Foi ouvindo rádio, ainda criança, que Vania Mara Welte decidiu o que queria ser na vida. O aparelho de transmissões em ondas curtas trazia informações da Europa no pós-2ª Guerra. Do outro lado do oceano chegavam relatos da jornalista Oriana Fallaci. Arthur, pai de Vania, elogiava muito o trabalho da repórter italiana. Dizia que ela não deixava nenhuma pergunta sem resposta. Sem saber, incutiu na filha o sonho de contar histórias, de sempre ir a fundo na busca por informações, de dar voz àqueles que não tinham a quem recorrer. Quando Oriana Fallaci morreu, em 2006, anunciaram que havia morrido também “o jornalismo incômodo”. Vania também incomoda. Com ela não tem mesmice, acomodamento, zona de conforto. Ela foi uma das primeiras mulheres a trabalhar em redação jornalística no Paraná e a primeira repórter do estado a conquistar um Esso, prestigiado prêmio de jornalismo, em 1996, pela série de reportagens sobre o caso conhecido como “As bruxas de Guaratuba”. “Para mim, jornalismo é mais do que uma profissão. É uma missão social, transformadora, instigante e prazerosa”, diz.
Era de extremos
Vania Mara Welte tinha os cabelos negros como “a asa da graúna” e hoje ostenta um loiro platinado. Ela não tem medo de se reinventar. As alterações são sempre bruscas na trajetória dessa jornalista com mais de seis décadas de vida. Vania nasceu em Curitiba, mas os pais dela se mudaram para o interior pouco depois. Atraídos pelos sonhos de fazer a vida em uma terra promissora, compraram uma farmácia em Araiporanga, cidade do Norte Pioneiro hoje rebatizada como São Jerônimo da Serra.
Arthur atendia todo tipo de urgência, até costurar cabeças abertas por garrafadas de brigas de índios guarani, caingangue e xetá. Foi naquela época que nasceu sua mania de desafiar a vida. Começou a viver numa gangorra, sem nunca “brincar” de ficar parada no meio. Entre os altos e baixos, a oscilação financeira na família Welte.
Nos tempos de fartura, cada filho chegou a ter um cavalo com baia individualizada. Nos ttempos de penúria, não tinham nem sapato apresentável para ir à escola. Os Welte voltaram para Curitiba, morando de favor na casa de parentes. Na primeira sexta-feira de cada mês, quando havia missa especial no colégio, Vania precisava ir de uniforme de gala. Assim que chegava, com a roupa rota e furos na sola do calçado, uma freira falava no megafone: “Você aí, Vania, já para a fila das relaxadas”. Na hora da leitura a situação não melhorava. Apavorada, se confundia e era chamada de “burra”. Os gritos da religiosa eram acompanhados de reguadas na palma das mãos. “Não é preciso dizer que odiava ir para a aula. Eu ia me agarrando em todas as árvores que via pelo caminho”.
Um dia, o pai descobriu o que acontecia e decidiu transferi-la para a Escola Americana, um braço do Novo Ateneu, na Vicente Machado. A atitude da professora no primeiro dia de aula na nova sala transformou a relação de Vania com o ambiente escolar. De vestido branco, todo bordado de pequenas flores e joaninhas coloridas, sentada na última carteira da sala, ela foi convidada a bater o sino que anunciava o recreio. “Eu me levantei, peguei aquele pesado sino de bronze e o fiz ecoar bem longe, muitas e muitas vezes. Eu estava aceita e inserida. Eu era a felicidade em forma de gente”, conta. A meta a partir dali era ser a melhor aluna da classe. E foi assim, até na faculdade.
“Sou a soma de todos os meus escombros e me sinto feliz. Eu me reinvento a cada crise, a cada dia.”
