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Vida e obra no improviso (ou All that Mossa)

Mossa acha graça de quando desistimos de um compromisso por causa da chuva: somos seres sensíveis às vicissitudes da natureza. | Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Mossa acha graça de quando desistimos de um compromisso por causa da chuva: somos seres sensíveis às vicissitudes da natureza. (Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo)
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Ela demora para abrir a porta da ampla sala-quarto que aluga na General Carneiro. Não sabemos sua idade. Nunca saberemos. Embora 60 e poucos seja um bom chute. O mistério se torna de certa forma motivador quando rompe uma figura de cabelo vermelho-Rita Lee, pele apessegada, batom nos trinques. Emana uma energia sábia, daquelas que dominam o interlocutor simplesmente porque o tempo faz com que seja assim. O repórter senta-se à mesa que dá para a janela, de onde se vê o rabicho da Comendador Franco. Vizinhas espiam. No Spotify instalado em um MacBook, ela escolhe um álbum de Ryuichi Sakamoto, músico e produtor japonês doidinho, pioneiro no que hoje se chama de acid house. Segue para a cozinha a passos lentos. Serve água gelada em um copo largo. Quebra o gelo. “Cheguei em Curitiba uma semana depois da neve. Foi o papo do resto do ano, não é?”

Quase ninguém sabe, mas Mossa Bildner está entre nós, de novo, desde julho de 2013. A cantora e compositora que nos anos 1960 namorou Glauber Rocha e fez com ele “um filme de férias” no Marrocos, a mulher que deu uma primeira chance a Ângela Rô-Rô nos anos 1970 – e a despediu na sequência –, e que lá pelo meio da década de 1990 gravou diversos álbuns com o renomado compositor norte-americano Henry Threadgill, está à procura de aventuras musicais. E de mais improvisos, como atestou o jornal The New York Times em uma matéria que publicou sobre a musicista em 2009. Porque é isso que a faz viver: reinventar-se.

A Outra Face de Mossa Bildner

A musicista nova-iorquina mostra um lado espiritual conectado à poesia e se lança em projeto de Ópera em Curitiba.

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No som, é a vez de Nusrat Fateh Ali Khan, cantor paquistanês que admira. “Veja como ele usa microtons”, diz, referindo-se à escala musical hindustani, comum na Índia e em parte do Oriente. Ela escolhe o português para conversar, embora expressões em francês e inglês (poderia ser italiano ou espanhol) brotem sem avisar. “É o maior cantor dos últimos cem anos”, continua. A voz de Mossa é plácida, mas firme. Uma gagueira sutil se intromete no meio de algumas frases de vez em quando. Quando troca uma palavra por outra (“aclarar” em vez de “clarear”), cria um sotaque único e divertido.

De berço

Mossa nasceu em Nova York, cidade dos improvisos. Veio ao Brasil ainda guria, aos 6 anos. O pai, industriário, investiu no país do futuro. Endinheirado, comprou uma ampla casa no Leblon, no Rio de Janeiro, onde Mossa morou com a mãe e os dois irmãos mais novos. Ela não fala sobre a família – “são judeus agnósticos do pós-guerra.” Na estante, poucas pistas: fotos da mãe, sempre com olhos melancólicos. De um cachorro. De gatos com nome de ópera – Lindoro, em homenagem ao Barbeiro de Sevilha, era um mourisco rechonchudo. Uma das imagens mostra que uma escola do Amazonas foi batizada em homenagem a Patrícia Bildner. “Minha mãe era diretora da Fundação Fulbright do Brasil”, diz a filha, lacônica.

Após ser humilhada por um professor da escola inglesa-carioca em que estudava, quando levou um álbum de Ravi Shankar para uma atividade em grupo – “esse sujeito nem inglês sabe falar direito”, bradou o mestre fajuto –, o altruísmo musical e o sincretismo religioso tomaram forma.

