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Cidade

A turma que lê no asfalto

Dos tempos em que viveu na Espanha, o jornalista Rogério Pereira, 39 anos, lembra o impacto que sofreu ao entrar pela primeira vez no metrô. Não lhe impressionou a tecnologia do trem nem a arquitetura da estação, mas a quantidade de passageiros com jornais e livros à mão. "E pensar que nem é o lugar com o melhor desempenho de leitura na Europa. Mas é o berço de romance, a terra de Cervantes. Vai ver que é isso", arrisca, sem esconder seu fascínio diante da visão de uma espécie rara no Brasil – a do leitor que lê em público, sem pudores, profanando a aura de silêncio e recolhimento que ronda essa prática.

A experiência em terra estrangeira lhe valeu. Há pouco mais de uma década, Pereira se tornou no Brasil um legítimo paladino da leitura, digno dos melhores HQs. A missão a que se impôs não é segredo: a de que mais e mais pessoas se dispam do preconceito e empunhem seus livros nas praças, ruas, repartições e filas. Caso alguém tenha dúvida da utilidade de tamanha exibição, a resposta é só uma – serve para tornar visível o leitor para que outros se espelhem e reclamem para si esse estatuto.

A depender da energia de Rogério – um leitor cujo apetite chega a ser maior do que a paixão confessa pelos jogos da Suburbana –, qualquer um que entrasse num coletivo veria leitores se acotovelando. Tem suado para tanto. "Sempre digo que estarei satisfeito se conquistar um único leitor", repete, imodesto. Levam sua marca iniciativas como o jornal literário Rascunho, criado há 12 anos; o Paiol Literário, que desde 2006 aproxima escritores do público no Teatro Paiol, em Curitiba, somando 57 edições. E projetos brincantes, como o da Igreja do Livro Transformador, uma confraria de matriz anarquista, criada em parceria com o escritor mineiro Luiz Rufatto. "Ser criativo em leitura é o mais difícil. Nada é mais descomplicado do que pegar um livro e abri-lo...", observa.

À frente da Biblioteca Pública do Paraná, o "Quixote" agora tem ainda mais instrumentos para a tarefa que define sua vida – a de permitir que mais e mais pessoas vivenciem o que ele mesmo experimentou, aos 13 anos, ao descobrir os livros, mesmo tendo nascido numa família pouco dada a essas lides. Desde então, suspeitam seus amigos, não saiu mais à rua sem um exemplar debaixo do braço, fazendo desse objeto uma segunda natureza. Sua militância é silenciosa.

Figurinha carimbada

O leitor Rogério é conhecido nos cafés do Centro da cidade – cujos garçons desistiram de afugentá-lo com o paninho de limpar mesas. E se sentiu muito à vontade ao ser fotografado para essa reportagem lendo, em meio ao passa-passa de gente da Rua XV, devolvendo por minutos o charme da Belle Époque aos surrados petit-pavês. "Estranho que não haja uma biblioteca numa como a Praça Rui Barbosa. Não é normal", comenta, casual, pondo na roda um dos aspectos mais espinhosos na formação da sociedade leitora: a falta de gente que leia em público coincide com o deserto de espaços urbanos talhados para acolher o leitor.

É sabido que houve avanços. Há bibliotecas públicas em 89% dos municípios brasileiros. No Paraná são 438 bibliotecas e a melhor média per capita nacional – 26 mil habitantes por espaço de leitura, de acordo com a pesquisa Cultura em Números, do MinC. Mas ainda tem lenha. Como no ensino e na segurança pública, reina, de resto, a mentalidade que cabe ao Estado prover esse assunto, eximindo igrejas, comerciantes, empresários e cidadãos comuns de responsabilidade. "As possibilidades de criar espaços estão à vista de todos. O segredo é tornar o material acessível. Não precisa tecnologia. Leitura é projeto barato", ensina a publicitária Edna Faust, 42, conhecida por ajudar famílias e empresas a direcionarem seus descartes de livros e revistas pelos quatro campos do mapa.

Esse debate, e já são horas, tende a ultrapassar as fronteiras dos círculos educacionais e literários, desembarcando nas pranchetas dos urbanistas. Eles têm a chave do segredo, pois podem colocar a leitura paripassu com a mobilidade, iluminação e convivência. Ler é questão das cidades, sim. O arquiteto Fábio Duarte, do mestrado e doutorado de Gestão Urbana da PUCPR, reconhece que, salvo exceções, os grandes centros tendem a ser pouco atraentes para o "leitor", reforçando a leitura privada em detrimento da pública. E pensar que custaria muito pouco favorecer que essas figuras empunhando livros proliferassem pelas esquinas: "Basta um banco confortável na sombra, em lugar tranquilo e seguro. É tão simples quanto isso", comenta o pesquisador.

Os exemplos de Fábio passam pela Nova York das muitas praças, dos bosques de quarteirão, os pocket parks, "alguns, menores do que um lote, mas bem cuidados e sempre atraentes para quem tem meia hora no almoço para continuar sua leitura". Passam também pelos espaços de leitura do Sesc, em cidades como São Paulo. E em particular pelas livrarias em que há áreas para as crianças se esbaldarem pelo chão – o que bibliotecas convencionais tendem a inibir. Eis a questão. Uma cidade leitora é aquela que entende que o livro pode ser lido no folguedo, no barulho, debaixo de sinfonia de buzinas. O "leitor urbano", em resumo, tem o peso de um luminoso.

A biblioteca anárquica da Pote de Mel

Panificadora próxima ao Hospital de Clínicas criou pequeno espaço para a leitura. Não há regras, a não ser deixar que os livros encontrem um leitor. O lema da Pote é: “Um livro fechado está adormecido. Se um livro acorda, uma pessoa acorda.”

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