Vania na vila
Antes dos 18 anos, Vania decidiu se dedicar ao magistério. Trabalhou como professora numa escola estadual da Vila Lindoia, então uma zona favelizada. Foi quando se deparou com as várias faces da pobreza. Lembra de ter visto, em três ocasiões, corpos de mulheres assassinadas. Também encontrava pelo caminho os alunos indo para a aula, sem agasalho e descalços. Resolveu ajudá-los com mais do que roupas (que também recolhia e distribuía). Reunia histórias de superação, de gente que vencia passando por cima das dificuldades. Anos mais tarde, Vania soube que a mensagem havia tocado ao menos um aluno. “Encontrei Pedro na rua. Ele me contou que tinha montado uma oficina mecânica e que graças às histórias que eu contava acreditou que poderia mudar a própria realidade.”
Para continuar contando histórias e conhecendo gente, escolheu cursar Jornalismo. Já no primeiro ano de faculdade, a turma foi desafiada pelo professor Mussa José Assis, então editor do jornal O Estado do Paraná. O aluno que se saísse bem em diagramação ganharia um estágio. Vania achava a disciplina chata, mas decidiu se empenhar. Não deu outra. Quando recebeu a notícia de que havia conquistado a vaga, avisou que precisava era de um emprego. Alguns anos antes de mulheres ameaçarem queimar sutiãs no Miss Universo, em 1968, Vania já agia como uma feminista. Quando foi questionada sobre quanto queria receber de salário, não titubeou: “O mesmo que os homens”.
Foi a primeira mulher a trabalhar na redação – a jornalista pioneira Rosy de Sá Cardoso, ainda hoje em atividade na Gazeta do Povo , à época entregava no Estado os textos que produzia em casa, expediente comum às repórteres. Nem banheiro feminino havia no jornal. Francisco Camargo, veterano repórter de Curitiba, recorda a estranheza que causou a presença de uma mulher naquele meio masculino.
Vania trabalhava como diagramadora à noite, estudava de tarde e continuava dando aulas de manhã. Mas ela queria escrever e convenceu Mussa, morto em 2013, que podia fazer, de graça, um suplemento para crianças, O Estadinho. Daí para o mundo das reportagens foi um pulo. A primeira entrevista foi com a atriz Nathalia Timberg, preparando-se no camarim para uma apresentação no Teatro Guaíra. Daquela época, guarda também recordações de uma reportagem com o músico Lápis. O título foi: “Fino, comprido e negro: Lápis”. O cantor ficou tão feliz que foi à casa de Vania fazer uma serenata. “O meu pai o tocou de lá”, lembra.
Encontro com João
Foi num lance de sorte – acaso ou destino? – que Vania conheceu o marido, o advogado João Carlos von Knüppeln Almeida. Em 1970, o carro dela enguiçou na Emiliano Perneta e ele se aproximou para ajudar. “Eu encontrei um homem bonito, inteligente, brilhante e sedutor no meio da rua, em uma situação crítica”, resume. Vania tinha apenas cinco anos a mais que o filho mais velho de João. “Era uma festa. Eu brincava com eles e namorava o João”, conta. Virou a “boadrasta” dos três enteados, frutos do primeiro casamento do advogado.
Mas Vania queria o próprio filho. Ainda no início da gestação, descobriu que estava com toxemia gravídica. Foi orientada a abortar. “A vida é o bem maior, junto com a liberdade. Eu era responsável por aquela criança e queria muito ser mãe.” Lembrou do livro que ganhou do pai sobre a história do médico humanista Albert Schweitzer, que mostrava que se o cérebro pode matar um corpo são também tem o poder de curar um corpo doente. Ela se apegou à fé e está entre os casos raros de gestações tão complicadas que foram levadas até o fim com sucesso.
Mesmo depois que João ficou viúvo, Vania não quis se casar. Não gostava da ideia de “posse” e não queria que outro laço, além do amor, os prendesse. Um padre tentou dissuadi-la. “Caso no dia em que o senhor me apresentar o padre que uniu Adão e Eva”. Assim como o pai de Vania, João também oscilou entre momentos de muita fartura e de grandes dificuldades. A casa vivia cheia de artistas e intelectuais. Advogado influente e comentarista de rádio, no dia em que morreu, em 2000, João ganhou um programa dedicado inteiramente a ele na CBN.
