“Não guardo na-da. Tem um verso do Cacaso que adoro: ‘Minha infância é meu país, por isso vivo no exílio.’ Tenho horror da minha infância; tenho horror da minha juventude. Não olho para trás. Não revisito o passado”, sentencia, a voz rasgada subindo um tom, em resposta a mais uma tentativa de captar algum vestígio, que fosse, sobre o que se passou décadas atrás. Não é que Edla van Steen, 78 anos, tenha rompido laços com o passado, mas qual é o sentido de resgatar memórias sobre cuja veracidade não há mais certeza?
“Acredito que a gente se construa. E o autor é tão mentiroso. Todo autor fantasia muito. Em certo momento, não se sabe mais o que é verdade e o que é mentira; se a infância sobre a qual se fala pertence a si ou ao outro.” A suspeita, inclusive, a afasta da leitura de biografias, diários ou livros de memórias. “É como as memórias do Pedro Nava. Você acha que são dele? São tão maravilhosas; que memórias são essas tão maravilhosas?”, encerra.
Edla decidiu que a vida começou para valer quando deixou de ser interna do tradicionalíssimo Nossa Senhora de Lourdes, o “Colégio do Cajuru”, de Curitiba, que frequentou dos 6 aos 15 anos. Jovem, fez tudo nos conformes da época: aprendeu a bordar, a cerzir e a rezar; debutou no Curitibano, como toda menina de boa família que quisesse se inserir na sociedade fazia; cogitou aderir ao hábito. Durante os anos vividos sob a tutela das irmãs de São José de Chambery, acreditou estar protegida sob a vigilância de um Deus que tudo via. Recém-egressa do internato e livre dos rigores do claustro, no entanto, transgrediu.
Nas ondas do rádio
Edla van Steen define a si mesma como grafomaníaca, termo referente à compulsão patológica de escrever. O epíteto foi cunhado pelo jornalista e amigo Otto Lara Resende, com precisão. Desde muito jovem, conta, as circunstâncias a treinaram a pensar com palavras.
O primeiro emprego foi na Rádio Tingui – por necessidade. Era um programa de radiofonização de cartas, no qual interpretava as missivas de ouvintes aflitos por conselhos familiares e amorosos. Edla lia os relatos, transformava as revelações em diálogo e encenava as histórias com o auxílio de técnicas primárias de sonoplastia. Simulando voz de senhora, a jovem de 16 anos sugeria que suas pobres heroínas pedissem o divórcio e que os filhos incompreendidos saíssem de casa – dicas pouco ortodoxas para a Curitiba cinquentinha.
Edla van Steen
Uma das mulheres mais transgressoras de seu tempo, a catarinense Edla van Steen chegou a Curitiba aos 6 anos, na década de 1940. Foi interna do tradicional Nossa Senhora de Lourdes, o “Colégio do Cajuru”. Tão logo se livrou do claustro, desviou do caminho convencional e se recriou na arte. Amiga de Dalton Trevisan, o Vampiro de Curitiba, e de nomes de peso da literatura nacional, como Otto Lara Resende e Fernando Sabino, Edla se arriscou como atriz de um filme só, jornalista, tradutora e galerista, antes de se encontrar, enfim, na literatura. Como editora, esteve à frente da publicação de mais de 300 títulos da literatura brasileira contemporânea. Língua afiada e humor ácido, ela revisita um passado fragmentado – “O resto, imaginei.”
As pequenas e grandes tragédias da vida comum compartilhadas por meio das cartas foram determinantes para que Edla entendesse que seu olhar recai sempre sobre o outro e que são essas as histórias que gosta de contar. Inspirada pelos relatos radiofonizados, arriscou o primeiro livro, Contos Incomuns, jamais publicado – os originais manuscritos foram extraviados em um táxi em São Paulo. A perda a fez prometer que jamais escreveria novamente.
Labirinto profissional
Mais de 50 anos se passaram desde a malfadada promessa e Edla van Steen continua sobrevivendo de literatura – da sua e da dos outros. Como escritora, tem 29 títulos publicados, entre contos, romances, entrevistas, biografias e peças de teatro. Como editora, contabiliza mais de 300. Edla é uma espécie de curadora de literatura. Garimpa novos autores, apura obras de nomes consagrados e dirige coleções de peso da Global Editora, como Melhores Contos e Melhores Poemas. Orgulha-se, não sem razão, ao se afirmar uma das maiores conhecedoras da literatura brasileira.
O trajeto profissional até a dedicação exclusiva à literatura, no entanto, foi sinuoso. Depois da Rádio Tingui, arriscou-se no jornalismo, em uma revista cujo nome não revela – limita-se a dizer que se tratava de uma publicação de gosto duvidoso, na qual era responsável pela crônica social curitibana, assinada, “evidentemente”, com um pseudônimo que só os muito íntimos conhecem.
Logo, a vida pessoal se sobrepôs, abrupta, à profissional. Edla se envolveu com Loio Pérsio, marco do modernismo brasileiro. Loio era desquitado e pai de dois filhos. O relacionamento foi um escândalo. Decidiram então mudar para São Paulo. Um ano depois, nasceu Ricardo, o primogênito. A sobrevivência urgia, o dinheiro escasseava e ela não se fez de rogada: permitiu-se como atriz, roteirista, redatora publicitária, tradutora e galerista.
A carreira como atriz, embora brevíssima, foi bem-sucedida e reconhecida internacionalmente. Sua Miriam de Na Garganta do Diabo (1960), filme de Walter Hugo Khouri, lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema de Santa Margherita, em Ligure, na Itália. Época de vacas magras, não só não pôde viajar para receber o prêmio, entregue pelas mãos de Roberto Rossellini, como teve de vender a moeda de ouro para bancar a educação do filho. Tempos difíceis.
