| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

Esta história começa em 1948, quando os pais da educadora Araci Asinelli da Luz se acidentaram na Estrada do Cerne, entre Ibaiti e Curitiba. Chuva forte, ventania, escuridão. Não deu outra. O carro capotou várias vezes, caiu com as quatro rodas cravadas no chão. Por sorte, ninguém se machucou. Mas foi o início de uma correria até o Hospital Victor Ferreira do Amaral – na Avenida Iguaçu. "Minha mãe entrou em trabalho de parto", conta ela.

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VÍDEO: conheça a outra face de Araci Asinelli

SLIDESHOW: Veja o ensaio de Araci Asinelli feito por Brunno Covello

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O problema é que o hospital sofria um apagão. Logo no final da madrugada, quase pela manhã, a criança nasce e a luz retorna ao estabelecimento. Seria um sinal sobre o futuro daquela menina, que viria a ser a terceira filha, de sete irmãos. Já nos braços do pai, o engenheiro civil Silvio Asinelli, outra coincidência. Os olhos dela lembravam a avó. Ali, recebeu o nome que, em tupi-guarani, significa "mãe do dia", "aurora".Virou Araci. "Gosto muito do meu nome. Meta que eu tenho é ser luz para as pessoas", diz, sem conter as lágrimas.

Assim tem sido. Araci Asinelli da Luz é bióloga, doutora em Educação, professora da Universidade Federal do Paraná e sinônimo de luta contra o marasmo político. São muitas as suas causas, mas o fio dessa meada começa com o trabalho de prevenção às drogas e combate aos malefícios do tráfico.

Duas vezes "luz", Araci é necessária.

Levar a luz da educação às pessoas e lutar contra o marasmo político no combate ao uso e tráfico de drogas são missões tão pretensiosas quanto nobres. Mas essas duas responsabilidades encabeçam uma lista que mostra o quanto a sociedade precisa de gente como Araci.

Se de um lado a quase fábula envolvendo o acidente de carro e a escolha do nome definem Araci, de outro, um encontro casual – quase banal – teve para ela o mesmo peso. Foi em 1987, numa daquelas rampas do Edifício Dom Pedro I, ao lado da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Na descida estava ela. Na subida, o ex-frade carmelita Fernando de Góis, que em alguns anos seria internacionalmente conhecido como o criador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros.

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Quando houve esse "encontro marcado" – coisa do destino, como dizem –, a rotina da professora Araci estava resolvida. Mesmo assim, foi um caminho sem volta. Ela já era casada com o parceiro da vida e professor Gastão da Luz – também biólogo e com carreira na UFPR–, tinha com ele quatro filhos –viriam a ter mais uma filha, temporona, Chiara, a companheira para todas as horas, hoje com 18 anos. Na vida civil, grande fase: integrava a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o Conselho Estadual de Entorpecentes.

Sua relação com o tema drogas, aliás, vinha da década de 1970 e por vias tortas. Por mais estranho que pareça, o saber de uma das maiores experts em drogadição no Brasil surgiu em um curso de Educação Sexual em São Paulo, procurado no afã de ajudar as adolescentes do Instituto de Educação do Paraná, onde Araci lecionava. Do desejo por sexo para o desejo por drogas foi um pulo.

"Cursei com a Marta Suplicy", lembra, aos risos, a mulher dadas às reviravoltas – tantas que mal poderia esperar por mais uma. Foi assim, supõe-se, desde que pisou numa sala de aula. Exemplo? Sua relação com as alunas do Instituto de Educação do Paraná. Ao perceber que as aulas de Ciência e Biologia eram o escoadouro de tantas angústias, fez o que devia fazer: correu atrás para esclarecê-las. "Foi quanto me identifiquei com a adolescência e com as relações humanas", conta. Aliás, lutou pela primeira turma mista no Instituto.

Anos mais tarde, quando passou a lecionar na UFPR, carregou consigo a experiência do Instituto e chegou "com tudo", disposta a abrir a universidade para a comunidade, algo atípico na academia. Seu discurso era o de que a educação também poderia fazer o caminho inverso, de dentro para fora, como ela gosta de ressaltar.

Pois foi essa Araci que cruzou com Fernando de Góis na rampa . O homem de trajes modestos e com inseparáveis chinelos de dedo perguntou se ela conhecia alguém que estudasse Paulo Freire, Cèlestin Freinet e Makarenko. "Sim, sou eu mesma", respondeu a professora, com a espontaneidade habitual.

