Ety no "cordão umbilical" que liga o antigo Hospital de Criança César Pernetta ao moderno complexo Pequeno Príncipe| Foto: Jonathan Campos

Em família

Hoje, 5 de setembro, Ety comemora 51 anos de casamento com o arquiteto Luiz Forte Neto. Não fosse o apoio do marido, talvez tivesse fraquejado diante das dificuldades. Também foi numa conversa com ele que surgiu o nome do novo hospital. Fã de Saint-Exupéry, ela ficava encantada com a metáfora do baobá, símbolo dos vícios que, se não forem podados, tomam conta da vida da pessoa. Daí a inspiração de Ety.

O Hospital Pequeno Príncipe foi inaugurado em 1971, num terreno anexo ao Hospital César Pernetta. Ali, Ety conseguiu fundir o pensamento de Saint-Exupéry com os ideais de Che Guevara na esquina da Silva Jardim com a Desembargador Motta. Em 2003, a estrutura ganhou as Faculdades Pequeno Príncipe e, em 2006, o Instituto Pelé Pequeno Príncipe. Assim, o complexo fechou a tríade ensino-pesquisa-assistência.

As três filhas de Ety cresceram dentro do hospital e hoje mantêm o legado da mãe. A mais velha, Ety Cristina, é diretora-executiva do hospital, Luiza Tatiana é diretora de pós-graduação da faculdade e a caçula, Patrícia, é diretora-geral da faculdade. Agora, a neta Antonella também trabalha no hospital, como analista de comunicação.

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Ety e Luiz Forte no momento em que subiram ao altar, há 51 anos
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Ety Gonçalves Forte, artista plástica e ceramista, dedicou dois terços de seus 71 anos à associação que consolidou o complexo Pequeno Príncipe como referência em pediatria no Brasil. No final da década de 60, era discriminada pelas madames por ser artesã e discriminada pelos artesãos por ser madame. No fim, a acolhida dos curitibanos foi melhor do que o esperado. Pelo seu legado, recebeu o título de cidadã honorária de Curitiba e do Paraná.

Eram muitas as crianças internadas, cada uma com seu lamento, mas como ignorar o choro tíbio vindo da enfermaria? Adão contava 11 anos e o tumor no cérebro já lhe havia cobrado a visão. Não parecia um pranto apenas, antes uma súplica. Ety entendeu a intensidade do clamor.

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— Quer alguma coisa? Um brinquedo?

— Não! Eu quero que minha mãe venha me ver.

Olhos úmidos, ela se retirou. Prostrou-se de joelhos em frente da seringueira no pátio do Hospital Pequeno Príncipe e, em tom até provocativo, cobrou de Deus uma iluminação. De repente, uma ideia. Colocou uma fralda de pano na cabeça, foi à enfermaria, pegou Adão no colo e se pôs a falar baixinho, quase um sussurro.

— Filho, mamãe chegou.

— Por que você não tá comigo?

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Num fio de voz para não se delatar, desviou da pergunta e retomou as palavras de alento em nome de uma mãe cujo paradeiro ninguém sabia.

— Mãe, tô muito cansado.

Ety apertou-o contra o peito e, fala embargada, se manteve firme no disfarce.

— Você vai morar com os anjinhos. Um dia a mamãe vai lá morar com você.

— Mãe, tô muito cansado.

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Ao cabo de alguns minutos, adormeceu. Ela o devolveu ao leito e se retirou, trêmula. Em seguida, bateram à sua porta: Adão morreu. Ety correu à seringueira. Agradeceu a chance de devolver a mãe àquele menino antes de ele partir.

Essa foi só uma das múltiplas vivências de Ety Gonçalves Forte desde 1966, quando assumiu a Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro, mantenedora do Hospital de Crianças César Pernetta. Hoje o complexo Pequeno Príncipe, referência no tratamento de alta complexidade, tem o maior hospital pediátrico do Sul do Brasil e oferece o maior número de especialidades no país. Fez muito a moça do interior paulista recém-chegada a Curitiba com o marido, o arquiteto Luiz Forte Neto. Mas não foram fáceis as coisas.

Discriminada quando criança por ser filha de pais divorciados, mergulhou nos livros achando que assim poria fim ao problema. Veio daí a vaidade de provar-se capaz, tipo "vocês vão ver um dia". Enfim, o dia chegou. Não sabia nada sobre entidades de crianças doentes, mas aceitou o desafio de presidir a associação. A posse foi um evento. Compareceu chiquérrima, maquiada, sapato com lesar, blusa rosa de babados, cabelo em coque à moda da época. O discurso ia dos "píncaros da glória" aos "arcanos do infinito". Contudo, depois da festa, a realidade.

O médico Ivan Fontoura acompanhou-a num tour pelo hospital. O susto na enfermaria foi só o prelúdio do choque na ala de queimados. Ela prendeu o cabelo, tirou o sapato de salto alto e o segurou na mão. A ficha caía naquele instante. Aquelas crianças não tinham nada. Sentiu-se tomada de uma vontade tamanha que se achou em condições de mudar aquilo tudo. Voltou para a sala onde permaneciam as pessoas que a empossaram. Ainda sob efeito das imagens da enfermaria, anunciou:

— Só aceito se puder dar alta às crianças em condições para isso e não receber nenhuma outra, a não ser em caso de emergência. Quero começar limpando o hospital.

