Por ocasião da virada do milênio, Álvaro da Silva chorou. Não foi culpa dos fogos de artifício nem da proximidade da Era de Aquarius. Chorou porque viu a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio com lotação completa – contava 400 pessoas, mais a fila na porta. Havia muito não acontecia. Em cada palmo dos 870 metros quadrados da casa tinha gente balançando as cadeiras, ao som da banda Serenô, como se não houvesse amanhã.
Álvaro da Silva
A Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio, no bairro São Francisco, completou este mês 127 anos. Para pesquisadores, é a terceira agremiação negra mais antiga do país – a primeira fica na Bahia, a segunda no Rio Grande do Sul.
São muitos os encantos da “13”. Surgiu no ano da Abolição, 1888, pondo por terra algumas crenças propaladas sobre o “Paraná Branco de Neve”. Fica no “ponto zero” da Alameda Princesa Isabel. Teve sócios alforriados, letrados, ligados ao anarquismo, à luta operária e, suspeita-se, à maçonaria.
Mas a “13” não é feita só de glórias. Como as demais sociedades étnicas, provou da decadência. Em 1995, quando foi eleito para o cargo de presidente, o aposentado Álvaro da Silva temia pelo futuro do mais importante símbolo de resistência negra do estado. Viu que a única saída era abrir a casa à gente da música e da arte em geral. Deu certo. De 15 anos para cá, a sociedade foi descoberta por jovens alternativos, que circulam por ali todos os dias. Abraçaram a “13” como uma causa política e libertária. “A cultura salvou nossa sociedade”, avisa Álvaro, e firma como verdade.
A maioria dos que estavam ali, Álvaro nem imaginava de onde vinha – era uma moçada bem diferente da que conheceu nos tempos de boemia, quando se acabava na Escola de Samba Colorado – a mítica agremiação da Vila Tassi, Capanema, faculdade na qual se graduou. Mas não importava: bem-vindos, adoráveis estranhos. Aqueles “descolados”, como os chamavam, tinham salvado a “13” de baixar as portas. Euclides da Silva, seu pai, podia enfim descansar em paz.
Na próxima semana
Wanderley Lopes e Eleonora Greca,
bailarinos e ativistas culturais.
Euclides da Silva, morto em 1995, faz parte de uma dinastia – a dos homens ilustres que presidiram a vetusta Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio. Estima-se que a “13” é a terceira agremiação de negros mais antiga do país. Uma das atas indica que teria sido fundada em 3 de maio de 1888, dez dias antes de a princesa Isabel assinar a Lei Áurea. Outra fonte indica 6 de junho de 1888, 25 dias depois do fim da escravidão. Não importa – é uma data surpreendente tal e qual. De lá para cá, qual uma monarquia, não mais do que cinco homens passaram pelo comando da instituição. Somando os tempos de diretoria e o de presidência, Euclides ficou 40 anos na liderança da sociedade; 40 anos que pesavam nas costas do filho Álvaro.
A realeza de Euclides é anterior a seus tempos de monarca na “13”. Vindo de Itajaí (SC), tornou-se um dos barbeiros mais populares da capital a partir da década de 1950. Seu trono, uma cadeira de reluzente no Salão do Raul, na “paralelepípeda” Rua Saldanha Marinho. Sentavam-se ali políticos e capitalistas, árabes e judeus que tocavam o comércio da Tiradentes. Apreciavam a destreza do profissional no manuseio da navalha e da tesoura, mas sobretudo o asseio. “Era um cara estiloso, andava só no cipó”, resume o filho. Apelidaram-no, por isso, “Garoto da Saldanha”. Tratava-se de um distinto cavalheiro, de lendária elegância, capaz de suscitar os mais ardorosos adjetivos. Segundo consta, seu caráter era tão reto quanto o vinco de suas calças de tergal.
Os sete filhos de Euclides acabam sendo conhecidos como... “os filhos de Euclides” – na Saldanha, no Juvevê – onde os Silva passaram alguns anos – e na Vila Nossa Senhora da Luz, para onde o barbeiro levou a família em 1966. Hoje, uma rua da vila, a antiga Perimetral Norte, o homenageia.