A história poderia estar em livros infantis: todas as noites, a menina Mossa, então com 12 anos, ouvia uma cantoria aguda, vitaminada por batucadas. Não conseguia pregar o olho porque tentava imaginar o que era aquilo tudo, a algumas quadras de casa. Indagou a empregada, que despistou ao dizer “que era uma festa”. “Posso ir?”, disse a jovem. Ouviu um não mais forte que os atabaques. A gringuinha reinou. Conseguiu, enfim. Com a condição de que não contasse aos pais. “Foi uma aventura. Ela me acordou, botamos galochas para passar no mato, porque tinha cobra, e chegamos.” Mistério resolvido: um terreiro de umbanda jazia no quintal de casa. “Vibrei. Era a minha praia”, diz a musicista, improvisando algum outro artista nada ortodoxo no Spotify. A aventura em segredo durou até as 3 da manhã. Abriu portas e a cabeça.

Mossa era habituée da extinta loja de discos Modern Sound, no Rio, quando voltou a Nova York para estudar na Juilliard School, laboratório que pariu Nina Simone e Miles Davis. Tinha 17 anos. Como em muitos casos, a faculdade fez água. “Foi para agradar meu pai. Ele não achava que eu tinha talento”, lamenta Mossa, que reflete nos olhos a tristeza que contrai de repente.

Dedicou-se muito, entretanto. Cantou óperas, atuou em peças. Mas a estrutura rígida da academia jamais irá dobrar uma sagitariana para quem regras desmancham no ar. Então voltou ao Brasil. É que não importava onde. Mossa já tinha a cabeça no mundo.

Eram os anos 1970 e o país usava coturnos. Durante a apresentação de Tropix, espetáculo escrito e dirigido pela quase brasileira, soldados invadiram o Teatro João Caetano, no Rio. A orquestra de 30 integrantes “que custou os olhos da cara” silenciou. A peça não era exatamente política. “Havia duas meninas com roupas justas e a censura achou repugnante”, conta.

Na mesma Tropix, uma atriz voluptuosa dava trabalho. Não tinha jeito: Ângela Rô Rô insistia em bebericar uísque durante os ensaios. “Nós é que demos esse nome a ela”, lembra a cantora. “Eu era Mossa Ossa. Tinha também a Binda Branca, o Pedro Pecado...” Conversar na chincha de nada adiantou. “Num dia, dei um golpe de judô e chutei o copo da mão dela. E a demiti também.” O elenco ficou em pé-de-guerra. Porque Ângela “tomava conta do palco, era impossível, um grande talento.” Em abril de 2014, a cantora de “Só Nos Resta Viver” fez uma apresentação no Teatro da Caixa, em Curitiba. Mossa estava na plateia. Não deu um pio. Ao fim do espetáculo, foi cumprimentar a ex-colega. “Seu nome”, perguntou Ângela. “Mossa Ossa.” Pronto. Faniquitos inesperados, abraços saudosos.

Glauber, o barrigudo

Era o fim dos anos 1960, e deu praia no Rio. Mossa se enrabichou por um jovem cineasta, indicado à Palma de Ouro em Cannes com o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), vencedor dos prêmios Luis Buñuel e Fipresci com Terra em Transe (1967) e do prêmio de melhor diretor, também em Cannes, com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1968). “Era um jovem barrigudo”, lembra Mossa. Os dois engataram um namoro lisérgico cujo pico foi uma viagem à mítica cidade de Essaouira, no Marrocos, um oásis hippie de outrora. “O cineasta sempre está à procura de algo, mesmo que não saiba o quê. Glauber foi me encontrar lá.” O casal viajou por Marrakesh e Casablanca, na companhia de narguilé com haxixe e chá de menta. Com uma câmera super-8 a tiracolo, Glauber registrou o que Mossa diz ser um “filme de férias.” Na verdade, é um precioso achado cinematográfico.

