Não foram raras as vezes em que a sorte fitou Kalk, como o chamam, com um olhar sedutor e apaixonado. Diz o ditado que ela torna-se companheira de quem detém uma dose de talento. Talvez seja esse o segredo do curitibano José Kalkbrenner Filho, uma unanimidade reclusa. Se fosse realizada uma enquete com os principais fotógrafos de Curitiba, certamente Kalk figuraria entre os mais respeitados. Pioneiro na fotografia publicitária no estado e um dos principais ciclistas do país, chegou a vestir a camisa da seleção brasileira de ciclismo durante décadas.
O primeiro passo na carreira foi aos 20 anos. Com uma câmera pendurada no pescoço e dono de um olhar ímpar, foi escalado para cobrir um jogo de futebol. Embora não tivesse noção alguma do que era fotojornalismo, encarou o desafio com maturidade impressionante. Acompanhado do natural “frio na barriga”, foi ao gramado e esperou o momento certo para o clique certo.
Naquela época, o filme fotográfico era valioso e cada chapa batida tinha de justificar o investimento. Durante a partida, conseguiu o difícil ato de clicar dois gols. Talvez flagrar uma bola na rede fosse suficiente para que o então inexperiente fotógrafo acabasse definitivamente contratado pela Gazeta do Povo, onde permaneceu por três anos. “Eu não sabia nada de foto”, comenta.
Aos 83 anos, Kalk olha os fatos do passado com orgulho. Não se envergonha ou se arrepende de absolutamente nada. Começou a mexer com fotografia ainda nos primeiros anos da adolescência, aos 14, meio que por acaso. Queria fazer uma graninha e, para isso, foi atuar como office-boy na loja Carlos Boutin, de fotografia amadora, em Curitiba.
Foi ali que aprendeu a revelar filmes e teve os primeiros contatos com as máquinas fotográficas. Uma paixão à primeira vista.
Ao longo de toda a trajetória profissional, até quando menos esperava – ou principalmente nessas situações – Kalk foi abençoado pelo destino. Como no dia em que a Seleção Brasileira de Futebol desembarcava no Rio de Janeiro celebrando o primeiro título em uma Copa do Mundo, em 1958. Kalk não teve sucesso ao flagrar o desembarque dos atletas. Em compensação, driblou seguranças, entrou em um ônibus fretado pela hoje extinta Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e se deparou com uma porção de mulher – todas esposas dos campeões.
A gente entrou pelos fundos do palácio [do Catete]. Toda a imprensa estava do lado de fora (...) Fui o primeiro a fotografar essa taça [a Jules Rimet, da Copa de 1958] no Brasil. Foi uma emoção desgraçada.
Após conversar com os dirigentes, conseguiu carona para o Palácio do Catete, onde seria realizado uma homenagem aos atletas.
“A gente entrou pelos fundos do palácio. Toda a imprensa estava do lado de fora”, conta. De repente, um camarada da própria CBD falou algo do tipo: ‘Olha só, que bonita’. Era a hoje derretida taça Jules Rimet, que repousava em um estojo aveludado. Sem pestanejar, sacou a câmera e começou a disparar fotos. “Fui o primeiro a fotografar essa taça no Brasil. Foi uma emoção desgraçada”, orgulha-se. A adrenalina só foi baixar quando chegou ao hotel e mandou ver um copo cheio de uísque. Teve, certamente, o sono dos deuses. A foto foi publicada, segundo Kalk, nos jornais Paraná Esportivo e Diário do Paraná.
E o juízo?
A sorte manteve fidelidade a Kalk até quando ele espontaneamente perdeu o juízo. Estava há seis meses sem receber salário no extinto Diário do Paraná. Para cumprir alguns compromissos particulares, foi obrigado a ir São Paulo e se ausentou por alguns dias do trabalho. Verdade que deixou outro profissional em seu lugar. Mesmo assim, o fato irritou a direção do veículo de comunicação.
Quando o fotógrafo chegou de viagem, o então diretor do jornal Adherbal Stresser indagou na frente de toda equipe: “Kalkbrenner, você acha que isso aqui é a casa da sogra?”. Sem pestanejar, e como a situação financeira não era lá das melhores, a resposta de Kalk deixou todos os colegas atônitos: “Eu acho que é”. Nunca mais ninguém tocou no assunto. “Uns colegas me perguntavam se eu estava louco”, diverte-se.
“Saco cheio de não fazer nada”
Após três anos atuando na Gazeta do Povo, Kalkbrenner foi fazer fotografia documental no Instituto Brasileiro do Café (IBC). Trabalho que, para ele, foi uma “babada”. O expediente era das 13 às 17 horas e pouco produzia. Era tanta a falta de serviço que chegava a sair do trabalho para curtir uma ou outra sessão de filme nas matinês.
Ele bem que poderia ter se pendurado no cabide de emprego. Mas a vontade de trabalhar falava mais alto. Sorte de todos nós. Em termos fotográficos, Kalk parado seria uma perda irreparável.
Em pouco tempo, estava novamente pisando em favelas, fotografando acidentes e até clicando para coluna social. Foi contratado no que ele define como uma das principais “escolas de jornalismo do Paraná” nos anos 50 – o Diário do Paraná, do grupo Diário Associados.
