Durante uma turnê do Balé do Teatro Guaíra, na Bahia, com o espetáculo O Grande Circo Místico, o bailarino Wanderley Lopes queria escrever poesia e precisava de papel. A primeira bailarina da companhia, Eleonora Greca, também gostava de escrever e deveria ter papel de carta para lhe arranjar. Naquele 1984, as sapatilhas eram uma obviedade em comum entre os dois integrantes da companhia de cerca de 50 bailarinos. As letras deram uma forcinha para que os dois se aproximassem. Os colegas, que já compartilhavam o palco, começaram a compartilhar os poemas que faziam. Para dividir a vida foi um passo. Mais de 30 anos depois, os dois dividem uma casa que parece de bonecas, com floreiras nas janelas e tudo, na antiga Vila Ferroviária, entre o Alto da XV e o Tarumã.
Aos 12 anos, Eleonora foi convidada por professoras da Escola do Teatro Guaíra, onde estudava balé, para viajar para o Rio de Janeiro e assistir à companhia inglesa Royal. Ganhou um ingresso extra para o espetáculo A Bela Adormecida. No dia seguinte, tinha O Lago dos Cisnes, mas não havia ingresso para Eleonora. Mesmo assim, as professoras insistiram que ela fosse e, na entrada, enquanto entregavam os ingressos, empurraram a pequena bailarina para dentro do teatro e fizeram sinal: “Vai”.
A menina baixinha e magra passou despercebida, subiu até o último balcão e lá do alto assistiu às bailarinas “com aquelas costas trabalhadas”. Hoje, Eleonora reconhece que, ainda que inconscientemente, naquele momento alguma coisa mudou na sua relação com a dança.
A outra face de Wanderley Lopes e Eleonora Greca
Wanderley e Eleonora se conheceram numa turnê do Balé Teatro Guaíra. Passaram a compartilhar, além dos palcos, poesias. E, há 30 anos, resolveram dividir também suas vidas.
+ VÍDEOSNa mesma época, a pianista Liane Essenfelder escreveu em sua coluna na Gazeta do Povo que Eleonora era uma promessa da dança, mas pecava pela indisciplina. O pai da menina leu aquilo e questionou: “Como assim, indisciplina?”.
Filha de um engenheiro e de uma professora, Eleonora era uma menina sapeca, hiperativa – como se define. Falava com todo mundo. Só começava a fazer aula depois de cumprimentar todas as amigas com um beijinho. A primeira vez que subiu no palco foi com uns 5 anos, em uma peça de teatro em um colégio de freiras. O que mais lhe marcou não foi nem o palco, nem a plateia, mas os bastidores – aquele clima das coxias. Começou na Escola do Teatro Guaíra ainda na infância e aos 14 anos passou a ser estagiária na ainda incipiente companhia. Para ela, tudo em sua vida foi se realizando sem que planejasse muito. Quando via, as coisas estavam acontecendo.
Quando fez audição para a companhia, assustou-se ao se dar conta de que dançava no meio de duas grandalhonas. Decidiu dançar com alma. Se não passasse, pelo menos teria feito bonito. Mal sabia que ali a outrora menininha, que fez pacto com as amigas de que “nunca vou sair do balé”, se encaminhava para ser a diva daquele teatro por 30 anos. Passou em segundo lugar nessa prova, mas o posto pelo qual ganharia reconhecimento nas próximas décadas seria o de primeira bailarina do Guaíra.
Baryshnikov
Aos 17 anos, Wanderley estava fervendo leite na Casa do Pequeno Jornaleiro quando viu Mikhail Baryshnikov saltando e girando na TV. Seus olhos brilharam. Achou aquilo incrível. Queria fazer igual. No dia seguinte, passava pela Praça Tiradentes e, de novo, lá estava o bailarino russo na tela da TV de uma loja. Só podia ser o destino. Será que dava para pensar em destino?
Na infância, Wanderley viveu no Educandário Curitiba, casa que abrigava filhos de portadores de hanseníase que se tratavam no Hospital São Roque – era a única opção de local para a mãe dele, uma enfermeira separada, deixar os filhos. Mais tarde, ela foi morar no interior com os mais novos. Não tinha condições de cuidar de todos e Wanderley ficou. Dali, foi para o Educandário Munhoz da Rocha e depois para a Casa do Pequeno Jornaleiro, instituição onde as crianças viviam e trabalhavam entregando jornais.
Quando se deparou com Baryshnikov na TV, além da tarefa diária de ferver leite para quase uma centena de crianças e ajudar no controle interno dos pequenos jornaleiros, Wanderley fazia caratê, jogava entre os iniciantes do Coxa e trabalhava como estagiário na Telex. Resolveu procurar algum lugar para dançar, coisa rara para meninos, ainda mais para os empobrecidos. Algum tempo depois, conseguiu entrar em um grupo de formação para bailarinos no Guaíra, com o professor Carlos Trincheiras.
No começo, Wanderley tinha vergonha de dizer o que fazia no teatro. O pessoal do Pequeno Jornaleiro mostrava curiosidade e ele despistava. Dizia que era auxiliar administrativo. A desculpa colou até o dia em que Wanderley participou de uma apresentação com o corpo de baile no Rio de Janeiro. O grupo tirou uma foto, que saiu na revista Manchete. Os pequenos jornaleiros, que se identificavam por números, também entregavam a Manchete e quando folhearam a revista e deram de cara com Wanderley em trajes de dança caíram na risada: “Olha o 36”.