A união com Loio não vingou. “Ele era realmente insuportável e não aceitou o sucesso que fiz como atriz.” Sem vocação para a tristeza, Edla pegou o filho pelo braço e partiu. A despeito do sucesso como atriz, sequer cogitou seguir carreira no cinema. Seu negócio era escrever. O primeiro livro, Cio, foi publicado em 1965. Não parou mais.
Mundo de míope
Edla gosta de escrever sobre gente. Décadas de literatura renderam uma galeria de tipos comuns, que bem poderiam ser encontrados pela vizinhança. Personagens frustradas, insatisfeitas sexualmente, traídas e traidoras, em luto: estão todas lá, e aqui, ao redor, basta espiar.
A casa, o retorno e a morte são temas preferidos. O drama está sempre presente em suas narrativas, mas não há maldade. A maldade é inverossímil. A vida acontece repleta de tragédias sem que ninguém precise interferir, acredita.
Outra marca da autora são as relações. “Meus personagens não prescindem do outro. São construídos na relação com o outro.” Ela atribui à miopia a capacidade apurada de ouvir e observar.
“A Rachel de Queiroz me contou em entrevista que desconhecia ter problemas de visão até o dia em que colocou os óculos e descobriu que havia estrelas no céu. Não é maravilhoso? O meu olhar não é panorâmico, os relatos também não. Meu universo é o íntimo.”
O processo criativo de Edla opera pela exaustão e pela obsessão: jamais se deu por satisfeita com a primeira versão de um texto. Busca, incansável, lapidar o estilo. Repetir palavras em uma mesma página é inaceitável.
Adepta aos contos longos, a escritora desafiou-se a si mesma em seu último livro, Instantâneos (2013). A empreitada surgiu como forma de canalizar alguma energia para si mesma quando se desdobrava para finalizar o Roteiro da Poesia Brasileira, catatau dividido em 15 volumes sobre 500 anos de verso nacional, e começar a coletânea de críticas teatrais assinadas pelo marido, Sábato Magaldi.
Como não dispunha de muito tempo, decidiu abreviar a escrita. Todos os dias, escrevia um miniconto – um exercício textual para absorver o que havia testemunhado no dia.
“Captava um instante e imaginava quem eram aquelas pessoas, sobre o que conversavam, o que faziam. Inventei histórias para aquelas imagens.”
As cinco ou seis linhas de cada texto exigiram que o olhar fosse apurado até que restasse apenas o mais importante. Instantâneos é talvez a obra mais experimental de Edla e, insinua, a que mais revela sobre a autora.
A filha do pai
Nascida em Florianópolis (SC), em 1936, de pai belga e mãe brasileira com ascendência alemã, Edla conheceu cedo a ausência. Quando tinha 6 anos, o pai se separou da mãe e partiu para o exterior, onde viveu por muitos anos sem dar notícias. O divórcio causou rebuliço na sociedade florianopolitana e a mãe decidiu migrar com as duas filhas para Curitiba. Edla foi direto para o internato.
“Demorei a entender que não havia sido abandonada. O internato era uma forma de proteção. A mudança social deve ter sido difícil para ela. Tinha uma certa tristeza. Não sei se fantasiei ou se é verdade, mas Edla era o nome da melhor amiga dela, que lhe roubou o grande amor”, recorda.
O pai, sumido por anos, foi adotado pela filha quando Edla tinha 42 anos, depois de algumas idas e vindas. A última despedida abrupta havia acontecido quando ele soube que ela havia hospedado Fernando Henrique Cardoso em plena ditadura – “Minha filha, não falo com comunista”. E debandou.
Doze anos depois, o homem reapareceu. A adoção do pai não foi indolor, mas pareceu mais simples do que alimentar mágoa. “Resolvi meus sentimentos, me senti generosa.”
Cheiro de amor
Edla definitivamente não tem vocação para o tipo sofredor. A única característica atribuída aos escribas que admite em si mesma é o sedentarismo e a saúde frágil (dois enfartes, cinco pontes de safena, artrose na perna direita). “Quanto mais ferrado for, melhor é o escritor”, tasca.
O tal vício em ler, aliás, quase a enlouqueceu quando descolou as retinas. Seis meses sem ler uma única linha.
De espírito coletivo, ela quer a família e amigos por perto. “Quis construir uma família unida.” Seria uma resposta à ausência experimentada quando criança? Não refuta, mas pondera – nunca somos uma causa só.
A disposição para o relacionar-se é evidente: emendou casamentos, esteve pouco sozinha. Depois de Loio, casou com o arquiteto Ennes Silveira Mello, com quem viveu 16 anos e teve duas filhas, Anna e Lea. Mais tarde, Ricardo o adotaria como pai. São amigos até hoje. O terceiro casamento foi com o crítico de teatro Sábato Magaldi, 88. A união dura 36 anos.
Quando o assunto é Sábato, a fala é cuidadosa. Recentemente, Edla lançou a coletânea de críticas teatrais do marido. O trabalho de uma vida, mais de três mil textos selecionados. “Fiz esse livro por amor. É a retribuição aos anos em que fui feliz com ele”, entrega.
O envelhecimento do companheiro preocupa, magoa. Não acha justo. A velhice, argumenta, não deveria ter o ônus da doença e da senilidade. Logo muda o tom, afasta a ameaça de tristeza com uma resignação corajosa. “Viver é perigoso, dizia o Guimarães Rosa. Viver, sobreviver e ser gente exige demais. Mas não me abato, nunca fico deprimida, levanto e parto para outra. A gente sobrevive das desgraças. Elas também contribuem para a compreensão do mundo.”
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