Retrato em 3 X 4
Seu Zé, como é conhecido, chama atenção de quem pega o elevador na Associação Comercial do Paraná. Calado, está sempre lendo, despertando a curiosidade dos que sobem e descem. Há quem imagine que a cada dia o ascensorista lê um livro novo. Ele mesmo calcula ter lido muito. E não se esquece de dizer que se tornou leitor em meio à tragédia que viveu na infância.
"Sou de Paraguaçu Paulista, no interior de São Paulo, e vivi minha primeira infância numa casinha de sapé. Dormi em colchão de tariba, como a gente chamava o colchão feito com palha de milho. Vivo no Paraná há 57 anos, sou casado, tenho quatro filhos, seis netos e um bisneto. Cheguei a ter uma biblioteca de 800 livros em casa. Calculo ter lido 1,5 mil livros na vida.
Eu tinha 3 anos quando minha mãe morreu, deixando seis filhos. Na noite em que ela se foi, não sei se foi sonho, vi uma mulher subindo ao céu com uma lamparina. Depois disso, fui mandado, com meus irmãos, para um abrigo de menores em São Paulo, capital. Lá fiz o primário. Em 1944, saí desse lugar e fui para uma escola agrícola, em Itapetininga. A vida no abrigo era difícil. Eu apanhava todo dia.
Gostava de ler desde criança. Fugia do abrigo e ia no depósito de lixo do Tatuapé. Procurava livros e revistas no lixo. Pegava Seleções, Manchete e Cruzeiro, recortava e fazia álbuns com as histórias que me interessavam mais. O contato com o livro era pequeno. E tinha os gibis que vinham pelas famílias dos internos que recebiam visitas. Eu não recebia. Mas ganhava balas dos colegas e ia chupando devagarinho, para durarem uma semana. Até hoje chupo balas enquanto estou lendo. Um monte, porque passei muita necessidade.
No abrigo eu tinha dificuldades de ler bem. Mas lia como uma forma de me proteger. Desenhava no chão e ficava quietinho num canto. Me derrubavam, não gostavam de mim. Os cadernos era trancados em armário, para a gente não transformar em papel higiênico. Eu era muito retraído.
Acho que o primeiro livro que li e gostei foi Os três mosqueteirosFui um aluno mediano. O que eu mais gostava era desenhar também, quadriculava figuras para depois ampliá-las. Não tenho quase nenhuma lembrança de meus anos de escola. Tenho, sim, algumas recordações ruins, como os castigos, aplicados por quatro vigilantes do orfanato. No abrigo tinha aulas de catecismo. A vivência naquele lugar e a leitura me colocavam contra Deus. Não tenho religião. Mesmo assim, li duas vezes seguida a Bíblia Sagrada.
Quando eu tinha 18 anos, meu pai reapareceu, me ofereceu pés de café para colher. Mas veio a geada de 1949. Acabei fugindo para Londrina, no Norte do Paraná, e lá trabalhei como ascensorista na primeira edificação da cidade. Em Curitiba, tempos depois, eu fazia caixinhas no Matte Leão. Lá conheci minha primeira mulher, Dirce da Silveira. Ela pediu para vir comigo. Em 1955, passei na Associação Comercial do Paraná e pedi serviço. Em 1956 entrei aqui e desde então estou sempre lendo no elevador. Escolho um livro pelo autor, pelo título ou por indicação. Gosto de Jorge Amado e de Ernest Hemingway. Chego a ler de quatro a seis livros por mês. Antes eu lia mais rápido.
Gosto da vida urbana. Por causa da minha timidez, fico de olho em tudo, nas construções, nos cemitérios. Os livros fizeram com que eu prestasse mais atenção na cidade. Gosto de casas antigas e fico imaginando o que teria acontecido ali. Mas não sou de sair e de me associar. Não vou a bailes, embora bem que tentei aprender a dançar. Sempre gostei é de andar pela cidade. Sou curioso.
Quando escolho um livro vou até o fim. Acabo de ler Querido John, de Nicholas Sparks. Sou igualzinho ao personagem. Vi meu interior. Muita gente acha que sou antipático. Só com 82 anos eu fui saber o que acontece comigo. Eu já me vi em vários personagens, me identifico. Rio e fico triste com o que acontece nas histórias. Gosto muito de biografias. Voltei para a escola em 2009, no programa Luz das Letras. Ali, escrevi minha biografia. Deu 60 páginas."
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