Álvaro, um dos mais novos da prole, fala com pouca paixão dos anos anteriores à morte do pai, quando lhe coube substituí-lo na “13”. Estudou no Colégio Professor Brandão, frequentou a Escola de Samba Não Agite, no Coritiba; casou cedo com Jurema, enviuvou mais cedo ainda, nove meses depois das núpcias. “Ela tinha asma”, lembra, sem mais. Trabalhou em de tudo um pouco – em fábrica de bolacha e fábrica de pincel. Foi vendedor. Casou-se de novo – com Jussara. Tem uma filha, Amanda Elisa da Silva do Prado, 27 anos, mãe de seus dois netos. Curtiria uma aposentadoria modesta na periferia – quem sabe iria sábado para o samba – não fosse o pai ter-lhe apontado o dedo: “Você vai me substituir na 13’”. Tremeu.
Estatuto da gafieira
A primeira vez de Álvaro na “13 de Maio” foi por volta de 1957. Tinha 10 anos e gostou do que viu. Àquela época, o “clube” era uma espécie de antecessor de sociedades de negros da classe média que vingariam no país, como a paulistana Sociedade Aristocrata, fundada em 1961. Ao mesmo tempo, funcionava como prima pobre de agremiações emproadas como o Thalia, Concórdia, Juventus, Dom Pedro II ou Duque de Caxias – para citar cinco das aproximadas 45 sociedades étnicas que animavam as matinês de Curitiba. Quem quisesse outra opção de lazer, que se contentasse em paquerar no grupo de jovens da paróquia.
As instalações acanhadas da “13”, com paredes meio-madeira-meio-alvenaria, contudo, eram compensadas pelo charme das gafieiras. Essas reuniões dançantes se tornaram disputadas a tapas. Como muitas namoradinhas não achavam o local adequado, os rapazes se beneficiavam da localização discreta, no inspirado “ponto zero” da Alameda Princesa Isabel, e chispavam para lá. Ali se refugiavam nos “50” os curitibanos entediados com as versões de Neil Sedaka; e, “nos 60”, os refratários às canções bobinhas da Jovem Guarda.
Se eram samba, e emoção, o que queriam, encontravam. Tanto que as senhoras da “13” obrigaram os maridos a baixarem um decreto: moça “de fora”, que frequentasse as gafieiras, não entrava em baile das famílias negras. Ninguém ousava desobedecer. E os bailes do petit comitê eram mesmo um luxo só. A sociedade estava longe de ser rica, mas sua gente vinha do funcionalismo público – como das fileiras da Rede Ferroviária Federal – caprichava nas perucas, nos vestidos longos bordados a lantejoulas e nos sapatos brancos. Como se diz hoje, era “afirmativo”.
A casa tinha uma orquestra, a “Guarani”, e crooners capazes de arrancar suspiros em série mesmo da ala mais conservadora das matriarcas negras. Era o caso do ex-jogador de futebol e cantor Darcy Rosa – “negro Rosa” para os vizinhos; negro Dumbo para os íntimos. Por essas e outras, de Ney Braga, Iberê de Matos e Omar Sabbag ao então iniciante Maurício Fruet, uma penca de políticos graúdos preferia a “13” a qualquer outro point [ou mesmo inferninho] da capital. Mais: sabiam o que deveriam fazer ao pisar naquele solo sagrado – cumprimentar negros da diretoria, Euclides entre eles.
Álvaro cresceu vendo o pai no centro da cena, impecável e galante como ele nunca tinha imaginado ser. “Não sou um dedo dele”, repete.
Depois da queda
Faltam dados sobre a ascensão e queda de “13”. “Combinamos que esse período é assunto do jornalismo, não da história”, brinca o advogado Thiago Oshino, 28 anos, líder de uma equipe de pesquisadores que nos últimos anos turbinou os estudos sobre a sociedade operária dos negros. Oshino e os seus viraram referência – mas estão com os olhos voltados para os enigmas que rondam a fundação da sociedade, nas barbas do movimento abolicionista do século 19. O próprio Álvaro se furta de explicar porque a sociedade foi minguando ao longo dos anos 1970, 1980 e 1990. É provável que ocorreu ali o mesmo que nas outras agremiações étnicas. Com a organização do antigo INPS, o caráter de amparo na viuvez oferecido pelas sociedades deixou de ser necessário. Acrescente-se que as opções de lazer se multiplicaram. Os famosos bailinhos do Thalia perderam a graça. As gafieiras do “13” também. “Algumas sociedades étnicas faliram por falta de uso... Estávamos no mesmo caminho”, comenta o presidente.