A repórter
Às gargalhadas, Vania conta da vez que literalmente parou o bairro de Santa Felicidade. Preocupado com intoxicações alimentares recorrentes, o então secretário de Saúde Oscar Alves chamou uma reunião com os donos de restaurantes. Um confessou que a comida que ficava na mesa era requentada e voltava para os próximos clientes, cheia dos perdigotos dos comensais anteriores. Vania fez a matéria. A repercussão foi tanta que o secretário determinou que todos os estabelecimentos fossem fechados por uma semana, até que os funcionários passassem por cursos da Vigilância Sanitária.
A jornalista também carrega a sina de ser a última a entrevistar algumas das personalidades paranaenses. Foi assim com o artista plástico Poty Lazzarotto, morto em 1998. Ela conversou com ele para um livro que estava fazendo, juntamente com outros jornalistas, sobre histórias de Curitiba. No dia, Poty rabiscou uma estação-tubo e deu de presente a Vania. O quadrinho está entre as centenas de pinturas e retratos pendurados nas paredes da casa dos Welte. Ao relatar esses e outros encontros, beira o infinito. Por pouco, por exemplo, a jornalista não se tornou o braço direito da médica Zilda Arns na Pastoral da Criança, iniciada em 1983. Davam-se bem, falavam a mesma língua - inclusive no que diz respeito à distribuição de pílulas anticoncepcionais no sistema público de saúde. Zilda o fazia, mesmo sendo irmã de dom Paulo Evaristo Arns.
A jornalista recorda o quanto aprendeu com as pessoas que entrevistou. Foi uma batalha convencer dona Flora Camargo, viúva do ex-governador Bento Munhoz da Rocha Netto, a falar. “Com ela, infelizmente já falecida, aprendi a força da determinação”. Ao perguntar de onde Flora tirava, aos 90 anos à época, tanto viço e juventude, a ex-primeira-dama respondeu que, de manhã, depois de orar e fazer a maquiagem, ia para a frente do espelho e dava o seu grito de guerra: “Flora, não morra enquanto você não morrer.”
Depois de fazer uma reportagem de repercussão, questionando o que era feito com as doações à santa popular Maria Bueno, Vania foi instigada pelo editor-chefe do jornal Hora H, Cícero Cattani, a reviver o caso conhecido como o das “Bruxas de Guaratuba”, ocorrido em 1992, até hoje não elucidado, tornando-se um dos mais extensos e ruidosos da crônica policial brasileira. Vários questionamentos apontando falhas na investigação tinham sido publicados na Gazeta do Povo, mas havia a percepção de que era possível avançar mais.
Num primeiro momento, Vania se negou. “Não lido com energias baixas.” Mas ao perceber que estava julgando sem conhecer o caso, decidiu que precisava ir mais a fundo. Listou perguntas sem respostas, falhas e tudo que parecia anormal ou injusto. “Foram 17 matérias que mostravam os furos, os erros e indicavam novos caminhos.” Em 1996, o trabalho lhe rendeu um dos prêmios mais prestigiados do jornalismo – o Esso, na categoria Regional Sul. Ela escreveu um livro, até hoje não publicado, contando os detalhes da história.
A outra face de Vania Mara Welte
Ela é jornalista há quase 50 anos e tem história pra contar. Fez do jornalismo sua vida, assim como fazer o bem ao próximo. A outra face de Vania Mara Welt é ajudar o ser humano, e assim, vai guardando histórias na cabeça, no papel, e lembranças que ganhou no decorrer da vida.
+ VÍDEOSA sobrevivente
Exames mostram que Vania já teve mais de nove AVCs. Aos poucos, os acidentes vasculares cerebrais foram lhe custando parte da visão, da audição e criando dificuldades na fala. O derrame mais forte foi o primeiro, em 2003, e afetou o cerebelo e, momentaneamente, a capacidade de andar. Recebeu do médico o diagnóstico de que poderia morrer a qualquer momento. Soltou uma risada e lembrou de que ele também podia estar perto do fim. Noves fora, dá vivas ao Sistema Único de Saúde. Defende que é muito bem atendida no Hospital das Clínicas. “Sou a soma de todos os meus escombros e me sinto feliz. Eu me reinvento a cada crise, a cada dia.”