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O encontro

Fernando integrava o movimento nacional dos meninos e meninas de rua e fazia abordagens em praças, numa época em que não faltava quem dissesse que aquela gurizada era uma causa perdida. Ele provou que não. Em meados dos anos 1990, iria se tornar o fundador da Chácara dos Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba – tido como o mais revolucionário projeto voltado para crianças e adolescentes vulneráveis na América Latina. Araci seria sua parceira na empreitada.

Não se largaram mais. Dali por diante foi uma sucessão de acontecimentos. "Organizei o 1.º curso de educadores de rua", inicia a lista de atividades que tirou qualquer resquício de retórica na frase "abrir a universidade".

A partir de 1994, quando a 4 Pinheiros saiu do papel, passou a dedicar as terças-feiras para passar o dia na chácara – cruzava os 50 quilômetros de manhã, com um séquito de alunos. Na terça-feira não tinha banca, não tinha viagem, não tinha família, era a chácara. Impossível contabilizar o número de meninos que tiveram seu destino entrelaçado com o de Araci.

Prova do nome

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"Percebi que sempre que perguntava os nomes para os meninos, eles não falavam ou assumiam seus nomes da rua". É a prova de fogo. Escaldadas, as crianças testam quem se aproxima, usando de despistes.

Foi quando a professora Araci percebeu a importância do nome e, desde então, procura o significado de cada um deles, sempre que pode, para mostrar a importância de assumirem suas identidades de batismo. "Eu mostrava o significado [dos nomes] para eles, que diziam: 'ela não esquece o nosso nome'. Foi serendipidade", explicou, ao descer as escadas da casinha de boneca que tem no quintal de casa no Jardim Social, brincando com a expressão inglesa serendipity. Sem tradução para o português, a palavra equivale a usar do devaneio e do acaso para redescobrir coisas e seus significados.

Enxergou que, ao contribuir tanto com os seus meninos de 4 Pinheiros, ajudou a si mesma. Descobriu o significado do próprio nome e percebeu que, mesmo sem saber, o acaso a fez trilhar um caminho marcado no dia do seu nascimento. Araci confirmou que tem tudo a ver com luz – que a luz seja feita.

* * * * *

A convicta

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Ser Araci não é fácil. Ela faz política o tempo todo, mas tem de explicar à exaustão que não faz militância partidária – sabe-se que negou convite para concorrer à vaga na Câmara Municipal. Dificuldades à parte, segue "jogando na cara" da sociedade o quanto isso é possível. E não é de agora. Talvez seja a inspiração na família. A começar pela mãe, hoje com 93 anos, morando sozinha, e complemente lúcida. "Ela é minha grande inspiração", relata.

Em 1988 Araci saía de uma reunião do Concitec [Conselho Estadual de Ciência e Tecnologia] no Palácio Iguaçu, quando a cavalaria da Polícia Militar, sob o comando do então governador Alvaro Dias, passou por cima dos professores.

"Fui até em casa e trouxe comigo os quatro filhos à época (crianças e pré-adolescentes) para que vissem o que aquele governo faz com os professores quando reivindicam seus direitos e para que entendessem o porquê sua mãe participava dos movimentos", comenta, entre os sofás de sua sala de estar, ao lado de sua coleção de conchas -- a mais importante vinda diretamente de Moçambique. Ela é assim, inesperada.

No sofá da sala, iluminada com abajures, faz algumas considerações sobre isso e aquilo e volta ao dia que virou marco da luta dos professores. Por essas e outras, ela não desgrudava dos filhos, mesmo que tivesse que leva-los para viagens de trabalho. Chiara, a mais nova, acompanhou de pequena, a mãe, em paradas LGBTs e congêneres. Sem discursos – tem de estar de corpo presente.

"Isso serviu para que nenhum quisesse ser professor", diz a sério, mas quase como uma brincadeira, após uma parada para levar seu cachorro, o Marley, ao banho e tosa.

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A convicção de Araci ainda obrigou os cinco a estudarem em escolas públicas. Gastão e Araci sempre foram professores de escolas públicas. "Acreditamos que ali devemos sempre dar o nosso melhor", afirma.

Cabe todo mundo

Os mais próximos dizem que Araci "é uma esponja". A mulher que se deixa conduzir pelos acasos vai absorvendo trabalhos e experiências aqui e ali. Sujeita a uma tabela de comportamentos, ou coisa assim, diriam que ela é hiperativa. Na imprensa, os que recorrem a ela, preferem chamá-la de "cidadã". Ela não nega a palavra e a opinião, nunca.

