Para quem esperava um forte conteúdo social nas palavras do papa Francisco, o pontífice pode até soar pouco político em suas falas no Rio de Janeiro. Mas, para o professor Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o discurso do santo padre vem sendo, sim, altamente político. "Nós é que entendemos errado a política, nos acostumamos a vê-la como a mera atitude reivindicatória. As palavras de Francisco remetem a um contexto em que a grande contribuição política está na criação de uma unidade popular para se contrapor ao poder do dinheiro e ao poder do Estado. Por isso o papa privilegia o papel do indivíduo e da solidariedade que une o povo", explica. Em Varginha, comunidade do subúrbio do Rio, por exemplo, Francisco pediu que "cada um, na medida das próprias possibilidades e responsabilidades, saiba dar a sua contribuição para acabar com tantas injustiças sociais", sem jogar toda a responsabilidade para o poder público.
Borba acrescenta que, com seu discurso, Francisco recupera o pobre como elemento de conversão para a Igreja. "Não pelo mero fato de ser pobre, como se fosse uma figura sociológica, mas por ele viver uma experiência de solidariedade e despojamento dos bens materiais com a qual a Igreja pode aprender", explica.
Parte dessa experiência se manifesta na religiosidade popular, que vai muito além das práticas populares de piedade que Francisco também fomenta. "O colocar água no feijão de que o papa fala, por exemplo, é uma profunda manifestação de religiosidade popular: é a atitude de quem confia na providência divina, de quem sabe que Deus cuida de cada um", exemplifica. Isso distancia o papa do discurso tradicional da Teologia da Libertação, que abre pouco espaço para a espiritualidade.
Valores
O que também afasta o papa dos teólogos da libertação é sua ênfase no fato de que os valores de justiça social são pouco efetivos se dissociados dos valores cristãos. "Para horror da Teologia da Libertação, a cada vez que o papa nos lembra a necessidade de exercer a caridade física, ele faz questão de lembrar que ela não é um fim em si. Nas palavras do papa em Varginha, certamente é necessário dar pão a quem tem fome; é um ato de justiça. Mas existe também uma fome mais profunda, a fome de uma felicidade que só Deus pode saciar", afirma o professor Carlos Ramalhete, colunista da Gazeta do Povo e que, durante a JMJ, participou como debatedor do DSI Talks, um evento dedicado à Doutrina Social da Igreja. Em Varginha, antes de citar saúde, educação e segurança, Francisco colocou entre os "pilares fundamentais que sustentam uma nação" a defesa da vida e da família.
Pobreza espiritual
O tema não é novo para Francisco: logo após sua eleição, discursando aos embaixadores de diversos países, ele afirmou que "há ainda outra pobreza: é a pobreza espiritual dos nossos dias, que afeta gravemente também os países considerados mais ricos". Na mesma linha está o mote da "Igreja como ONG piedosa", que Francisco retomou no Rio. "Mas existe uma diferença sutil: na sua primeira missa como papa, ele falou que a Igreja não pode perder a dimensão espiritual, quando afirmou que se nós não professarmos Jesus Cristo, nos converteremos em uma ONG piedosa, não na esposa do Senhor. Agora, falando aos argentinos na Jornada, disse que as paróquias, as instituições foram feitas para sair. Se não saem, viram uma ONG. Ou seja, se eu não professar Cristo para o outro, não conseguirei professá-lo para mim mesmo", compara Borba.
"O papa veio lembrar à juventude que cada cristão é chamado a levar Cristo ao próximo, a não enterrar seus talentos. Ao falar a seus compatriotas, ele resumiu seu programa às bem-aventuranças e no capítulo 25 do Evangelho de São Mateus (a "parábola dos talentos"), que ele disse ser o protocolo com que nos julgarão", acrescenta Ramalhete.
Falas indicam continuidade
As intervenções de Francisco também servem para deixar claro que não existe ruptura entre seu magistério e o dos antecessores, afirma Francisco Borba, da PUC-SP. "O que mudou é a recepção do discurso, por causa do apelo popular de Francisco. Mas o que ele transmite representa uma continuidade dos papados anteriores", diz. A importância dos valores cristãos na construção de uma cultura que valorize integralmente a pessoa humana, por exemplo, era um tema muito caro a Bento XVI.
O professor Carlos Ramalhete ressalta outra chave de continuidade: "o clericalismo vem sendo um dos alvos principais do papa. Criou-se o péssimo hábito de ter clérigos no mundo, cantando na tevê, fazendo política e pronunciando-se sobre todo tipo de questão imanente, enquanto os leigos lotam os presbitérios e as sacristias. O papa nos chama a fazer o contrário, devolvendo a cada um o que é de direito: os leigos devem agir no mundo e os clérigos, nas sacristias e presbitérios", explica.
"João Paulo II e Bento XVI já trabalharam neste sentido. O papa Francisco, no entanto, tem uma vantagem que eles não tinham: ele é latino-americano e conhece o nosso clero; já trabalhou com eles, já teve de lidar com os libertadores que tentam há décadas fazer da Igreja um partido político", acrescenta.