“Estou com as duas meias da mesma cor?”, brinca o criminalista René Ariel Dotti, 81 anos, ao se ajeitar numa das poltronas de seu escritório, antes de posar para as fotos desta matéria. De imediato, alguém lembra a fotografia de Fernando Henrique Cardoso com a meia furada, quando era presidente da República. “Foi parar na capa dos jornais. Lembra?” Dotti ri. Parece à vontade, apesar de tudo.
Há um corre-corre no escritório – espaço elegante e solene que ocupa quatro andares de um edifício cinquentão na “Marechal Deodoro”, Centro de Curitiba. O local emprega 60 profissionais, 24 deles advogados. Na semana passada, o grupo – verdadeira tropa de elite – assumiu a defesa da secretária de estado do Trabalho e do Desenvolvimento Social Fernanda Richa, a esposa do governador, investigada num possível esquema de corrupção eleitoral.
Junto com a causa vem a artilharia pesada de pelos menos duas parcelas de pessoas – os que repudiam a gestão Beto Richa – antes, durante e depois do episódio que feriu 200 pessoas na Praça Nossa Senhora de Salete, em 29 de abril passado; e os que se sentem traídos por Dotti.
Advogado de estirpe, criminalista cinco estrelas, professor titular da Universidade Federal do Paraná, o veterano consolidou sua carreira na luta pelos direitos humanos e da liberdade de expressão – em especial nos anos da ditadura militar. Políticos, sindicalistas e jornalistas defendidos por ele nos últimos 50 anos – sem a cobrança de honorários – costumam mudar o rumo da conversa. Tornam-se paladinos de Dotti, mesmo diante do argumento de que seu escritório aceita processos “indefensáveis”.
O mais ruidoso deles é a defesa do deputado Carli Filho no chamado “caso Yared”. Dispensa apresentações. O mais exótico – o ganho na Justiça de alvarás de demolição para casas modernistas de Curitiba, protegidas como Unidades de Interesse de Preservação, as Uips. Dotti foi secretário de Estado da Cultura e é conhecido homem das artes.
“Como o senhor lida com a patrulha?” (pausa) Dentre as perguntas feitas a René Dotti nas três sessões de entrevista para este perfil, é a única que demora alguns segundos para ser respondida. “Sou advogado, trabalho com a lei. Incomoda, mas tenho de lidar com isso.”
Não ter Facebook ajuda. Ignora boa parte dos desaforos. Quanto às meias, estão impecáveis.
O advogado René Dotti é um homem miúdo, de voz pequena e raciocínio a galope. Na meninice, quem diria, foi gago. A memória lhe passa poucas rasteiras, das quais se vinga com a destreza de um lutador de MMA. Como se diz, “é um grande papo”, sempre ilustrado por episódios bem temperados – não raro hilários. A seu lado, difícil sentir tédio. Por certo, ajudaram na construção dessa performance o flerte com o teatro, na juventude. O gosto pela linguagem do rádio. As cinco décadas passadas na sala de aula – chegou a titular em Direito Penal na Universidade Federal do Paraná. O Tribunal de Júri. A curta, porém decisiva, passagem pela imprensa.
A outra face de René Dotti
Na época do científico, o advogado René Dotti se encantou pelo teatro e até fez parte de um grupo, junto com o ator Ary Fontoura. O amigo seguiu a carreira de ator e Dotti, na plateia, como advogado e um amante das artes.
+ VÍDEOSPara cada um desses capítulos reserva uma narrativa deliciosa, repetida e aperfeiçoada – com vantagem para o teatro e para o jornalismo. Não esconde que adoraria ter sido “um vocacionado... como o Ary”, comenta, referindo-se ao ator Ary Fontoura, a quem tem como a um irmão.
Quando eram “moços, pobres moços”, fundaram juntos uma companhia cênica, a Sociedade Paranaense de Teatro. Até que Curitiba se tornou pequena para tantos planos. “Não fui com ele para o Rio de Janeiro porque peguei segunda época em algumas matérias. Tinha de me formar”, brinca o homem que tem no trágico monólogo de amor bandido, As mãos de Eurídice, de Pedro Bloch, sucesso na interpretação de Rodolfo Mayer, o texto de sua existência.
