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Entrevista

A cultura que buzina

Não esperem do intelectual José Teixeira Coelho Netto odes às ocupações urbanas, elogios ao movimento pró-bicicletas e defesa visceral das mostras de arte feitas nas ruas. "Não sou um entusiasmado dessas manifestações", admite. Mas podem contar com ele para levar exposições às praças e às esquinas. Contradição?

Da mesma maneira, que ninguém caia na fiúza de que Teixeira, como é chamado, vá defender números e índices, quase que suplicando para incluir a cultura entre os grandes problemas do mundo, mesmo sendo expert no assunto. "A época de usar esses argumentos já passou", avisa, a seco, sem deixar de ostentar números que fazem do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, do qual o diretor, o museu mais movimentado da linha de baixo do Equador, com 350 mil visitantes ano.

A conversa com Teixeira é assim – um gato e rato no combate ao lugar comum. E nem poderia ser diferente. Nos últimos 30 anos, o pesquisador se tornou, com folga, a maior referência em questões culturais Brasil, com tudo o que isso implica. Não é assunto para amadores, daí sua dureza. É dele o inigualável Dicionário crítico de política cultural, recentemente relançado pela Editora Iluminuras, obra na qual mostra sua fluência em assunto tão díspares como o imaginário e o mecenato. Talvez por saber demais, não se rende tão fácil a discursos prontos, preferindo manter-se "um clássico". Para ele, a cultura se impõe. Eis o princípio de onde parte.

Teixeira Coelho é o terceiro entrevistado da série Leitura na Prática [confira no site as edições anteriores, com o escritor Domingos Pellegrini e o pesquisador Felipe Lindoso]. Com fala cortante, bate o pé, como de praxe, no lugar da cultura no desenvolvimento das cidades, nas falhas da educação para a arte, no descaso dos governos. "Se falta cultura, falta tudo", resume, num misto de melancolia e teimosia.

Occupy, bicicletadas, manifestações por ciclovias... A classe média manifesta cada vez mais seu desejo pela cidade, não raro com, arte e criatividade. A cultura tem ajudado as pessoas a tomar posse dos espaços?

Confesso que não sou um entusiasmado com esses movimentos todos [risos], mas não dá para ignorar o efeito que têm. Qual o efeito de uma avenida aberta para pedestres no fim de semana? É hipocrisia, mas é um gesto simbólico, e acredito na força do gesto simbólico. A cultura pode ser sim um elemento de tomada de posse da cidade...

O senhor é o curador da próxima Bienal de Curitiba, em 2013. Vai colocar a cultura na rua?

Queria quer todas as mostras fossem na rua. O uso do espaço público seria o mais interessante. Mas as pessoas querem que seja no museu. Penso assim: a maior parte da nossa arquitetura é feita por engenheiros e arquitetos com falhas de formação. Acredito que uma intervenção artística, mesmo que provisória, como numa bienal, pode ajudar a melhorar o espaço urbano. Sou um otimista.

Há quem diga que a cultura tem se tornado um evento, a serviço das chamadas "cidades espetáculo", nem sempre cidades de verdade. Em vez de profundidade, barulho. O que acha?

Não tenho resistências à ideia de "cidade espetáculo". O homem gosta de espetáculo. O espetáculo é fundamental, é intrínseco ao ser humano. Não confundo espetáculo com artifício, o que não passa de uma casca, sem muito interesse. Não faço parte da demagogia que procura censurar o espetáculo. Uma cidade pode ser um espetáculo para ela mesma. É o que queremos. Mas precisa ter consistência, solidez. Se é para soltar fogos que duram dois minutos, não tem nenhum valor. Cultura precisa enraizar.

Existe algum segredo para evitar o efeito fogos de artifício? Como trazer a arte para o cotidiano, sem se render ao fascínio do espetáculo...

Não sei se vamos chegar a um ponto em que uma sociedade será artística durante as 24 horas do dia. Não tenho a ilusão de que um evento artístico deva ser prolongado, embebendo a vida das pessoas indefinidamente. A arte é um interruptor do fluxo cotidiano. A sequência, a continuidade, nada tem nada a ver com cultura, mas com ações utilitárias, imediatistas, artificiais. Não há nada contra ao fato de um determinado evento quebrar a rotina. A alternância é importante. Acho que tem de haver, sim, é uma continuidade das ações. Uma bienal que aconteça uma vez é um projeto falido. Aliás, isso é Aristóteles. Estica e distende. É o princípio da poética de Aristóteles.

Como agente cultural, o senhor tem a preocupação de interferir na vida da cidade?