Euclides da Silva morreu em 1995, aos 76 anos. Foi velado dentro da “13”, com honras de rei Zulu, sendo levado em cortejo até o mítico jazigo da sociedade operária, no Cemitério Municipal. Álvaro viu o tamanho da carga – tinha de honrar o pai, ao mesmo tempo que impedir que as paredes do “13” desabassem, o que podia acontecer a qualquer momento. Daí ter chorado naquele dia do ano 2000, quando viu a casa cheia de gente e a reforma em dia.
De um sujeito de poucas ambições, passara num estalar ao posto de o cara que tirou da lona a Sociedade Operária Beneficente 13 de Maio. O contrário disso seria seu fim. Sabia bem o que significaria ser o sujeito que enterrou o mais importante símbolo da comunidade negra do Paraná. Não foi o que aconteceu, à custa de suor , lágrimas e ranger de dentes. “Naquela luta, eu fazia até bailes sertanejo. E muita reza”. Assoprou, passou: o som hoje na Rua Clotário Portugal, 274 vem do berimbau e dos tambores. Quanto a Álvaro, sente-se um pouco mais à vontade em fazer parte da dinastia dos que governaram a “13”.
Encantos
Álvaro da Silva já reparou numa coisa. A data da fundação da “13” mexe com a imaginação do pequeno exército de Brancaleone que ajudou a salvar a sociedade. Para quem cresceu ouvindo que o Paraná não tinha negros, impressiona saber que não só tinha como havia entre eles letrados e politizados o bastante para criar um grupo antes mesmo da assinatura em caneta tinteiro, de Isabel, ter secado.
“Não foram necessariamente os negros que ressuscitaram a ‘13’. Quem revigora essa casa são os que gostam da história da sociedade e da cultura do negro. Os jovens se comovem. Estar no território do negro é um símbolo para essa gurizada loura que vem aqui”, fala Álvaro, num raro momento de prolixidade.
Além de Thiago Oshino e sua trupe, o séquito de simpatizantes da “13” conta com Geslline Giovana Braga – habitué e uma das autoras de Maria Bueno: santa de casa (2011), santa popular e mártir, uma das mais ilustres frequentadoras da sociedade no século 19 – o que inclui ter tido ali sua missa de corpo presente, após ser vítima de um crime passional e ser rejeitada pela Igreja.
A lista dos novos participantes vai longe – passa pelo grupo Capoeira Angola Resistência, pelos oficineiros de maracatu, pela banda de forró Areia Branca – que há sete anos comanda os animados saraus de domingo na agremiação. Por apaixonados incondicionais, como a publicitária Brenda dos Santos, 35 anos. “Antes da ‘13’ acho que eu nem sabia que era negra”, conta a jovem de turbante vistoso, alçada ao posto informal de produtora da sociedade. Ela não gosta de título. Sabe que há uma hierarquia de sócios e de negros históricos a quem fazer genuflexão, mas admite, sim, que vai para as tabelas, em defesa da casa. Faz o maior sentido.
O pequenino “13” serve como uma luva aos afetos de jovens que lutam por direitos humanos, melhores condições urbanas, questões de gênero e uma saraivada de bandeiras. É uma galera que acredita no sistema de cotas e que promove ruidosas manifestações para suas causas. Mas não são os únicos novos filhos da “13”. Por semana, entre 300 a 800 pessoas passam por ali – para cursos ou para os bailes, inclusive os de domingo.
Todos os simpatizantes, independente da escala, sabem de cor o ano da fundação da sociedade: “1888, o mesmo ano da... Já pensou nisso?” Comovidos, nunca negam uma mãozinha ao Álvaro. Nem sempre ele aceita. Aos 68 anos, tem problemas de visão e está longe de ser o rapagão de sorriso escancarado que arrepiava nos desfiles da Colorado. Mesmo assim,está no auge moral. Descobriu que veio ao mundo para cuidar da “13”. O que mais curte? Ver o pessoal subir a escadinha da entrada e quase se ajoelhar diante do estandarte em que está bordado a data “6 de junho de 1888”. Depois, os visitantes se arrepiam em sambar naquele terreiro onde o Paraná viveu uma de suas mais belas histórias. Ninguém sai ileso desse ritual.
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