Esteve mais vezes às voltas com a morte. Uma recém-contratada empregada ouviu um telefonema em que jornalista falava que ia ao banco buscar joias penhoradas. Quando voltava do supermercado com as compras, foi atacada por um homem. “Ele me atingiu na cabeça com uma pedra e eu fui ao chão. Ele se abaixou e puxou a bolsa. Eu reagi, segurei a bolsa, pedi que a empregada me ajudasse, mas ela ficou parada, me olhando”, lembra.
O bandido deu pontapés, pisou com força na garganta e no rosto. Arrastou-a pela rua. Vania gritou por ajuda aos moradores. Clamou a Deus. “Do chão, eu vi, no alto de uma varanda, uma porta se abrir e um jovem saltar lá de cima para o jardim e gritar: “Larga ela”. O agressor fugiu levando a bolsa com dinheiro e as joias. “No hospital, lembro de ouvir um médico dizer: ‘Atenda aquela moça que foi atropelada. Foi por um caminhão?’” A empregada nunca mais foi vista.
Último ato? Não. No fim de década de 1980, junto com outras quatro pessoas, doava sangue em grande quantidade para o Centro de Produção e Pesquisas de Imunobiológicos, para fazer soro homólogo antirrábico. “Descobriram que nós cinco tínhamos enorme defesa contra a raiva animal e o soro feito com o nosso sangue era mais seguro para as pessoas que precisavam tomar o soro contra a raiva. O que era fabricado com sangue de cavalo traz riscos de paralisia”. Tempo depois o programa foi encerrado, segundo ela por falta de recursos, mas ela chegou a vir do Rio de Janeiro somente para a doação. Vania e as surpresas andam de braço dado.
A jornalista Maria Amélia Lonardoni, do Ministério Público, e parceira de trabalho de Vania, por tempos, na ONG Ciranda – ligada aos direitos da infância – bem a define. É um tipo que compra briga, que não faz corpo mole, que se coloca no lugar do outro. Mostra-se tão forte para se colocar contra o mundo – e não há exemplo melhor do que sua decisão em reportar Celina e Beatriz Abagge, chamadas de “As Bruxas de Guaratuba” – quanto para abraçar o que é imperceptível para a maioria das pessoas. Vai do pequeno ao grande gesto, sem escalas. Pode ser vista carregando caixas numa mudança, para ajudar amigos, e combatendo a exploração sexual de adolescentes na Tríplice Fronteira, para citar uma de suas muitas atividades em prol dos direitos humanos.
“Detalhista e atenta ao que passa batido, Vania corre o risco de ser incompreendida num mundo pautado pelas relações objetivas, pela praticidade e pela superficialidade”, observa Maria Amélia. “Ela põe fogo no rabo das pessoas para que façam alguma coisa”, costumava dizer outra parceira na Ciranda, a jornalista Lilian Romão. É a regra da vida que aplica para si. Tempos atrás, sua labrador Pipoca, 30 quilos de pura energia – tormenta das diaristas, que pediam a conta, assim que a conheciam– foi atropelada, ficou paralítica. A dona fez da cadela uma celebridade dos hospitais veterinários, tantos frequentou. Colocou-a na cadeira de rodas, na fisioterapia e, finalmente, em pé. É uma crônica doméstica, mas se repete na esfera pública.
A propósito, Vania perdeu o telefone do policial militar que adestrou Pipoca, ensinando-a a respeitar de pés de mesa a para-choques de automóvel. Onde quer que o benfeitor esteja, ela pede que mande notícias. Pista - “o PM estudava Teologia”. Ela observa tudo. Difícil passar em branco por Vania Mara Welte.