Aceitou trabalhar no jornal por 6 mil cruzeiros em período integral. “Era um salário alto para a época”, confessa. Além de ter sido o responsável por montar a equipe de fotógrafos, pediu autorização para comercializar eventuais fotos de eventos que faria para o Diário. Deixou tudo às claras para que não o acusassem de picareta.
Kalk ainda conta que nesse período começaram a surgir os primeiros flashes eletrônicos. Até então, para cumprir essa função eram usadas lâmpadas de magnésio. Para cada chapa batida, uma lâmpada era queimada e automaticamente jogada fora. Como o jornal estava em crise, ele mesmo comprou um flash para trabalhar. “Mas fiz um acordo. Para cada chapa que batesse pegava uma lâmpada para mim e a vendia. Com isso, paguei meu flash só com a venda dessas lâmpadas”, relata.
A fala
O sotaque é típico de quem já morou em terras germânicas. Quem o escuta e alia à sua imagem –alto, olhos azuis e pele clara – pode facilmente pensar: “Esse aí nasceu pelos lados da Alemanha ou Polônia”. Mas Kalk jamais morou no Velho Mundo. A pronúncia acentuada é reflexo da alfabetização. Filho de alemães, só foi aprender o português aos 6 anos. Começou a conhecer os países europeus há cerca de uma década. Uma das últimas viagens que fez foi para a Rússia.
Bunda no chão
Na época em que as lâmpadas de magnésio faziam a função de flash, os fotógrafos deveriam carregar algumas delas no bolso. Aconteceu que durante um baile de debutante nos anos 1950, Kalk correu com seu smoking todo elegante no meio do salão para alguns disparos fotográficos. O chão era liso e o sapato não aguentou o tranco. Caiu de bunda no chão no meio do baile. Lâmpadas se espatifaram e se espalharam por todo espaço. Sem moral, abandonou a cobertura da festa. “Todos riam quando olhavam para mim”. Esse foi um dos raros momentos em que a sorte “esqueceu” de Kalk.
Sobre duas rodas
Kalkbrenner não foi “somente” um dos principais nomes da fotografia no estado, como também integrou a seleção brasileira de ciclismo. Aliou uma coisa com a outra. Segundo Kalk, naquela época os treinos não eram tão exigentes quanto são hoje. “A gente treinava na hora de folga ou até durante a noite”. Isso lhe possibilitou unir o trabalho ao prazer de correr de bicicleta.
O talento para o esporte foi tamanho que, em 1950, chegou a representar o país em uma competição sul-americana em Montevidéu. Tinha apenas 20 anos e precisou enfrentar a resistência dos pais. Driblada a desconfiança, correu pelas ruas da capital do Uruguai.
Enquanto percorria os mais diferentes ambientes em busca da melhor foto para a notícia, Kalk teve a bicicleta como uma de suas principais companheiras durante décadas. A primeira competição que Kalk participou foi em São Paulo. Também esteve em competições no Chile, na Venezuela e na Argentina. Até os 42 anos, continuou participando de corridas se equilibrando sobre as duas rodas.
Lembranças desse período são diversas. Ele guarda um álbum com dezenas de recortes de jornal em que aparece competindo nos mais diversos locais.
A publicidade
Foi em 1962 que Kalk talvez tenha realizado sua experiência mais ousada. Abandonou o jornalismo fotográfico e montou a primeira empresa de publicidade fotográfica do estado. “A gente não sabia nada”, conta rindo. Foi a primeira a ter um estúdio completo – onde coisas inimagináveis aconteciam. As empresas chegavam a montar um banheiro, com azulejo, pia, vaso sanitário e banheira. E o mais surpreendente: com água saindo de todas as torneiras. “Montavam estruturas completas. Não era faz de conta”.
Sem falar no número quase incalculável de mulheres de topless ou com roupas sensuais que davam seu charme para as mais diversas peças publicitárias. “Era uma coisa de louco. Para fazer uma foto demorava-se quase um dia ou até mais”, conta.
A Fototécnica, fundada com sua ex-mulher, tornou-se sinônimo de publicidade fotográfica no estado. A empresa encerrou as atividades somente há oito anos. “Minha escola foi o jornalismo. Sem ele, não conseguiria manter uma empresa como essa”, conta.
A casa em que Kalk reside atualmente foi uma adaptação do que era a sala social do antigo estúdio. A empresa pode ter sido fechada, mas uma coisa que ninguém apaga é a memória que Kalk guarda daquele espaço.
Mudanças tecnológicas
A história da fotografia paranaense e a vida de Kalkbrenner se confundem. Por suas mãos passaram um sem-número de equipamentos. Vivenciou dia após dia as mudanças tecnológicas no setor. Usou o famigerado flash de tungstênio, as Rolleiflex, as Leica ... até chegar aos equipamentos digitais. Hoje, ele usa uma máquina simples que faz questão de colocar no automático. Ele que, trabalhou a vida toda regulando o obturador e a abertura de diafragma, fotografa atualmente só por diversão.
Kalk mantém um pequeno museu no antigo estúdio. Quase todas as máquinas que usou na carreira estão cuidadosamente guardadas em um armário. Até as lâmpadas que faziam função de flash estão lá. Também estão os negativos das milhares de imagens batidas pelas mãos desse discreto documentarista da aldeia onde nasceu.