Naquela quarta-feira, Nelson e Sueli Cortiano fizeram tudo sempre igual. Por volta das 8h30, ele a levou de carro ao trabalho. Partiram do Bairro Alto rumo à sede do “Criança Quer Futuro”, projeto da Fundação de Ação Social (FAS), na Rua Rockefeller, Rebouças. Na Linha Verde, ao ver uma aeronave que se preparava para aterrissar no Afonso Pena, Nelson repetiu o gracejo de costume. “Olhe, o nosso avião”. Adorava viajar. Despediram-se com abraço seguido de beijo, ritual de três décadas de casamento. Ele deu partida, rumo à novena do Perpétuo Socorro, no Alto da Glória.
SUELI [E NELSON] CORTIANO
A assistente social Sueli Cortiano, 52 anos, nasceu em uma família de sitiantes, no Norte Pioneiro. Aos 14 anos, trabalhava como vendedora numa loja de roupas para crianças, na Rua Monsenhor Celso. Aos 17, casou-se com Nelson Cortiano, então futuro oficial da PM. Tiveram dois filhos, dos quais cuidou como uma típica dona de casa. Até que decidiu trabalhar fora.
Não queria um bico, queria fazer diferença. Por uma década administrou um CMEI na Vila Trindade, Cajuru. Passou por outras unidades. A partir de 2005, tornou-se um dos timoneiros do projeto “Criança Quer Futuro”. Nessa etapa da carreira, o noticiário policial quebrou sua vidraça. Nelson foi assassinado. “Por que comigo?”, perguntou Sueli. Ela é coordenadora do Núcleo de Atenção a População em Situação de Rua, da Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS).
Ao entrar no seu gabinete, Sueli viu que um quadro tinha se espatifado no chão. Nas horas que se seguiram, Nelson não ligou no celular para perguntar se comprava um ou dois quilos de peixe no Mercado Municipal, coisas assim, pretexto usual para falar com a mulher durante o expediente. Ela estranhou, mas seguiu sua lida junto à centena de meninos de rua que ocupava o pavilhão onde atuava como assistente social.
As horinhas de sossego só vieram no final da tarde, assim que a tevê anunciou ... o Pica-Pau. Batata. A inimitável risada do personagem de desenho animado tinha o poder de hipnotizar a gurizada. Sueli aproveitou para aviar pareceres sobre um dos adolescentes atendidos – a juíza estava à espera da papelada. Olhou no relógio. Nelson devia estar a caminho, para buscá-la. Pediu ao telefone que lhe desse um tempinho. “Tudo bem?”
Tudo – o atraso dela fazia parte da rotina dele. Aproveitou para estacionar na Rua Visconde de Abaeté, onde até as pedras o conheciam. Trocou umas palavrinhas com um pastor, seu amigo, cumprimentou os conhecidos que viu na calçada e entrou na farmácia para dar um alô a quaisquer. O local estava sendo assaltado. Havia lá uma balconista grávida. E ele ali, a tal da pessoa certa no local errado, como na mais clássica das tragédias.
Nelson Walter Cortiano tinha 56 anos, era sargento aposentado da Policial Militar – um homem treinado para a guerra, se preciso fosse. Com perícia, imobilizou um dos dois envolvidos. Havia um terceiro no carro da fuga, todos na faixa dos 20 anos A campanha não teve final feliz. Atingido por uma bala no peito, Nelson tombou, corpo para fora da loja, em plena hora do rush. Em 50 segundos os estilhaços da bala o mataram. Era 18h05 de 18 de abril de 2012. Faz três anos no próximo sábado.
“E se eu não tivesse me atrasado?”, pensou Sueli, ao chegar à cena do crime. Multidão em volta.
***
Sueli Galvão tinha 15 anos quando “segurou a vela” para a irmã mais velha, Luzia, num baile na CEU – a Casa do Estudante Universitário. Nelson estava lá. Tinha 22 anos e era o que as gurias chamavam de “um pão”. Tirou-a para dançar. Olhinhos reviraram. Ao voltar para casa, tinha cruzado um oceano. Convertera-se na guria do Bairro Alto caída por um moço de família italiana da Água Verde.