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Olhares de desconfiança. Ety rompera o protocolo. Fora convidada para organizar festas, eventos, chazinhos, mas não era isso o que queria. Não depois do que acabara de ver. Precisava fazer algo para mudar aquilo de verdade. Ao fim de uma pausa, recebeu um ok. Logo poria em curso sua revolução. Uma revolução cujo lema ela foi buscar nos ideais de Che Guevara. Fervia-lhe na mente as frases do ídolo: "Ser revolucionário é fazer sua própria revolução todos os dias" e "o verdadeiro revolucionário é movido por grande sentimento de amor."

Estava na hora de pôr em prática o aprendizado da militância socialista dos tempos de adolescência no interior de São Paulo. Pediu dinheiro ao marido e logo seu Fusca estava lotado com dezenas de vassouras, rodos, água sanitária, escovas, panos de chão. As freiras se entreolhavam boquiabertas diante da mulher que, de joelhos, esfregava o chão. Juntaram-se a ela e limparam o piso, pintaram berços, fizeram roupas de cama, emendaram cobertores. A revolução estava em curso, e ainda assim as surpresas não cessavam.

Certa manhã, Ety arrumava na ala de queimados a cama de uma menina cujos olhos refletiam um sofrimento indizível. Ao manusear os lençóis, algo se mexia na palha úmida do colchão. Eram vermes. Quase todos estavam podres e infestados. Santo Deus, as crianças dormiam sobre vermes! Sem pensar, telefonou para uma fábrica de colchões de Araucária e encomendou 120. O pagamento? Seria à vista se recebesse tudo em dois dias. Um blefe. Não dispunha de um tostão sequer. Mas as crianças não podiam continuar dormindo em cima daquilo.

Dos colchões velhos fez uma grande fogueira no pátio do hospital. O episódio rendeu aborrecimentos, mas teve um desfecho inusitado. A repreensão veio rápida numa das antessalas do governo onde Ety buscou ajuda para pagar a conta. O secretário de Saúde esbravejava alto nas tamancas. Como podia se dar o luxo de queimar colchões quando o estado estava contendo despesas? Diante do choro convulsivo, o chefe de gabinete se retirou. A reprimenda seguia a verbo solto quando tocou o telefone. "É para você", disse sem graça o secretário.

Do outro lado da linha, o deputado Aníbal Khury, homem mais influente da política paranaense à época, pedia que parasse de implorar pois já havia arranjado as coisas. O cheque estava pronto, bastava mandar o recibo ao Departamento de Compras do Estado. Os colchões chegaram em dois dias. Maria do Socorro, a menina queimada, morreu dois meses depois. Recebeu carinho, teve conforto e dignidade no fim da vida. Com ela, Ety aprendeu a ter coragem.

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A mesma coragem ela teve ao encomendar um respirador para outra menina internada em estado grave. Mandou entregarem o melhor. Nem perguntou o preço, pois não tinha dinheiro mesmo. Explicou a situação a um industrial, antigo colaborador. O homem emudeceu por um instante, depois perguntou quanto era. Ety não disse, só passou o telefone para ele mesmo descobrir. Ele a chamou de insana umas quantas vezes, mas no fim pagou a conta. Dias depois, um menino atropelado chegou ao hospital. Foi salvo pelo respirador. Era filho do industrial.

Ety nunca teve pudor de pedir as coisas. E nada daquela história de que se é para criança pobre pode ser um carrinho sem roda, uma boneca sem cabeça. Um brinquedo pode ser usado, mas tem de ser inteiro. Senão, como vai brincar? "O que não serve para as crianças de vocês, não serve para as nossas crianças", avisava sempre. Mas o trabalho num hospital não é só contar historinha, dar brinquedo e comida. E há sempre as crianças, cada uma com sua doença, sua individualidade. Foi uma in­­diazinha que a ensinou isso.

A menina chegou tomada de piolhos. Seguiram o procedimento padrão: máquina zero. Como ia saber do significado do cabelo para os índios? A indiazinha ficava encolhida, triste, recusava comida. Em desespero, Ety fez de tudo para minimizar o estrago. Tentou deixá-la mais próxima de suas referências: comprou uma esteira, arranjou um vaso de barro, oferecia farinha de mandioca, milho verde. Aos poucos a menina foi se recuperando, até um abraço selar a amizade.

Outro episódio revela o desprendimento de Ety à frente de um hospital cujo único patrimônio era suas crianças. No meio do alegre alvoroço durante uma das reformas no hospital, ouviu um chorinho manso e permanente. Sentou-se ao lado da cama.

— Qual o seu nome?

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— Cabeção — respondeu o menino portador de hidrocefalia.

— Por que está tão triste?

— Porque todos os meninos vestem camiseta e eu não posso porque não passa na minha cabeça.

— Ó, Cabeção, é hoje! Vou almoçar. Vou demorar um pouco, mas vou trazer o que você quer.

Dito isso, Ety saiu. Passou numa loja e comprou seis camisetas coloridas, dois números maiores do que o do menino. Em casa, cortou as costas da camiseta do pescoço até a barra. Na máquina, fez a costura e pregou botões. De volta ao hospital, vestiu nele todas as camisetas. A cada uma delas, Cabeção gritava para os demais:

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— Olhem, tenho camisetas!

Nos seus incontáveis exemplos, Ety deixa um ensinamento: é arcaico tratar doenças e não pessoas.