Na casa do Jardim Social onde vive com Rosarita – sua mulher – construiu um palco. Não aceitou encenar ali um trecho da obra de Bloch para um videocast. “Eu cairia no ridículo”, esquivou-se. Além do mais, não faz muito tempo, um homem de leis, no interior do Paraná, o esculhambou, acusando de viver como um nababo, num palácio “que até um teatro tem”. “É um palquinho”, surpreende-se.
Quanto à imprensa, cruzou seu caminho em meados da década de 1950, de uma vez por todas. Era estudante de Direito na UFPR e ganhou uma vaga como colaborador no Diário do Paraná, jornal de Assis Chateaubriand, do grupo Diários Associados. Fazia crítica de teatro no suplemento Artes e Letras, criado por outro chapa, o hoje cineasta Sylvio Back. Foi um período pródigo para as artes cênicas – sorte do novato Dotti, que dividiu a cena com resenhistas do quilate de Eddy Franciosi, Glauco Flores de Sá Brito e Roberto Menghini.
Dotti reconhece que estava em boa companhia, mas não esconde que o que mais o marcou foi o ambiente da redação. Descreve a rotina do jornal com minúcias e sem palidez. “Achava incrível ver toda aquela gente pensando junta”, resume. Ao se formar, em 1958, distanciou-se, mas não por muito tempo. Criou seu escritório em 1961 – em princípio numa saleta do Centro Velho; em 1962 deu início a sua carreira na UFPR; em 1964, com o golpe militar, reencontrou toda a turma do Diário do Paraná, dessa vez para defendê-la de cabeludos processos militares. Nunca cobrou um tostão de nenhum deles.
De beca
Enquanto René acertava os pontos com o Direito, parte da equipe do Diário migrou para a sucursal do Última Hora – o mítico jornal de Samuel Wainer. O sonho durou pouco. Ligado a João Goulart até o último fotolito, o UH levou pedrada [uns dizem que foi bosta de cavalo] – literalmente – assim que os militares chegaram ao poder. Profissionais como Milton Ivan Heller, Walmor Marcelino, Cícero Cattani e o próprio Back ficaram privados do direito de exercer o ofício. A partir de meados de maio de 1964, em vez de baterem máquina na sede que funcionava no Edifício Asa, Praça Osório, passaram a bater ponto no quartel da Praça Rui Barbosa. Respondiam os chamados “Inquéritos Policiais Militares”. Para se vingar dos meganhas, fumavam um cigarro atrás do outro. Cortina de fumaça na sala de inquérito.
O processo durou quatro anos – Dotti o venceu ao descobrir uma mancada de Ney Braga, simpatizante do governo militar. Antes mesmo do golpe, ele teria usado verba do programa Flagelos S/A, destinada a desabrigados do grande incêndio que varreu o Paraná, em 1963, para pagar anúncios institucionais. E vejam só, no Última Hora, um campeão de audiência. Ao ganhar a causa, em 1968, Dotti estava longe de ser um novato ajudando amigos em apuros. Era o doutor René, um ex-eleitor de Jânio, desiludido com a ordem das coisas, leitor de Kafka e próximo de repórteres de fina casta, uma gente que fazia estalar dedos no centro do poder.
Até então, tinha se virado muito bem em uma pá de encrencas envolvendo esquerdistas – já no dia 3 de abril, na boca do golpe, saiu a campo em defesa de um oficial preso. Astuto, sacou as manhas para lidar com o regime. Os militares iam de farda. Ele, de beca. Guerra é guerra. Um bêbado, ao vê-lo certa vez, paramentado, chamou-o de “padre porreta”. Risos. Por supuesto, representava uma ameaça. Ser fichado pelo Dops era só um dos preços a pagar. “Tive medo, confesso. E tenho falado muito na liberdade de não ter medo. O medo torna a alma refém”.