O frisson adolescente acabaria ali não fosse, dias depois, Nelson ter vencido os 11 quilômetros que o separavam da “pequena” que conheceu na matinê. Tinha um Fusca amarelo. Bateu na porta de seu Manoel e dona Maria Pereira Galvão. Queria pedir a caçula em namoro. Não foi recebido com licores de figo. Ouviu que se tratava “de uma criança”. Fazia sentido: no meio dos rapapés, Sueli pediu licença e foi dormir. A mãe e o candidato ficaram a sós.
Maria tinha pencas de razões para fazer um inquérito. Nascida numa família de sitiantes remediados de Siqueira Campos, no Norte do Paraná, provou na mocidade a fortuna do ciclo do café. Provou também o amor, que atendia pelo nome de Manoel Galvão – um tipo que tocava modas caipiras, pródigo em arrancar suspiros das brejeiras e das sestrosas. Um boêmio. Contra todos, Maria e Manoel se casaram, tiveram três filhas e pencas de desacertos, como os parentes profetizaram que iria acontecer. A inclemente temporada de chuvas de 1963 se encarregou do resto, levando uma promissora colheita, o dinheiro e os combinados do casal.
Migrados para Curitiba, Manoel se empregou no Açúcar Diana, sem muito sucesso. Morreria jovem, aos 50 anos. Maria ganhava o pão fazendo limpeza, atividade a anos-luz das rendas e sianinhas do passado. Não podia se dar ao luxo de errar. Usava de mão firme para que Luzia, Sirlei e Sueli tivessem sorte maior. Que o sujeito não se esquecesse disso, a cada vez que estacionasse na porta dos Galvão.
Em 1979, antes mesmo de Sueli completar 18 anos, Nelson lhe colocou anel no dedo. A cerimônia foi numa capela, onde hoje está a UniBrasil, na “Konrad Adenauer”, rua que seria o rio da biografia do sargento Cortiano. Nela se uniu à mulher a quem amou. Ali serviu por 25 anos na Polícia Montada. Ali acabou por ser velado, num adeus dos mais concorridos – 2,5 mil pessoas se acotovelaram no Cemitério Vertical. Sueli pediu que os canais de tevê fossem embora. Era realidade demais para tamanha ficção.
Os dias felizes
O casamento serviu como luva a Nelson e Sueli. Os filhos Liveston e Piero vieram cedo. Os quatro, mais dona Maria, gostavam de receber, de fazer longas viagens de carro, de estar juntos. A aura de “família de Frank Capra”, o cineasta otimista da Depressão Americana, sobreviveu ao gosto de Sueli por reviravoltas. Enérgica, de raciocínio rápido, ativa, dona de uma beleza sertaneja e sem truques – um tipo que parece imune à preguiça –, preparou mudanças assim que percebeu Piero crescido o bastante. Avisou Nelson que ia trabalhar fora. Ele não saiu saltitando pelo jardim, mas a apoiou, como de regra.
Aprovada num concurso municipal, Sueli agora batia cartão num centro infantil da Vila Trindade, então um encrave pobre e violento do Cajuru. Nunca pegou piolho. Nunca teve medo – exceto de dirigir –, mas era como se o chão se abrisse a cada jornada: não há drama humano que não desembarque numa creche de periferia. Àquela altura, pensava juntar dinheiro para comprar um automóvel . Mas que nada.
A outra face de Sueli Cortiano
Muito dedicada à profissão, Sueli Cortiano mostra sua face caseira e dedicada à família e a sua mãe.
+ VÍDEOSSueli não recorda o momento em que decidiu que queria modificar também a vida dos outros. Mas lembra bem de ter visto dona Maria “dando um jeito” para fazê-lo, mesmo debaixo da penúria trazida pelas geadas. É uma mulher generosa e tarefeira, qualidades que não esmorecem debaixo do peso de seus 78 anos. O jeitão de animadora de quermesse, da mãe, dava comichões à filha. Eram feitas do mesmo barro. Entre quebrar uma pedreira e se esparramar numa rede, quebram a pedreira.
O primeiro sinal de que se sentia chamada para uma obra veio ainda nos tempos de dona de casa. Cozinha tinindo, abalava-se para a Pastoral da Família, onde dava aulas de crochê. “A pastoral se tornou minha escola”, resume. Nos tempos em que foi diretora de CMEI, a altíssima voltagem humanitária só fez aumentar. Quando numa de suas implacáveis limpezas de gavetas encontrou um fôlder do curso de Serviço Social da Faculdades Espírita, viu um sinal. Repetiu seu mantra pragmático: “Nada acontece por acaso”. Sem alarde, fez vestibular e ganhou uma vaga no noturno. Nelson, claro, concordou.