Para que se tenha uma ideia, hoje ela acompanha dois orientandos de doutorado, sete de mestrado, três no programa de desenvolvimento da educação (PDE) e um no curso de Pedagogia. As atividades não param por ai. Vão além da quantidade – sua marca é o modus operandi. "Dona Luz" é capaz de criar disciplina de mestrado abertas à comunidade – nas quais nunca falta café, conversa e interação. Alguém lhe conta de uma escola assim ou assado, num ponto distante da Região Metropolitana. Pode contar: Araci vai até lá e não raro acaba incluindo o local na sua agenda. Poucos pesquisadores orientaram tantos policiais militares e federais, o que lhe garante o título informal de a maior influenciadora das forças de segurança pública no Paraná. Dá para imaginar o choque da mentalidade autoritária da PM com o espírito libertário da orientadora.

Mas ela descansa. Ao mesmo tempo, consegue manter amizade com as amigas do "liceu" – o Colégio Cajuru, onde estudou no final dos anos 1950, para citar um dos muitos grupos os quais se liga. Não tem preconceito. Listando tudo, é humanamente impossível. Não para ela.

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Mas não a chamem de uma mulher sem foco. Seria injusto. A atuação de Araci se concentra em núcleos de estudos e pesquisas em Educação, Ambiente, Pedagogia Social e no Núcleo Interdisciplinar de Enfrentamento à Drogadição da UFPR. Ela integra o Conselho Estadual de Polícia Sobre Drogas, representando a universidade. A prevenção às drogas é seu trabalho.

Na área, não é dada a afagos. Coloca o dedo na ferida. É clara em relações confusas – inclusive com seus pares, quando se pronuncia contra o aborto. Se o assunto são entorpecentes, não vacila: "Sou contra a legalização das drogas", reafirma. Num país com educação precária e saúde deficitária, não há opção, opina. Mas não abre mão da descriminalização do usuário. Mostra disso é a posição recente dentro do Conselho. Não acredita no sucesso de uma política sobre drogas que esteja debaixo das asas da Segurança Pública, como parece querer o governo do estado. "Por isso, devo sair do conselho", antecipa. Vem aí uma briga anunciada. Não se trata de não gostar da polícia, em absoluta. Oficiais de altas patentes como Perovano, Blasius e Bondaruk, para citar três, só faltam lhe prestar continência. Além dos que foram seu orientandos na UFPR, a pesquisadora conheceu quartéis inteiros ao participar das primeira formações do Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd) da Polícia Militar, instituição que já a homenageou com a medalhada Sarmento, maior honraria concedida a um civil pela corporação.

O interesse em ampliar o debate e desenvolver políticas sobre drogas, no entanto, ultrapassa os limites da academia. Em casa, lê o livro Um preço muito alto, do neurocientista norte-americano Carl Hart. "Tenho me sentido incomodada", confidencia. Hart defende que a droga é usada como bode expiatório para justificar a falta de políticas sociais e que descriminalizar o uso não aumenta violência urbana. Apesar da leitura, Araci ainda constrói opinião sobre o assunto.

Avó do Alyson, Jéssica e Felipe

Araci não nega. Gosta de uma polêmica. Mas, neste caso, o tema não entra em questão, mas coloca a amizade construída com o casal Toni Reis – criado do grupo Dignidade e uma dezena de outras ONGs, e o britânico David Harrad em primeiro lugar. Ela é avó dos filhos deles por adoção, o Alyson, a Jéssica e o Felipe. Integrante do movimento LGBT, ela sempre foi atuante no Dignidade, onde pode entrar sem pedir licença ou ser apresentada. Araci também foi professora de Toni, um dos fundadores do grupo. Araci é avó também de outros seis netos, filhos de seus rebentos.

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Sua participação no grupo fez quebrar preconceitos de todas as formas e levar a bandeira adiante, inclusive dentro de sua família. Tudo começou com Alyson. Ele queria uma avó. Ela se ofereceu. Assim, estendeu um pouco mais sua família. "O Alysson se encantou com ela. É impossível não se encantar com a Araci", elogia Toni Reis.

Falar sobre temas delicados é especialidade de Araci. Argumentar a favor do que pensa também. A professora de biologia é contra aborto. "Valorizo a vida em todas as suas formas", frisa. Ela é adepta da prevenção.

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