O “documentário” de 32 minutos, sem som, flagrou o cotidiano do casal na pacata vila do país africano. O registro começa com Mossa no comando, filmando Glauber na cadeira do barbeiro. Um close demorado no suco de laranja do café da manhã e enquadramentos nada óbvios dão provas concretas aos descrentes: é Glauber. O curta-metragem também mostra o casal em Madrid, a improvisar. “Sei que isso é raridade”, reconhece. A ideia agora é turbinar o filme com uma trilha sonora. Coisas da época, como Jimi Hendrix, The Doors ou Crosby, Stills & Nash. Com a ajuda do Museu da Imagem e do Som, o filme deverá passar por um processo de restauração para ser exibido em Curitiba, em uma sessão especial, quem sabe ainda neste ano.

A essência de tudo

Em 1997, uma catarse deliberada assomou o corpo e a cabeça de Mossa. A ideia era pesquisar o que pode ser o Bóson de Higgs da música: as semelhanças estruturais e harmônicas entre ritmos aparentemente diversos, como aquele que embala o candomblé, o gnawa do Marrocos, o jazz, o blues, o hip hop. Após 15 anos, nascia o projeto Colours of Ritual, apresentado algumas vezes em Nova York. “Não gosto de música sem nexo”, argumenta Mossa. É preciso razão maior, afinal, para misturar gaita de fole com cuíca. Qual uma ONU em versão melodiosa, o Colours of Ritual aproxima, por exemplo, a música judaica da canção árabe. “No futuro, espero, teremos consciência de que somos uma coisa só.”

Desde que chegou a Curitiba, Mossa, adepta do que chama de free improvisation, tenta se estabelecer numa cena de música contemporânea que ainda engatinha na cidade. Com o compositor e musicólogo Harry Crowl, trabalha na ópera Meu Tio o Iauaretê, baseada no conto homônimo de Guimarães Rosa. “Ela é culta, muito viajada, eclética e uma cantora lírica completa”, atesta Crowl. Mossa não abre o jogo sobre o projeto porque é supersticiosa. Com o percussionista Vina Lacerda, gravou algumas faixas – disponíveis no Soundcloud da artista. “Ela é interessante, tem influência de músicas de várias partes do mundo. E por isso é ‘livre’”, diz o músico. Um desperdício, na opinião do produtor Alvaro Colasso, é que os conhecimentos e a experiência de Mossa Bildner não sejam aproveitados em eventos como a Oficina de Música, alvo de críticas da senhora, que agora toma um chá de maçã com gengibre. “É a mesmice de sempre. Não há ousadia nenhuma.” Mossa também tem boas relações com as atrizes Cris Macedo e Pagu Leal. E participa do grupo Meninas que Escrevem em Curitiba, empreitada de Andréia Carvalho e Alexandra Barcellos da qual participam, hoje, 146 poetas.

O Facebook apita. Mossa sorri. “Oh, my God! Me convidaram para dar aulas de repertório operístico e master classes no Villa Vox, no São Lourenço. Querem até que abra um curso de improvisação livre.” Com ela é assim mesmo, o inesperado é rotina. Enquanto caça gigs e ganha dinheiro traduzindo poemas e documentos, Mossa tenta compreender o modus operandi do curitibano – um desafio. A ausência de calefação nas casas, por exemplo, ela não engole. “Me incomoda. Quando você finalmente chega em casa, sente mais frio ainda. Me deixa um pouco deprê.”

Mossa Bildner acha graça quando desistimos de um compromisso por causa da chuva. Diz que a desculpa só cola no Brasil. Sua explicação é que somos seres sensíveis às vicissitudes da natureza. Nos Estados Unidos, diz, há até um distúrbio, o seasonal affective disorder (também conhecida como depressão sazonal). “O tempo exterior influi no nosso tempo interior.” Lembra então do poeta Paul Verlaine. “Il pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville.” (“Chove no meu coração como chove sobre a cidade.”)

Mossa parece encolher quando fala sobre um câncer, em tratamento. As sessões de quimioterapia a deixam imprestável. Às vezes, não consegue cantar. Sofre com isso. Quase chora. Com gentileza, ela pede ao repórter que desligue o gravador. Chove muito lá fora. Il pleure dans mon coeur comme il pleut sur la ville.

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