consumidor. E é nesse particular que o MP tem tido sucesso. Carmello recorreu a esse estratagema porque em Santos a polícia faz flagrante por tráfico de drogas, de porte de armas, por exemplo, mas nunca por exploração sexual de crianças e adolescente, que acontece a olhos vistos de dia e de noite. Em certa medida, não só o desinteresse da polícia explica a falta de flagrantes, mas também a arquitetura desses lugares.
Ainda em 1993, a psicóloga Marcia S. Farah Reis ouvia relatos de passagens clandestinas de um hotel para outro. As denúncias partiam de várias adolescentes atendidas à época pelo Projeto Meninas de Santos. "Então, aquela fachada de que é só para adultos é tudo mentira. Lá dentro se escondiam adolescentes", diz Marcia. Quando havia blitz, o dono de um desses estabelecimentos jogava a adolescente para outro, e assim evitava o flagrante. A passagem secreta às vezes é um buraco aberto na parede ou ma porta coberta por um guarda-roupas, ou ainda uma ligação entre os telhados, pois uma construção está emendada na outra.
Urubus, às dezenas, sobrevoam o conjunto de prédios decrépitos a espreitar uma cidade moribunda, que, do alto, sugere um grande cemitério de cadáveres insepultos, feitos de um concreto encardido e há muito carcomido. Ao crepúsculo, as aves de mau agouro se recolhem, dando vez a uma legião de zumbis a vagar pelas ruas estreitas e lúgubres. Nesse ambiente soturno, corpos à venda simulam algum sentido à vida com um sorriso ensaiado, uma falsa alegria tirada à força da tristeza. Não só corpos, sonhos também estão à venda. Mas alguma coisa está morta nesses corpos expostos em trajes mínimos, como deixam antever as aves de rapina.O ruído do vento soa como uma queixa enquanto uma garota improvisa um pole dance no poste de sinalização na esquina da Rua João Pessoa com a Avenida Senador Feijó. Esse é o epicentro da prostituição em Santos, um quadrilátero que se estende da Rua Xavier da Silveira à Avenida Rangel Pestana, da Praça Rui Barbosa ao Cemitério de Paquetá. Ao meio-dia, às duas da tarde, às quatro, às 10 da noite, à meia-noite, a qualquer hora prostitutas se põem pintadas e vestidas a caráter na calçada, de frente para a porta que conduz ao quarto onde vendem sexo barato. O ar de melancolia é quebrado, vez ou outra, por um apelo a algum potencial cliente.
Esse é o mais antigo e também o mais decadente mercado de sexo de Santos, a cidade portuária mais importante do Brasil. Mulheres e eventuais adolescentes fazem o trottoir nas ruas desse quadrilátero, enquanto a maioria dos travestis desfila os corpos seminus ao longo de três quadras da Rua Amador Bueno. A maior concentração deles fica nas esquinas da Praça José Bonifácio, em frente da Catedral e do Fórum. Ladeando a praça, a Senador Feijó conduz a outros pontos dispersos de prostituição, no lado oposto ao cais do porto. Ao longo da avenida, a madrugada é preenchida por uma algazarra absurda, gritos, discussões e sucessivos flagrantes de uso e venda de drogas.
O comércio de sexo adolescente já foi mais intenso em Santos, pontua a coordenadora de Proteção Social de Média Complexidade da Secretaria Municipal de Assistência Social, Rosana Caruso. Em 1994, a cidade atendia 150 casos simultâneos; hoje são 22. "O combate a esse fenômeno não é fácil. Exige trabalho lento e muita dedicação". O resultado ela atribui ao ECA, à criação de uma rede de proteção, à integração das políticas públicas, à escola integral, ao Programa Saúde da Família, ao fortalecimento das ONGs do setor, aos programas de transferência de renda. Tudo isso somado às ações integradas de instituições públicas e privadas.
"Essa integração faz a diferença, porque as pessoas têm a ideia de que para resolver o problema basta reunir um grupo de profissionais e abordar as meninas na rua", diz Rosana. Há um padrão de repetição, e muitas vítimas da exploração sexual são filhas de prostitutas. Assim, não dá para jogar a sujeira para baixo das estatísticas. "Não que a exploração sexual não exista, mas ela não é como um dia já foi nessa cidade, quando você praticamente tropeçava nas meninas", atenua a psicóloga e assessora executiva da secretaria, Rosa Gil Marsal. Ainda assim, há quem olhe com reticências para a eficiência mostrada nos números oficiais.
Até ser incorporado ao Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas), o Programa Sentinela fazia um trabalho específico sobre violência sexual. Com a mudança, novos serviços foram incorporados e aí ficou difícil identificar esses casos. "Os dados disponíveis hoje, bem menores, não querem dizer que essas meninas não existam. Talvez o que aconteça seja uma dificuldade de identificação", diz a presidente da Comissão Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil (Cevis), Verônica Teresi. "Antes se fazia um trabalho de busca ativa nos lugares onde havia exploração. Os números diminuíram quando acabou essa busca ativa".
Em 2004, ela integrou um grupo contratado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para testar uma nova metodologia de estudo sobre exploração sexual. A pesquisa se estendeu de Praia Grande a Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, para identificar as redes de proteção e as de exploração. O grupo se deparou com muitas adolescentes nas estradas, em bares e boates de beira de estrada. "Santos é rota de tráfico de meninas e adolescentes em função do tráfego portuário", pontua. Os deslocamentos se dão na cabine de um caminhão. "Muitas vezes essas meninas vêm por um prato de comida, prestando, entre aspas, serviços sexuais".
O porto tem uma relação intrínseca e histórica com a prostituição e, por extensão, com a exploração sexual infanto juvenil. A privatização iniciada na década de 80, resultado da política neoliberal, desencadeou um processo de pauperização da classe trabalhadora portuária e aumentou as taxas de desemprego. O comércio local, que atendia portuários, marinheiros e caminhoneiros, foi falindo aos poucos. A região, área nobre da cidade um século antes, perdeu investimentos públicos e sofreu desvalorização imobiliária. Restou o estigma decorrente dos altos índices de violência, da falta de segurança, do tráfico de drogas e por ser local de referência da prostituição.
Décima sexta cidade mais rica do país, com PIB de R$ 24,6 bilhões, Santos não é igual para todos. A explosão imobiliária se dá apenas na parte nova. A Santos antiga nasceu e cresceu em torno do canal do porto, uma forma de proteger as riquezas contra as investidas dos piratas. Em tempos de paz, no entanto, a cidade voltou suas costas para a história e cresceu na orla, de frente para a praia. O Palácio da Polícia bem representa a decrepitude do lugar. São cinco andares de uma construção encardida e sem reboco, com enormes tufos de mato brotando da parede, quase que com um ecossistema próprio. Não à toa, os onipresentes urubus escolheram esse lado da cidade.
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