Sempre que podia, sargento Nelson a buscava na “Espírita”. A rota, agora, ia do Santo Inácio ao Bairro Alto. Depois do beijo e do abraço, dava tempo para ela lhe contar das aulas de sociologia, das causas da miséria e da fragilidade das políticas públicas. “Eu saí do senso comum no que diz respeito à pobreza e à violência...” Cada semestre mais afiada, sua fala contrastava com a rigidez dos espartilhos militares do marido. Na hora da diferença, é quando muitos casamentos acabam. O deles se fortaleceu.
Influenciado pela empolgação daquela universitária tardia, Nelson se engajou nos projetos de direitos humanos da PM. Por alguns anos, o dial de um e outro seguia as mesmas frequências. Até que ele passou a contar os meses para a aposentadoria e ela fazia um mergulho cada vez mais radical. Tinha virado a “Sueli da FAS”, uma referência. Sem problemas. Ele fazia as compras da casa, cumprindo, talvez, a promessa que fez à dona Maria no dia em que pediu a filha em namoro. Cuidava dela enquanto ela cuidava do mundo.
No mais, sempre teriam os telefonemas bobos, as caronas, uma maçã verde de presente, os planos da próxima viagem de férias. “Natal?” A capital do Rio Grande do Norte era a preferida. No domingo antes de morrer, brincou com uma cunhada que queria suas cinzas jogadas lá. Ainda estão do lado da cama do casal – mas têm destino certo: as águas potiguares. Sem problemas: Nelson sabia esperar.
Depois daquele dia
Sueli Cortiano, agora viúva, pediu “licença nojo”. Quando voltou, mês depois, ganhou novo posto. Ia lhe fazer bem. Trabalharia na Central de Resgate, o popular “assistência aos necessitados”. Saía a gurizada, entravam os bêbados, drogados, retirantes, os sem destino que faziam fila na Rua Conselheiro Laurindo. Parte do problema resolvido, restava “o outro”. Ficou à espera de um sinal. Encontrou-o a bordo da Kombi da FAS.
Ao passar na frente do quartel do Exército, na Silva Jardim, viu o carro usado no crime, com a placa “vende-se”. Fez o diabo. Fotografou, levantou as multas, esparramou documentos na mesa dos homens e mulheres da lei: o pai do condutor do veículo era um fardado. Qualquer um podia prevaricar, menos ele, prestando-se a tamanho descaso com a dor alheia. Tinham se passado seis meses – a solução do assassinato espreguiçava na repartição: um preso, dois soltos.
Melhor que um sinal – outro sinal. Sueli foi à novena do Perpétuo Socorro. No banco da frente, pasma, viu o pai militar e o filho acólito, aquele que conduziu o veículo usado no latrocínio. Alvará de soltura no bolso. Cercou-o em meio à muvuca de fiéis. Depois lhe pôs diante das fuças o santinho da Missa de Sétimo Dia de Nelson. “Sabe quem é esse homem?” Pois ela mesma respondeu. Apresentou o morto ao vivo, até ser interrompida por uma sobrinha – ela queria contar que estava grávida, depois de tantas tentativas. As intenções de novena de tio Nelson naquele 18 de abril de 2012, tinham sido ouvidas...
Sueli reagiu. Procurou a imprensa, autoridades, quem mais. Escreveu uma carta para a ministra Maria do Rosário. Tinha de se coçar para fazer Justiça. Deu resultado. Um dos assaltantes, foragido, foi capturado. Quer mais, não nega. Ao dilema inicial “se não fosse aquela meia hora”, sobreveio outro: “Se acontece o mal com as pessoas com quem trabalho, por que não comigo?” Suas convicções não foram abaladas. Permanece diante da dor dos outros.
Cláudia Silvano , advogada, coordenadora do Procon Paraná
Quanto às mudanças das quais tanto gosta, em três anos ajudou a criar abrigos para mulheres, LGBTs, idosos e índios. Conhece-os pelo nome. Mora com dona Maria. Tirou carteira de motorista. Sua rota – do Bairro Alto ao Campo Comprido, sede da FAS. Vai de ônibus ou de carona. Em definitivo, não gosta de dirigir.
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