Os traques corriam atrás das pernas do advogado. Somando todos os episódios em que se fiou, daria uma novela. Fã confesso de Fidel Castro, por exemplo, atraiu a fúria do reitor José Nicolau dos Santos. Mais? Um colega da universidade se desculpou, mas não foi ao casamento de René porque temia ser fotografado ao lado do noivo. Podia entrar em cana. Noutra ocasião, um sujeito se apresentou a ele como fotógrafo do Jornal do Brasil. A insistência em tirar fotos de frente e de lado deu a entender que não tinha pedaços de laranja naquela Crush. Era do SNI. “Eu estava acostumado como a maneira como eles nos retratavam nas audiências da Justiça Militar. Percebi a farsa e o mandei embora”.
João, o herói anônimo
Não foi o único infiltrado na sua cola. Certa vez, um pinta apareceu no escritório, pedindo auxílio jurídico para se safar de uma briga “com vizinhos”. Percebeu ser um policial à paisana. Quem não entendeu nada foi um dos comunistas que defendia. De passagem pelo escritório, ao entrar na sala para cumprimentar o advogado e o cliente falso, saiu-se com a frase que entregava todo mundo: “Dr. René, estamos derrotando os gorilas”. “Minha sorte era que eu lecionava Direito Penal Militar na UFPR. Deve ter amenizado minha situação.”
A crônica de René Dotti e a ditadura – embora relatada por ele, reconheça-se, com encanto – ainda é uma história à espera de um autor. Ele sabe disso. Nos últimos anos, reúne material, dá entrevistas a quem quer que lhe peça, esbalda-se em debates. Nessas ocasiões, mexe com os nervos e com o emocional da plateia. Rejeita o binarismo do nosso tempo. Ninguém é só uma coisa o tempo todo. Os que se incomodam com alguns casos defendidos pela equipe de Dotti – e não escondem isso – se comovem ao saber de figuras como o escrivão João de Castro.
Impedido de defender o deputado trabalhista Walter Pecoits, no auge dos anos do chumbo, René pediu ao escrivão que lhe desse a prova escrita de que seu direito de advogado tinha sido usurpado. Castro deve ter se imaginado apanhando num pau de arara. Mesmo assim, dias depois Dotti recebeu as atas, pediu um habeas corpus e safou o cliente preso. Uma década depois, o escrivão Castro foi objeto de um texto elogioso do advogado.
Não menos cativantes são os relatos sobre o médico comunista Jorge Karam, cuja biblioteca foi apreendida e ele preso como subversivo. O texto de defesa, intitulado Libelo de leitura, escrito por Dotti, em 1969, bem podia ser tema de estudos aqui e ali. O mesmo se diga da cassação do jurista marxista José Rodrigues Vieira Netto. E a defesa de Clair da Flora Martins – a militante torturada. “O caso que mais me comoveu...”, reconhece.
No escritório da Marechal Deodoro – decorado em estilo inglês por Rosarita – as memórias da ditadura dividem espaço com as telas paranistas, fartas nas paredes. Tem De Bonas, mas também quadros com o documento em que o ministro da Justiça Armando Falcão tascou na folha branca um “nada a declarar”, livrando René de mais alguma enrascada. No meio da rica biblioteca de Direito, pode-se encontrar um livro de recados em que ex-clientes agradecem os serviços prestados.
Juca Chaves, ele mesmo, deixou um doce “obrigado com todo o meu coração e todo o meu nariz”. O cartunista Ziraldo preferiu presentear uma tela gigante de um “Superman afrodescendente”, como define Dotti. O quadro destoa do ambiente, apesar da moldura raffinée. Diz tudo. Menos para ele. De toda a coleção de pinturas, livros, processos e coisa e tal que acumula no famoso escritório, uma peça é de sua predileção – um busto do filósofo Voltaire esculpido por Matulevicius. O autor de Tratado sobre a tolerância, diz, ensinou-o a rir e a fazer rir. De longe, ninguém diz.