Em poucos meses o menino jornaleiro voava para Portugal com uma bolsa para estudar dança. Foram dez meses e US$ 18 mil poupados com o que recebia e mais uns bicos como modelo de propagandas na TV. Até que recebeu a notícia de que a irmã mais nova estava grávida. Pegou as economias, voltou para o Brasil e comprou uma casa para a mãe e a irmã.
O Guaíra estava a sua espera. E, mal sabiam eles, Eleonora também. Contando hoje, tudo parecia coreografado. E como toda coreografia extenuante, as marcas ficaram no bailarino. “Há dez anos, eu não conseguia contar tudo isso sem chorar. A gente vai ficando insensível. Hoje me sinto um bobo em me ver chorando”, conta Wanderley, com humor.
O encontro
“Garoto que chegou na hora certa/ Que veio sem compromisso/ Pegando-me tão de surpresa/ Que quando tocou-me, soltei-me/ E quando beijou-me, deitei-me”
Assim Nora, como é carinhosamente chamada por Wanderley, se refere ao amado em um dos poemas dedicados a ele.
Quando Wanderley voltou da Europa, Eleonora era primeira bailarina do Guaíra, a estrela da companhia. Em casa, tinha um filho pequeno, Guilherme, do casamento desfeito com um engenheiro.
Foi na ascensão da companhia que o casal se formou. No início dos anos 1980, O Grande Circo Místico foi uma explosão. Não havia dinheiro para divulgação. Fazia-se panfletagem na Rua XV. O disse-me-disse levou o teatro a lotar e lotar, e também a longas turnês pelo Brasil.
Eleonora lembra com carinho dessa fase. Apesar do orçamento em casa e no teatro ser apertado, os bailarinos viviam tempos gloriosos, eram aclamados pelo espetáculo, cumprimentados nas ruas. “Tinha muita felicidade envolvida”, lembra ela, com sorriso largo e olhos brilhantes. Mesmo tendo feito cursos no exterior, viajado com a turnê por vários lugares, o sentimento era de que a dança borbulhava aqui em Curitiba, de frente para Praça Santos Andrade. “A gente tinha a sensação de estar onde as coisas estavam acontecendo”, diz a primeira-bailarina mais lembrada do Guaíra.
As crianças se acostumaram a ver os pais em turnê. Guilherme, 34, tem Wanderley como um segundo pai e Isadora, 27 – nome inspirado na bailarina Isadora Duncan – nasceu da união dos dois. Os filhos viam a rotina agitada com muita naturalidade. Acostumaram-se a ter o Guairão como extensão da casa e a ficar com a avó materna italiana e divertidíssima quando os pais viajavam. Eleonora sempre foi de pensar em tudo. Não deixava escapar nenhum detalhe na criação dos dois, mesmo quando precisava ficar longos períodos longe. Quando pensam em Eleonora, os filhos pensam na mãezona, exigente, que cozinha bem e é superorganizada. A imagem glamourosa da bailarina fica para a hora da admiração de alguns amigos ou conhecidos quando descobrem quem é a mãe deles.
As trajetórias tão distintas se equipararam no palco. Wanderley também se tornou primeiro bailarino do Guaíra. Depois de perambular por tantos cantos no mundo, sentiu-se acolhido na família Greca, de italianões animados. Não ficou amargurado pelo que passou e tem a determinação de manter a ternura. A própria filha o descreve como quase ingênuo, daquele tipo que se torna grande amigo de uma pessoa que encontrou só uma vez na vida.
Em 2013, Eleonora decidiu que era hora de se despedir dos palcos enquanto estava bem, sem drama, com festa. Fez sua última apresentação no palco do Guaíra, dançando o dueto Beatriz de O Grande Circo Místico com Wanderley. No final, as portas do cenário do balé 13 Gestos de um Corpo se abriram e 13 bailarinos lhe entregaram buquês de flores.
E acabou? Nada disso. Eleonora diz não sentir saudades da dança porque continua trabalhando com os palcos, mas agora nos bastidores. Foi coordenadora de Dança da Fundação Cultural e organizou a Bienal de Dança. Aos 57 anos, aplica sua formação em administração, com ênfase em Marketing, no grupo O Boticário. Trabalha na gestão dos recursos de lei de incentivo para grupos de dança. Adora lidar com planilha. É uma nova vida, o que não é problema para ela. “Meu ego já foi bastante escovado”, diz. Continua fazendo algo pela dança, é o que importa.
Wanderley segue como primeiro bailarino na companhia. Aos 52 anos, participa de espetáculos, faz aulas com a mesma disciplina de um menino iniciante, traz no corpo a linha clássica e muita experiência em cada movimento. É respeitado e convive muito bem com a garotada que integra o Balé do Teatro Guaíra. Foi coreógrafo da Seleção Brasileira de Ginástica Olímpica. Filiado ao PPS, na última eleição municipal concorreu a uma vaga de vereador. Diz que resolveu entrar a política porque ainda se olha muito pouco para as artes.
Em casa, a dupla tem um acervo organizado em pastas, com fotos e datas, não só sobre a carreira deles, mas sobre a história de toda a companhia de dança. Entre as imagens, registros de festas animadas, festa do azul, festa cafona... Adoram reunir pessoas, comemorar, fazer macarronada, jogar conversa fora. Também adoram viajar, agora sem as correrias de turnês. Dos muitos destinos, ficaram encantados com o mar azul de Fiji – tanta beleza lhes é muito natural.