Estou um pouco cansado dessa história de que o curador tem de cuidar de tudo – inclusive de interferir na rotina da cidade. Mas não é preciso ter essa ilusão de que vai dominar tudo. E para falar a verdade não acho que fazer cultura hoje seja muito diferente de outros tempos. Penso qual era o papel de um curador na época de Lorenzo de Médici. O sujeito também tinha de pensar o que ia acontecer se colocasse uma escultura de Michelângelo aqui ou ali. Se seria um presente para a cidade. Se importunaria as pessoas. Nada mais trivial... Perturbar a vida da cidade? Isso não existe. Existe um conjunto de pessoas interessadas no urbano... Você arriscaria falar da personalidade de Curitiba?

Venho para Curitiba não é de hoje. Digo que é um lugar agradável. Meus amigos curitibanos detestam essa fala. [rsss] Veem erros em tudo e dizem que aquilo que eu elogio foi feito para as pessoas consumirem. É verdade que estou ficando abismado com o trânsito. Conheci uma Curitiba civilizada e agora vejo um monstro sobre rodas. Levei uma hora e meia para chegar do aeroporto ao Centro da cidade. Mas mesmo assim, discordo que não seja boa. É uma cidade mais verde, que preservou a arquitetura do passado. Por outro lado, sei que como toda cidade brasileira falta muita coisa para Curitiba melhorar sua convivência com a cultura. A arte pode fazer o papel de tirar as pessoas da rotina, uma rotina às vezes insensível, automática, inconsciente. Talvez elas nem parem mais para pensar se a cidade é bonita ou é feia, agradável ou não. A arte tem de fazer pensar, olhar. E olhar vai ter alguma consequência.

O que nos falta para ser um país que acerte o passo com a cultura?

Tudo. [risos] Qual o indício disso? A verba do Ministério da Cultura só perde para a do Ministério da Pesca, que ninguém sabe direito o que é. Eis um sinal claríssimo da irrelevância da cultura. Além de que o ministro não participa de reuniões importantes sobre uma Transpantanal, por exemplo. Ele fica cuidando da cereja do bolo. Vamos para os EUA, que todo mundo adora massacrar, chamando de um país de ignorantes e de prepotentes... Mas lá a sociedade civil sabe que tem dever de cuidar da cultura. E cuida. Aqui há uma brecha muito grande. A cultura não está no sistema de ensino, a cultura não está na cidade nem no modo de usar a cidade. Se falta cultura, falta tudo.

Um índice ajudaria a provar que a cultura, por exemplo, dá dinheiro – uma linguagem que os governos e empreendedores entendem...

Já temos índices culturais. Não servem para nada. A afirmação de que a cultura pode ser transformada em números foi necessária na segunda metade dos anos 80 e dos anos 90. Hoje não adianta nada. Não é problema do Banco Mundial. Há tentativas de associar o índice de desenvolvimento de um país não ao PIB, mas à felicidade, por exemplo. Mas é vago. Não cola. Os políticos continuam a considerar cultura como acessório. Precisamos é formar gente, convencer as pessoas que estão no poder de que sem cultura e sem arte não há desenvolvimento.

Como? Com estudos de caso...

Chegamos a utilizar índices socioculturais como uma estratégia de convencimento. Mas muitas pessoas acabaram fazendo disso uma Bíblia. A questão é que cultura e a arte não precisam ter sua necessidade confirmada em números. Ou você acredita que é importante ou não há dado que convença disso. Qual nosso problema? Uma tremenda falta de educação. A França tem consciência clara de que se sustenta na cultura e na arte. Claro, a França tem tecnologia. Mas pergunte a um francês o que ele acha mais importante – o Airbus ou a língua francesa. É a língua francesa.Quer outro exemplo. A Coréia saltou para quinto lugar nas Olimpíadas. Vende mais avião que o Brasil, faz avião de caça. [risos] Como conseguiram isso? Com educação. O professor lá é uma das três profissões mais respeitadas que existe. O que é o professor no Brasil? Até meados da ditadura militar, professor de universidade recebia como juiz. Reúna 500 professores da escola privada, olhe para eles: você vai sentir a alma desfalecendo a seus pés, só de olhar. Estão completamente abandonados. Como é que esse país quer ser emergente com o abandono da educação e da cultura?

Que setor mais lhe frustra... A escola é insensível à cultura?

Totalmente. Costumo dizer que o último momento em que a criança tem favorável à arte é no pré-primário. Depois disso vem o massacre imbecil, fadado ao fracasso, de instrumentalizar a criança. Ruína total. E essa ruína chega às universidades – às melhores universidades. A educação no Brasil é a mais desculturalizada que conheço. Todo mundo ri do americano porque ele não sabe onde fica Brasília. E daí? Melhor é saber como o americano cuida de seus universitários. O ideal do humanismo desapareceu totalmente. Não estou dizendo que deva haver formação em filosofia para todos. Mas hoje o jovem entra na universidade e vê que a universidade é mais do mesmo. Um fracasso enorme.

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